sexta-feira, fevereiro 24, 2006

O Baloiço (parte 2)

Braga, 15 de Setembro 1997

Patrícia,

Espero que tenhas tido o melhor aniversário possível. Na hora exacta do teu nascimento fiz um brinde à tua saúde – com sumo de laranja, que não toco em álcool há quase quatro meses.
Era uma novidade que tinha para te dar, caso tivesses voltado para casa: “alistei-me” nos Alcoólicos Anónimos e estou determinado a conseguir recuperar – sinto a mesma determinação que me levou a alistar nos Comandos em tempo de guerra. Não tem sido fácil, como deves calcular, mas mais pormenores sobre isso gostava de te os dar em pessoa.

Não me leves a mal a insistência, mas queria muito falar contigo. Se não for antes, considera, pelo menos, a hipótese de cá vires pelo Natal.

O teu pai.

[…]

Braga, 22 Dezembro 1997

Filha,

Continuo sem notícias tuas e, por isso, já não tenho esperança que cá venhas este Natal. Se mudares de ideias, ia ficar muito contente.

Feliz Natal. Tudo de bom para ti. Que 1998 seja um ano bom para todos nós, bem precisamos. Que seja um novo inicio.

O teu pai.

PS – Gosto do teu novo corte de cabelo. Estás muito bonita.

* * *

Lembrava-se, com inusitado detalhe, de todos os acontecimentos daquele ano de 1997. Tinham-na marcado profundamente. Para o melhor e para o pior, transformara-se numa pessoa diferente.
Ao longo dos anos tinha sido sua convicção de que se tornara numa pessoa mais forte, mais determinada. Numa palavra, melhor. Tinha também perfeita consciência do preço que tinha pago: tornara-se mais fria, mais distante, mais inacessível.
Nada disso tinha importado muito. O que tinha que ser feito, foi feito. Sem dó, nem piedade. Sem nunca olhar para trás, sem nunca pensar e se

Agora, ali sentada, a ler a correspondência do pai, teve, pela primeira vez, dúvidas. Hesitava. Teria mesmo feito bem quando criou em seu redor uma barreira intransponível para as coisas do passado? Teria, de facto, se tornado numa pessoa melhor?
Mas eu dei-lhe várias oportunidades, e ele nunca as quis – soube? – aproveitar… Os acontecimentos daquele dia de Fevereiro, tinham sido a gota de água final num copo já muito cheio. É claro que fiz bem, pensou alto, enquanto se assoava.
Reparou que o próximo envelope tinha o carimbo de dia 31 de Janeiro.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

O Baloiço (parte 1)

Braga, 5 de Setembro 1997

Patrícia,

Faz hoje exactamente 8 meses que saíste de casa. O orgulho, que tu tão bem conheces, tem-me impedido de te contactar – calculo que não estejas surpreendida por eu saber onde vives; sabes melhor que ninguém que eu sou uma pessoa de recursos.

Dia 12 fazes 26 anos e eu queria muito que voltasses para casa. Quero falar contigo, esclarecer tudo. Preciso que me dês mais uma oportunidade.
Calculo que estejas a pensar que já me deste todas as oportunidades do mundo, mas desta vez, acredita em mim, é a sério, eu quero mudar mas só o vou conseguir com a tua ajuda. Preciso de ti.

Por favor volta, temos muito que conversar – tenho muito que explicar.

O teu pai.

PS – Nunca tive jeito para escrever mas, ainda assim, pareceu-me mais fácil do que te telefonar; acho que nunca falarias comigo.

* * *

Pousou a folha de caderno amarelecida em que aquela carta tinha sido escrita e mordeu o lábio inferior.
Tentou identificar as emoções que sentia naquele momento. Antes de abrir o envelope, tinha tido a esperança de que não sentiria nada para além de indiferença, mas tinha-se enganado. Sentia algo, mas não sabia o que era.
Olhou novamente para a folha de papel. A letra desajeitada do pai, que tão bem conhecia. Imaginou o quanto lhe terá custado escrever aquelas linhas. Apoiou ambos os cotovelos na mesa e escondeu a cara nas mãos.

