segunda-feira, abril 28, 2008

O Estojo (16)

Colégio Feminino 14 – Mais um Ano de Deboche. Filme exclusivamente com raparigas. Joaquim recordou o fiasco e engoliu em seco. Não, decididamente, não podia voltar a cometer erros, repetiu mais uma vez para si, enquanto continuava a caminhar de um lado para outro, no quarto.
Deteve-se em frente ao espelho que tinham por cima da cómoda e este devolveu-lhe um rosto sério, macilento e com olheiras. Desviou o olhar para a larga tira de renda que cobria a parte central do móvel e caía para os lados, até meio. Tinha vindo no enxoval de Deolinda, feita por Jesuína “com muito amor e carinho, a pensar num dia feliz como este”.

Em cima da renda estava uma pequena caixa de jóias em madeira. Abriu-a. Estava vazia. Abriu depois a primeira gaveta. Para além da roupa interior da mulher – também ela vinda no enxoval – encontrou lá as duas embalagens de perfume que lhe tinha oferecido no último ano. Abriu as caixas. Os frascos estavam cheios. Cheirou ambos. Na opinião dele, eram fragrâncias agradáveis.
Quando os olhos regressaram ao espelho, uma ideia começava a tomar forma no seu espírito. O rosto tinha-se animado.
Pegou no casaco e na carteira e saiu de casa.

A loja estava profusamente iluminada. No ar, sentia-se um aroma doce. Eram vários os expositores e muita e variada a oferta disponível. Uma batida electrónica descia da instalação sonora. Desorientado com a súbita sensação de dejá vu, Joaquim deu dois passos e parou, tentando concentrar-se. Teve que fazer um esforço para se lembrar do que estava ali a fazer.


– Boa tarde. Posso ajudá-lo? – uma rapariga morena, alta, magra, muito bem maquilhada e a cheirar a flores, sorria-lhe o sorriso mais resplandecente que ele alguma vez tinha visto.
– Er… pode, sim… eu, como é que lhe consigo explicar isto?! A minha mulher, ela… não é muito dada a estas coisas… – a vendedora da perfumaria mantinha o sorriso jovial e acenava ligeiramente com a cabeça, como se soubesse exactamente o que ele queria dizer, o que o tranquilizou. – Você sabe. Eu queria… vocês não têm à venda, tipo, um kit de beleza, com um pouco de tudo. Ela nunca usa e está a precisar.

A rapariga não conteve o riso e pediu para a acompanhar. Dirigiram-se ao expositor dos estojos de maquilhagem, onde se demoraram.

* * *

Deolinda engravidou pouco depois. O rapaz, Afonso Prazeres Aleluia, foi a alegria de todos mas, logo a seguir ao seu primeiro aniversário, Joaquim convenceu-se que havia algo irremediavelmente danificado na relação, algo que ele jamais conseguiria reparar – algo que ele, percebeu sem qualquer margem de dúvida, já não queria sequer tentar reparar. Deolinda escutou uma longa explicação do marido sobre as razões que o levavam a pedir-lhe o divórcio, sem qualquer emoção visível. No final, limitou-se a encolher os ombros e a dizer “está bem, mas fico eu com o miúdo”.
Joaquim não voltou a casar. Vive actualmente em união de facto com uma colega de trabalho e tem uma filha dessa relação. Era suposto ele ficar com Afonso aos fins-de-semana, mas o rapaz dá noites más, chora muito – a avó Jesuína diz serem pesadelos causados pela separação dos pais – e, com a desculpa de não perturbar a irmã, passa quase todo o tempo em casa dos avós paternos.
Joaquim diz que é feliz.
Deolinda vive para o filho. Afirma com convicção não querer saber de mais homem nenhum. É mãe extremosa e ajuda os pais na loja enquanto o filho está na creche.
Nunca chegou a abrir o estojo de maquilhagem.

FIM

boomp3.com

28 comentários:

Vanda disse...

E por fim o estojo!!!