Estava sentada na mesa da cozinha da casa dos seus pais, a casa onde tinha crescido. A luz do final de dia chegava-lhe filtrada pelo limoeiro plantado no pequeno jardim.
Aquela sempre fora a sua divisão preferida da casa, nenhuma outra tinha aquela luz natural durante todo o dia. Fora sempre ali que fizera os seus trabalhos de casa, lido os seus livros de aventuras favoritos. Tinha sido ali que passara os melhores momentos com a sua mãe.
As melhores recordações que tinha dela eram dos momentos em que as duas se divertiam a cozinhar enquanto falavam das suas vidas. Tinha sido ali que mãe lhe tinha pedido juízo dezenas de vezes, tinha sido ali que contara à mãe do seu primeiro namorado.
Por momentos, tinha-se transportado para essa infância e adolescência despreocupada, em que tinha sido feliz. Via a sua mãe com o avental favorito a descascar maçãs para fazer uma tarte e ela, em cima de um banco, a ajudar a mãe.

O cheiro bafiento que vinha da caixa de sapatos cheia de envelopes à sua frente, fez-lhe recordar um outro momento passado por si naquela cozinha. Desta vez estava sozinha, era de noite e a cozinha apenas estava iluminada pela lua cheia. As sombras projectadas do exterior, dominavam.
Por uma coincidência em que já tinha reparado, faria amanhã exactamente 9 anos em que entrara naquela cozinha, de madrugada, vinda do seu quarto e fechara os olhos com força. Sentia-se ali mais à vontade de olhos fechados do que a ter que enfrentar aquelas sombras em movimento.
Aproximou-se da porta que dava para o jardim e, o mais silenciosamente que pode, rodou a chave a maçaneta da porta, saindo para o jardim.
Recordou do vento gelado e o limoeiro que se agitava. Não tinha olhado para trás e não tinha voltado nunca mais.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Meio Frango e Uma Missa

Terça-feira, 9 de Fevereiro, 18h30. Moscavide.
Um motivo forte, mas fastidioso de explicar, faz-me estar a quase 10 kms de casa, a fazer tempo dentro do carro, para ir comprar meio frango.
Dou por mim a pensar nisso mesmo, que me afastei de casa, em plena hora de ponta, para ir comprar meio frango de churrasco. Não bastando isso, ainda é cedo, tenho que esperar até depois das 19h00. (Repito: é um motivo forte que me ali faz estar e não um qualquer convencimento paranóico que em Moscavide é que o frango assado é bom).

Fui dar uma volta por essa bela localidade de fronteira. O regresso a casa domina a cena: a pé ou de carro, a pressa é o denominador comum; só quem tem que utilizar os transportes públicos tem um ar resignado, a esses, ter pressa não adianta de nada.
A Av. de Moscavide não é grande. Ainda me aventurei numa ou noutra perpendicular, mas nada havia que ver, em pouco tempo cheguei ao largo da Igreja. À porta, um grupo de senhoras conversava animadamente. Vi que as portas estavam abertas e aproximei-me.

Entra… estou à tua espera”. Assim mesmo. Recortadas em papel autocolante vermelho, 20 letras e 3 pontinhos colados em duas portas de vidro fosco, interpelavam-me. Não resisti ao convite e entrei.
Quer dizer, tentei. É que quando empurrei as ditas portas elas não se mexeram. Não é empurrar, é puxar, pensei eu, mas nada, nem para um lado nem para o outro.
Confesso que percebo pouco de igrejas. Não sendo crente, não sou frequentador e, naquele momento, bloqueei. Ali fiquei, ora empurrava, ora puxava e o cérebro não dava para mais. Então é assim que tratam os convidados?
Foi uma das senhoras que estava na rua que me desenrascou. – Oh homem, entra-se de lado.
E não é que era mesmo? Ela tinha razão. De um lado e de outro (!!!) uma porta no mesmo vidro fosco, daquelas que abriam. Sorri encavacado e penetrei.
A Igreja Matriz Paroquial de Santo António de Moscavide, sendo pequena, tem um interior bastante amplo. Não é daquelas igrejas tradicionais, construída na década de 50 do século XX, tem linhas modernas – a terminologia é a de quem não domina o assunto, portanto, paciência com o escriba.
Tem um altar central, muito simples, muito “despido”. Cristo Vivo, Eu Vim Para Que Tenham Vida, pode ler-se. Tem também um altar mais pequeno, lateral, à direita.
Passei pela pia baptismal e fui colocar-me ao lado de um pilar, tentando passar despercebido. Se havia coisa que eu não queria era perturbar.
Em frente a esse altar lateral – mal iluminado, vazio -, umas duas dezenas de mulheres e um homem – idosos, todos -, cantavam uma ladainha. Estava quase para me ir embora, quando, ao terminar a cantoria, ao mesmo tempo que as senhoras soltam um sonoro Ámen, se acende uma imensa luz por cima do altar.
Não consegui evitar achar que ou aquilo estava muito bem ensaiado ou era um sinal para que eu não saísse já. E não saí.

Reparo então numa senhora que está sentada nos bancos da nave central. Levanta-se e dirige-se para um púlpito que está ao lado do altar lateral. Abre um livro, coloca os óculos, sopra no microfone e começa a dizer nomes.
Nomes de pessoas, entenda-se, não a ofender alguém. Achei-a com cara de poucos amigos. Marcolino José Saraiva, Leopoldo Francisco Baeta, Genuína Maria Fagundes, Gertrudes Isabel Bandeira, e por aí a fora – os nomes são da minha autoria, que dos ditos não guardei memória.
Aquilo intrigou-me, o que seria? Não me pareceu que fosse a chamada dos presentes, como na escola. Estava eu a conjecturar, quando a senhora levanta os olhos do livro. Olha por cima das lentes e dispara: - Assim não pode ser, depois digam que eu não leio os nomes… é sempre a mesma coisa. – Diz ela com impaciência.
Aparentemente, tinha apanhado duas velhotas na conversa e estava a dar-lhes um raspanete. Sortiu efeito, nunca mais se ouviu um ai até a senhora terminar a leitura.
Voltou ela para os bancos centrais e ali ficámos todos, quietos, em silêncio. Nem me atrevi a mexer. Se ninguém se mexia, também não era eu que o ia fazer. E agora?, pensava eu.
Estivemos naquilo quase 5 minutos. Reparo então nos confessionários, 2. Têm uma zona central, onde se senta o padre, tapada por uma cortina escarlate e, de cada lado, o local de quem se vai confessar, totalmente aberto. Tive que achar que era necessária uma boa dose de coragem para alguém se confessar ali, à vista de toda a gente. E porquê um lugar de cada lado? O padre consegue confessar duas pessoas ao mesmo tempo? É para ser mais rápido, ainda uma pessoa não saiu de um dos lados já está outra pronta do outro?
Nisto, sai um senhor de uma porta ao fundo, à esquerda. Vamos ter acção, finalmente. Curva a cabeça ao passar pelo altar central, curva a cabeça quando passa ao lado do altar lateral e senta-se. Mau
Distraio-me a olhar para os 11 quadros colocados de cada lado da nave central. Penso representarem a Via Dolorosa.
Estava eu a matutar no facto de estar, até então, convencido de que a Via Dolorosa era constituída por 14 ou 15 estações e se seria a mesma coisa que a Via Sacra, quando, vindo do nada, uma sonora badalada me traz de volta à Terra.
Foram 7 as badaladas. Eram as horas. E depois o Avé Maria tocado pelos sinos. Na igreja nada, ninguém se mexia.
Esperava-se por alguém, conclui eu brilhantemente. O padre, pois claro, ia haver missa às 19h00, que esperto que eu sou.
Mais 2 minutos e lá vem ele, de paramentos verdes, seguido por um homem. Curva a cabeça ao altar central, benze-se ao chegar ao altar lateral. Todos estão agora de pé.

“Em nome do pai, do filho e do espírito santo”… e depois lembrei-me: a metade do frango, já estou atrasado!
Saí quase a correr.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Empresta-me o Teu Olhar (conclusão)