A crónica de uma separação (algum dia houve união??) anunciada.


Maquilhaste tu, muito bem, esta história :) deste-lhe contornos de grande humor, outros de flagrantes da vida real, misturaste a preceito, imaginação e factos que bem podiam ser verdade.

Gostei muito!

...então estivemos no mesmo espaço no mesmo dia e à mesma hora??!!


Beijos (só agora me lembrei que em Lisboa só houve um concerto)

Lyra disse...

Diante de alguém que escreve tão bem, tem-se a sensação de que as coisas que permaneceram escondidas no caos emergem...

Parabéns pela capacidade literária!

E este fim...rossando mil e um quotidianos...Adorei!

Beijinhos e até breve.

;O)

dona tela disse...

Oh aqui o senhor não é tão engraçado como no blog do senhor Oliveira. Mas lá que escreve com muita qualidade isso até eu percebo. Eu cá vejo-me aflita para conseguir contar a história do maldito aspirador. Um dia destes peço ajuda ao senhor Rui.

Até qualquer dia.

JPD disse...

Quem não valoriza as prendas que recebe não deve esperar gande coisa...

Certo,certo é que este casal estava a funcionar (??) no fio da navalha.

Aguardo a nova série ou estórias soltas, o que vier.

Gi disse...

Pois é Rui, tenho a história fresquinha e vejo que o encadeamento que deste à história, para que fizesse sentido só podia ter este final. Os sinais estavam lá todos e o Joaquim foi um cego ao insitir numa relação que estava condenada deste o início. Surpreendeu-me sim o estojo, confesso que a minha mente tinha pensado noutro conteúdo :)

Gostei da tua história mesmo não sendo surreal como aquelas a que nos vais hhabituando, esta parece-me ser a realidade nua e crua de muitos Joaquins e muitas Deolindas que acabam não por viver mas por se arrastar ...

Um beijinho, fico à espera de mais

lélé disse...

É claro que o divórcio era para ter acontecido no dia do casamento, ao que tudo indica, ou antes, se possível!
Mas porque é que o Joaquim se deu a tanta trabalheira e, precisamente quando deu frutos (sim, porque tendo ou não aberto o estojo, o Afonso apareceu!), é que desistiu?

Alberto Oliveira disse...

Final comovente porque é o retrato de uma sociedade feita de sofismas e onde as relações humanas são meros jogos de espelhos. Joaquina vivendo para o filho não deixa de dar uma ajuda na sex-shop dos pais, o filho Adérito cresce na creche e Deolindo com o décimo-sétimo estojo nas mãos está prestes a receber a notícia que este ano a Companhia não paga o décimo-quinto mês a ninguém.

P. d´Oliveira

Crítico de foto-novelas-concertistas.

PS: O comment no post anterior não é da minha autoria, mas sim de Rosado Legível, humorista no desemprego.

un dress disse...

mas onde já ouvi esta história!!?

apeasr do seu final imprevisível :) quase era capz de jurar que aconteceu ...de verdade!!


:)


beijO / a todos os actores...

~pi disse...

bem... só pra dizer que

o nome do menino é só por si

um caso sério!


/dadas as circunstâncias... :)

Maria Liberdade disse...

E já que está tudo do lado do Joaquim... Tb te digo... Ele não sabia que a Deolinda era assim... Porque casou ele?! Deu-lhe esperanças que gostava dela assim...

São disse...

É por isso que sou afavor do divórcio, embora ache que neste momento haja divórcios demasiado apressados.
Além disso, queiramos ou não, as crianças sofrem as consequências.
Tudo de bom.

Olinda disse...

Boa. Adoro finais não borrados. :-)

Anónimo disse...

Não abriu? :( Mas estava mesmo a precisar... :P

Azul disse...