Um fio de voz fez-se ouvir do outro lado. – Diz-me o que vês.
Não conseguiu responder. Afastou o auscultador do ouvido e fitou-o. Olhou à sua volta. Ninguém parecia interessado nela. Ao encostar de novo o auscultador, ouviu de novo, diz-me o que vês.
- Quem fala?
- Por favor, não desligues. Diz-me o que vês. – A voz chegava-lhe em surdina, como se estivesse muito longe. Pareceu-lhe a voz de uma criança.
- Como assim, o que vejo?
- O que vês à tua volta, conta-me.
Olhou novamente em todas as direcções. Não viu nada suspeito.
- Isto é uma brincadeira, não é? Estás a falar de um telemóvel, aqui perto, a observar-me…
- Não, juro que não. Não sei sequer para onde estou a ligar. – A voz parecia-lhe agora um lamento.
- Estou confusa. Ajudava se me explicasses o que se está a passar.
- Eu só queria saber onde estás, o que está aí a acontecer, o que vês.
- Mas para quê, que interesse tem isso?
- Não tenho mais nada…
Pareceu-lhe ter alguém atrás de si. Virou-se instintivamente mas não havia ninguém, apenas o movimento habitual de pessoas indiferentes umas às outras. Indiferentes para com ela.
Sentiu um vazio no peito que lhe subiu pela garganta e se alojou no cérebro. Vou desmaiar, pensou. Apenas teve tempo de se apoiar com uma mão à parede.
- Não te vás embora. Diz-me o que vês. – Desta vez a voz saiu nítida, próxima. Foi como se a tivesse segurado.
- Estou num Centro Comercial. Num telefone público. Junto a um repuxo e a umas escadas rolantes. Lojas… muitas pessoas. – Perguntava a si própria o porquê de estar a ter aquela conversa com alguém que não conhecia, ao telefone.
- Fala-me das pessoas.
Ia protestar, recusar dizer fosse o que fosse, ia desligar, mas algo naquela voz a prendeu. Sentia naquele murmúrio algum desespero.
- Vejo o Segurança da loja aqui ao lado a olhar para as pernas de uma miúda que passa. Vejo um grupo de homens… que estranho, três deles levam acordeons, um leva um bombo, outro umas massas… vão vestidos normalmente, bem vestidos, quem serão, o que estarão aqui a fazer? – Pensava alto.
- Como é o olhar das pessoas?
- Distante. Cansado… parecem todas muito concentradas nelas próprias. Não procuram nada, sabem todas para onde vão. – Fez-se silêncio por alguns segundos. – Não vejo ninguém sozinho, mas parece-me ver solidão… vão todos absorvidos com as suas coisas, com as suas vidas. Ninguém quer saber, ninguém se preocupa.
- Estás a falar de ti…
Virou as costas à multidão que passava e procurou concentrar-se naquele estranho diálogo. – Agora diz-me tu o que vês.
- Nada, não vejo nada.
- Como assim, não vês nada?
- Há pouco mais de um ano sofri uma grave acidente de viação, fiquei muito mal tratada, sofri um forte traumatismo craniano e estive sete meses em coma. – Falava pausadamente, como que procurando as palavras. – Recuperei a consciência mas não a visão. Ceguei, não vejo. É por isso que peço o olhar emprestado.
- Eu não podia imaginar… - balbuciou.
- Não fiques assim. Sabes, também ainda não recuperei a mobilidade. Faço duas horas diárias de fisioterapia e o resto do tempo, passo-o deitada. Não me resta muito mais que ouvir música, digitar números de telefone ao calhas e pedir a quem me atende que me diga o que está a ver.
- Foi a maneira que encontraste de sair daí.
- Sim, é isso. Fico aqui a imaginar os sítios que me descrevem, as pessoas que passam, as pessoas com quem falo. A tentar perceber as entrelinhas do que dizem. Mas é muito difícil conseguir falar com alguém, a maioria desliga logo. Eu percebo, claro, se calhar fazia o mesmo.
- Achas que se diz muito nas entrelinhas?
- Acho que as pessoas profundas, como tu, não se conseguem exprimir com clareza são, muitas vezes, as entrelinhas. Quando se sentem incompreendidas, cobram isso das pessoas. Ao mesmo tempo que querem ser vistas, não se mostram totalmente.
Aquelas palavras tinham muito a ver consigo. Olhou por cima do ombro, não conseguia afastar a ideia de que estava a ser observada. De que aquela pessoa com quem falava a conhecia. Mas desligar já não era uma opção.
- Há pouco, disseste que eu estava a falar de mim. Tinhas razão, o cansaço que vejo nos outros é o meu, a solidão que vejo é a que sinto, o olhar distante não é das outras pessoas. Mas tudo isto é momentâneo, daqui a pouco já passou. Tem que passar. Há quem precise muito de mim, da minha força.
- Ele deixou-te sozinha. – A frase não saiu como uma interrogação, antes como uma certeza.
- Não, deixou-me com dois filhos! – Exclamou. – Que eu tinha mudado, que a nossa relação já não era a mesma, que não conseguia comunicar comigo, não me entendia… que eu estava muito concentrada nos filhos e não queria saber dele. Que agora ele tinha novas experiências para viver, novos interesses. Disse-me isto assim. Dá para acreditar? – Não esperou pela resposta. – O filho da mãe! Doze anos de relação…
- Seria que, no fundo, tu precisavas de continuar a ser descoberta e ele se fartou dessa procura?
- Há mal nisso? Eu não acho que haja. Ele nunca me disse nada, nunca! Se algo estava mal, porque não falou comigo?
- Deu cabo do teu mundo.
- Quero crer que da mesma maneira que o acidente deu cabo do teu…
- Sim, calculo que sim.
- É verdade… fez com que eu pusesse tudo em causa. Me pusesse em causa. Em boa medida, deixou-me sem nada em que acreditar acerca de mim. E eu preciso de algo em que acreditar.
- Sabes que és boa mãe.
- Sim, sou. Foi aos meus filhos que fui buscar forças para continuar. Precisamos de algo a que nos agarrar, não precisamos?
- Sem dúvida. Ambas temos que aprender a lidar com a mudança que ocorreu nas nossas vidas.
- Tens conseguido?
- Todos os dias um bocadinho. Vais ver que um dia nos vamos rir de tudo isto. Quando formos leves e transparentes.
- Tu não sabes mas eu vou dizer-te: transparente não sei se consigo ser, sempre fui muito opaca, mas leve quero acreditar que vou conseguir. – Ao dizer aquilo, não conseguiu evitar achar que, de alguma maneira, quem estava do outro lado sabia isso bem.

Pouco depois despediram-se. Desligaram sem mais nada saber uma da outra.

Pousou o auscultador mas não se mexeu durante algum tempo. Ao virar-se, viu o repuxo e duas crianças que apontavam para água. Tudo lhe parecia em câmera lenta.
Pela primeira vez desde o divórcio tinha tocado na ferida que a trazia dorida. Na fonte da dor.

Ao entrar no Continente sorriu. De facto, sentia-se mais leve.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Empresta-me o Teu Olhar (parte 1)

Sentia-se exausta. Depois de um dia de trabalho em que poucas coisas tinham corrido bem, ainda tinha que ir às compras.
Sentada no carro, ponderou pela décima vez na última hora se poderia passar sem as fazer. Não se sentia com cabeça para andar às voltas no hiper-mercado.
Lembrou-se do último pedaço de queijo, comido nessa manhã. O fiambre há muito que tinha terminado. Já só restava um resto de manteiga para pôr no pão. Ainda assim, ponderou se a manteiga daria até ao dia seguinte.
Só se convenceu que tinha mesmo de ir às compras quando se lembrou que a sopa para os miúdos também já tinha terminado há dois dias, que não tinha legumes para fazer outra e que, depois de hambúrgueres e pizzas comidos fora, ela e os filhos mereciam uma refeição caseira.
Suspirou e sentiu as forças abandonarem-na quando percebeu que, depois das compras, ainda tinha que preparar o jantar. Tinha saído mais cedo do emprego para tentar descansar um pouco, mas ainda não ia ser nessa noite.

Estava na zona azul do parque de estacionamento do Centro Comercial Colombo. Apesar de não ser ali que fazia as compras habituais, ia ao Continente para aproveitar um talão de desconto, gentilmente oferecido numa gasolineira. Sanguessugas, pensou ela enquanto memorizava o local onde tinha estacionado. Já não era a primeira vez que ali se perdia.
Tinha tido um dia péssimo. Subia as escadas rolantes e fazia um resumo mental do que tinha acontecido. Não conseguiu lembrar-se de nada positivo. Aliás, acabava de se lembrar de mais uma coisa que tinha corrido mal: a zona azul do estacionamento ficava longe do Continente e, com acesso por escadas rolantes, só poderia levar o carro das compras até onde tinha estacionado se fosse dar uma volta que desconhecia e que, calculava, deveria ser enorme. Teria de resumir as compras ao essencial, algo que pudesse carregar… e teria de voltar em breve às compras.