Olá Rui. Desta vez, e por mais uma, confesso que fiquei surpreendida! Estava dois capítulos atrasada - que recuperei agora -, e qual não é o meu espanto!, isto acabou aqui! Tive esperança que a coisa se conpusesse, para ser franca, mas afinal, foi tudo em vão. A Deolinda, com efeito, só queria mesmo um "jorro" de bom material genético e vigorante (de preferência, certeiro!) para acabar com as "obrigações" tão aborrecidas do matrimónio! O pobre do Joaquim, que mal nem ás moscas fazia, queria mesmo era rambóia! Sabe de quem foi o mal? Da internet! Relações virtuais, é o que dá!! lol

Aguardam-se novos capítulos da seguinte novela das seis! Um abraço caloroso. Até breve. Azul.

Devaneante disse...

E cá estamos na "posta" final...

Surpreendi-me com este Quim que, apesar de tão má experiência, não desistiu de tentar uma segunda oportunidade.

só fiquei com uma dúvida... será que ele também comprou lubrificante e alugou filmes para a sua nova companheira?

mixtu disse...

nunca o abriu
o divorcio... ele com uma gaja
ela... será sempre dele
gosto destas gajas, serrana... na certa...

abrazo serrano

Eyes wide open disse...

... confesso que estava à espera de ver a Deolinda soltar o cabelo e ... enfim, vamos omitir os detalhes porque isto é um blog de respeito.

E sim... já que está tudo do lado do Joaquim, que é um facto, de certa forma até se esforçou, eu pergunto... e ele tinha estojo próprio? E se sim, usava-o?

:)


*

Anónimo disse...

E eu a pensar que o estojo tinha produzido efeito... afinal nem foi aberto!

Ele há situações que já nascem mortos...

segurademim disse...

... continua burro o Joaquim

irá dar mais perfumes e caixas de maquillagem à colega
o segundo divórcio chegará a seu tempo e ele agilizará os pressupostos...

coleccionador de filhos, afinal é um aficcionado de baptizados

[tornaste-o tão imaturo e papálvo que até me irritou]

Polly Jean disse...

:)
beijo.
que bom ler.

Vanda disse...

E um outro peixe...para quando? :)

beijo e bom fim de semana!

Leonor disse...

este desencontro encontrado até á separação final anunciou sempre uma solidão e desencanto. como se tivessem estado sempre sózinhos.

quem são estes senhores que cantam?

Rui disse...

Leonor,

Os senhores que cantam, chamam-se Novembro e são uma banda portuguesa recente. Editaram à pouco tempo o primeiro CD, À Deriva, pela Lisboa Records. Tudo muito independente, muito low-profile, mas com muita qualidade - digo eu; o suficiente para merecer o nosso interesse neles.

Não há muita coisa sobre eles na net. Deixo aqui o Myspace da banda (que é, em grande medida, um projecto do Miguel Filipe):

http://www.myspace.com/novembro

Claudia Sousa Dias disse...

Nem os estojo, nem os perfumes...

Das duas uma: ou a Deolinda não gostava muito dela própria ou o Joaquim não tinha lá muito jeito para escolher cosméticos e perfumes...!


Acho que se safa muito melhor em filmes eróticos...

Não sei qual dos dois me dá mais pena...gostei sobretudo do nome que puseram ao "rebento":-)

Espero não acabar como a Deolinda...


CSD

Graça Brites disse...

Afinal, não parecendo à primeira leitura, foi uma história com final feliz.
Parabéns! :)

Carla disse...

ohohohho!!!!! que fim!
não estava nada à espera deste cheiro a bolor que aqui deixaste!
Olha lá tens a certeza que a Deolinda não tem uma "segunda vida" cheia de emoções camufladas?
boa semana
beijos

P disse...

Do melhor que se escreve! Preso até à última palavra!
Abraço
P.

Maria Laura disse...

Como estive parada, perdi o final do teu conto mas tive que vir saber como acabava esta "tragédia quotidiana". Caracterizada de forma magistral, entre a ironia e o quase drama que tanta claustrofobia causa. Uma prova da tua capacidade como escritor.