Ao sair das escadas rolantes sentiu uma tontura e quase caía, não fosse um velhote que vinha atrás dela a ampará-la.
- Você está bem?
- Sim, obrigado, agora estou – respondeu. Mais uma queda de tensão, pensou. Nas últimas semanas era a terceira vez que lhe acontecia. Não podia continuar a ignorar. Ficar doente não era uma opção, mas tinha que ir ffalar com o médico da sua empresa sobre estas tonturas que começavam a ser recorrentes.
Sentou-se no bordo do repuxo que fica em frente às escadas rolantes. Precisava recuperar a totalidade da consciência.
Ali sentada podia ver o intenso movimento junto à entrada do Continente. Mais uma vez, ponderou o adiamento das compras. Não posso, agora que aqui estou, tenho mesmo que ir, pensou para si. Fechou os olhos e o som da água que corria no repuxo parece acalmá-la.
Pensou em férias na praia, viu-se deitada numa espreguiçadeira debaixo de uma palmeira, diante de si, um mar azul-turquesa. Sentia a areia branca, finíssima, nos seus pés.
E depois ouviu um telefone a tocar, ao longe. Telefone, não… férias… O som de um jacto de água lançado a grande pressão na direcção do tecto do Centro comercial, fê-la abrir os olhos. Tinha passado por um estado de vigília, quase tinha adormecido. Olhou em redor e viu um mar azul-turquesa, muitas palmeiras e um casal de mão dada que passeava à beira mar.
Tudo isto se passava num enorme televisor que estava em exposição na entrada da Worten. Passou as mãos pelo rosto. Precisava voltar rapidamente à realidade.
E então, ouviu novamente o telefone. Olhou para a sua mala, mas o telemóvel não era. Estarei ainda a sonhar? Outro toque. Apurou os sentidos e aguardou que tocasse novamente.
Apesar do ruído e do muito movimento à sua volta, conseguiu perceber de onde vinha o som, era de um dos telefones públicos que ficavam junto às escadas rolantes.
Continuava a tocar, perante a indiferença de quem passava. Serei a única pessoa a ouvir? Levantou-se e aproximou-se do telefone. Precisava ter a certeza.
Tocou de novo e assustou-se, deu um passo atrás e olhou à sua volta. Ninguém parecia interessado nela ou no telefone. Deu por si a pensar se aquela chamada seria para si. Que estupidez… mas se tocar novamente, atendo.
Trimmmmmmmmmm. Fixou o olhar no auscultador durante breves segundos e levantou-o.
- Estou?

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Aquela Coisa dos Cinco Hábitos Estranhos

Desafiado recentemente pela M.M do Arte & Lingua e, ainda hoje, pela Ana das Laliscadas, a não quebrar a corrente que assola o universo bloguistico nacional – arriscando-me a sofrer inenarráveis tragédias -, achei por bem participar no relato de alguns hábitos estranhos que eu tenho (não que eu acredite nisso, que esse hábito estranho não tenho eu). Aqui vai disto:


1 – Tenho o estranho hábito de guardar os bilhetes de cinema dos filmes a que assisto. Sei que muita gente guarda os bilhetes dos concertos, e esses eu também guardo, mas também fico com os dos filmes que vou ver.
Não é coisa de agora, o mais antigo que conservo é do Natal de 1984, do já defunto Cine Plaza – hoje conhecido com Recreios da Amadora, recuperado que foi de um mais ou menos longo período de abandono; ocasionalmente passa, outra vez, filmes.

O filme, esse, é de culto (!?), “Conan, o Bárbaro”, com o Arnold Schwarzenegger em início de carreira. Lembro-me que fui com o meu primo Tó e de ele, após o final do filme, ter ficado a pensar o que havia de fazer comigo… sendo eu uns anos mais novo que ele. Custou 100$ o bilhete.

São, portanto, 21 anos a juntar bilhetes. Muitos dos cinemas já não existem: Éden, Odeon, Condes, Politeama (nessas funções), Roxy, Alvalade, Alfa, Nimas e mais alguns. Todos locais que só cumpriam essa função, ao contrário de hoje em que ou se está no centro comercial ou se está tramado.

Também os próprios bilhetes mudaram muito. Se antes os havia impressos para cada sessão de cada dia, hoje, o bilhete é impresso no momento, com o nome do filme (muitas vezes abreviado) e sem lugar marcado. É um tipo de bilhete que deu cabo da minha colecção, visto a impressão e o papel serem reles e, ao fim de um tempo, já pouco ou nada se notar. Tenho pena.

2 – Tenho o estranho hábito de fazer caretas quando fotografo. Nas fotos em que apareço é certo e sabido que fico sempre com um ar estranho. É coisa de que não gosto, ficar nas fotografias. Mas só recentemente percebi que também quando estou atrás da câmera faço as mais estranhas caretas.

Sempre deve ter sido assim, mas ao ver há pouco tempo algumas fotos que me tiraram enquanto eu fotografava, é que percebi a dimensão da coisa. Lá estou eu, de taxa arreganhada, com um esgar que mais parece de dor.

Agora, dou por mim com mais essa preocupação, não bastava o enquadramento, a exposição, a obturação e afins, tenho que me preocupar em não fazer figuras tristes. É necessária muita concentração, acabo por me distrair e surpreendo-me muitas vezes a fazer as tais caretas.

3 – Tenho o estranho hábito de ler livros. E revistas também – disse isto assim só para provocar, porque estranho mesmo é andar pelas livrarias a folhear os livros e ter o hábito de ler os primeiros parágrafos.

E isto mesmo dos livros que não me interessam nada. Não consigo resistir a saber como é que começa, por exemplo, um livro como o da Alexandra Solnado, “Este Jesus Cristo Que Vos Fala”, em que se relatam as conversas tidas entra a autora e Jesus. Deve ter a ver com aquele famoso sentimento conhecido como síndrome da página em branco, aquele algo inatingível e inexplicável que não nos deixa escrever, nem sequer começar. No fundo, tenho curiosidade em saber como é que os outros resolveram essa questão, a do inicio.

4 – Tenho o estranho hábito de andar a pé. Saio de casa – da cama – com o único propósito de andar! É verdade, vou andar, sem destino, às voltas. E sempre a um passo razoável, não propriamente de passeio.

Como dizem que faz bem à saúde e eu até sou um bocado hiper-tenso, eu lá vou. Aos fins-de-semana, cedo, vou andar para os poucos locais onde isso se pode fazer com alguma tranquilidade em Lisboa. Durante a semana é mais complicado, mas aproveito as horas de almoço para dar uma volta ao quarteirão.

Às sexta, como fico liberto dos compromissos laborais às 15h00, aproveito para andar um pouco pela cidade: vou ver montras para a Av. De Roma, Praça de Londres e Rua Guerra Junqueiro. Gosto de observar as novas tendências da moda – imprescindível deitar um olhar à montra da Fátima Lopes -, gosto de observar com quem me cruzo, de procurar umas fotos.

5 – Tenho o estranho hábito de escrever muito e falar pouco. Por exemplo, se me tivessem pedido oralmente para eu falar de cinco hábitos estranhos, tinha despachado a coisa em menos de um fósforo, mas como é por escrito, acabo sempre por inventar uma série de coisas desnecessárias – até do meu primo Tó eu já aqui falei!

Já li vários blogs onde consta esta coisa dos cinco hábitos e, em todos, as pessoas limitaram-se a algumas linhas, pronto, já está… mas eu não, tenho que me alongar sempre. Alguns de vocês já sabem disso, basta ler alguns dos meus posts anteriores, que são extensos demais para o nível de atenção com que se lê blogs.

O que talvez não saibam é que o que é publicado, muitas vezes, é uma versão condensada de textos mais longos.

6 – Tenho o estranho hábito de ser distraído. Ai esperem, são só cinco, já está, já chega. Sorte a vossa.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Assunto: Um Pedido

De: Diogo Melo [diogo.m@***.pt] Enviada: qui 01-02-2006 10:52

Para: Artur.Valença@*****.pt

Cc:

Assunto: Um pedido.

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Artur,

Imagino que ao veres o meu nome na pasta dos mails recebidos, deves ter sentido um calafrio. Só podem ser chatices, pensaste tu.
Como não sou pessoa de defraudar expectativas, fica sabendo que sim, são chatices. Tu desculpa-me isto mas, não sendo nós sequer os melhores amigos nem tendo grande intimidade, não consigo lembrar-me de melhor pessoa a quem recorrer, com quem desabafar um pouco. Preciso da tua calma analítica, do teu conselho ponderado. Nunca te disse isto, mas aprecio a tua opinião.
Ainda pensei em nos encontrarmos, mas percebi que não seria capaz de falar tão bem quanto sou capaz de escrever. Ia, automaticamente, defender-me, procurar palavras menos dramáticas, no fundo, não ia dizer aquilo que quero, que preciso, pelo menos não tão cruamente, tão abertamente. E neste momento o que eu preciso é de ser sincero e absolutamente franco.

Muito estranho isto, não achas? O senso comum diria que falar seria o ideal para se dizer o que realmente nos vai na alma, que a escrita, por ser mais pensada, seria óptima para disfarçar, para nos escondermos nas entrelinhas.
Comigo é ao contrário. Se eu puder pensar, reflectir sobre aquilo que quero realmente dizer, sai-me a verdade, mostro-me tal qual sou. Acho que isto é assim porque, ao longo dos anos, consegui desenvolver uma técnica que me tornou um tangas. Não é à toa que sou um bom Comercial.
Como vendedor vou directo ao assunto, não perco tempo nem faço os clientes perderem – é algo que muito apreciam. Se estivéssemos a falar, já tinha feito um resumo rápido – portanto, resumido demais – do que me tinha feito falar contigo. Por escrito não, aqui consigo fazer introduções, preparar o terreno com explicações prévias, fazer apartes.

E aqui chego ao que me levou a escrever-te. Até há bem pouco tempo eu não era apartes, introduções e explicações prévias. Como que descobri um novo eu e tenho-me assustado.

Começou tudo há não muito tempo, quando a Joana me disse que estava farta. Que eu parecia mais ausente de dia para dia, cada vez mais desprovido de sentimentos. Que ela se sentia uma cliente e não minha mulher. Que eu estava irreconhecível e que o nosso casamento já não era o mesmo do inicio. Assim, sem mais nem menos.
Foi como se tivesse levado uns murros no estômago. Nem sei de onde eles vieram, fui apanhado desprevenido. Um autentico choque para mim. A minha primeira reacção foi não querer saber, achar que era mais uma das coisas dela.
Preparava-me para não lhe ligar, como faço habitualmente. Ela fala, queixa-se, barafusta e eu vou acenando com a cabeça mas sem a estar a ouvir. Desde que ela não se ponha à frente da televisão, para mim é só ruído de fundo. “Toma um Xanax que isso passa”, digo-lhe eu às vezes. Ela fica danada, até deita fumo, mas é o suficiente para se calar.
Uma besta, eu sei.

Desta vez não, vi-lhe no olhar, na expressão, que era diferente. Não era a Joana dos outros amuos, se alguma vez ela tinha falado a sério, era desta vez.
Na altura a coisa ficou por ali mas nunca mais deixei de pensar nisso, nas causas de tudo aquilo. Se eu teria mudado assim tanto.
As conclusões a que tenho chegado têm-me deixado assustado e triste; não fosse uma pequena esperança que possa estar enganado, e já tinha entrado em séria depressão – preciso que me digas com toda a sinceridade se, daquilo que me conheces, que nos conheces, o que achas e o que devo fazer.

Digo isto porque acho que não mudei assim tanto e, ao mesmo tempo, a Joana tem razão. Tenho sido um egoísta que não tem conseguido ver para além de si. Dei como garantidas uma série de coisas e não me preocupei mais com isso. Pelos vistos, isto das relações implica um recomeço constante, uma reconquista quase diária da outra parte. Um esforço que não fiz porque não sabia que era necessário.
Na verdade, e isto é terrível, não sei se a amo. Pior, não sei se alguma vez amei algo ou alguém! Não sei sequer o que é isso de amar.
Um dado tenho por adquirido: não a soube amar.

O que é amar, sabes me dizer? Como se identifica o amor?

Quase a fazer 40 anos, dou por mim a debater-me pela primeira vez com estas questões. E isso não é normal, se nunca foram temas importantes para mim, porquê agora? Será isto a famosa crise de meia-idade?
De um momento para o outro, vejo-me a olhar para dentro, à procura do meu mecanismo de funcionamento, preocupado em saber como se mexem as engrenagens que fazem de mim aquilo que sou. E assusto-me. Mais ainda quando percebo que sou portador do não resolvido, de incertezas.
Eu não era assim. Este tipo de interrogações sim, são em mim uma mudança, não o que levou a Joana a confrontar-me. É que, até recentemente, só havia questões simples com respostas simples, dúvidas de solução fácil.
Agora surpreendo-me a pensar na vida. Na minha vida! Pela primeira vez, também, tenho medo.

Ela fez as malas e saiu de casa, foi viver com uma amiga – não conheces. Diz-me que gosta de mim, mas que gosta mais dela. Que eu preciso pensar e que me dá um tempo.
Sei que o tempo é curto mas não sei o que fazer. Ajuda-me.

Um abraço.

Diogo.

PS – Ao reler o texto vejo que no início escrevi que não gosto de defraudar as expectativas. Podia ter apagado, mas não, a ironia reflecte bem a pessoa que eu tenho sido.