quinta-feira, junho 18, 2009

Parassonia

Dá muitas voltas à vida – nunca lhe pareceu que fosse a vida a dar muitas voltas. Estranha quando não reconhece nos mais ínfimos recantos do corpo a fadiga dos dias. É sinal que não se conseguiu afastar a distância necessária. Nessas voltas que inventa para si, centrifuga a sua existência: aquilo que sente a mais. É por isso que o tempo entre o abrandar e o adormecer lhe é o mais insuportável. Confinado ao seu espaço, tudo é mais presente. Corpo e mente não reconciliam a forma e o modo do repouso. As voltas que dá na cama são insuficientes e as paredes estão logo ali. Dói-lhe o arrastar das horas em que se tenta converter em sonâmbulo. Seria, então, menos difícil.




quinta-feira, junho 04, 2009

Mini-Poderes

Apoiou-se com ambas as mãos no lavatório da casa de banho. A cabeça pendeu-lhe dos ombros, parecendo mais pesada que nunca. Sentiu a neblina deixada pelo banho da sua mulher envolvê-lo, como que enviada por Hipnos para o trazer de volta ao leito. Lutou como pôde contra o suave embalo dos deuses, mas as pálpebras continuavam sem obedecer à ordem para se erguerem e deixou-se ficar até que uma inoportuna erecção lhe veio lembrar as imperiosas necessidades que havia que satisfazer.

Saíra da cama há menos de dez minutos e sentia já a culpa das oportunidades desperdiçadas.

A custo, virou cento e oitenta graus e baixou os boxers até aos joelhos. Ficou a coçar o rabo enquanto não foi capaz de descolar as pestanas remelosas. Por fim, pelo canto do olho esquerdo, conseguiu fitar a sanita que, felizmente, foi deixada com a tampa levantada. Precisou de ambas as mãos para fazer pontaria e, no exacto momento em que permitiu a abertura da comporta, teve a certeza que aquele empreendimento ia correr mal: por causa da erecção, por estar ainda mais a dormir que acordado. Não se enganou. Quando a bexiga finalmente se escoou, o seu conteúdo tinha ido parar dentro da sanita, em cima da sanita, e à volta da sanita. Sacudiu-se de alto a baixo, num arrepio e depois, sentindo-os húmidos, abanou ambos os pés, passando, à vez, o peito de cada um pela barriga da perna contrária. Coçou novamente o rabo, conformado com a inevitabilidade das manhãs úteis.

Rodando nos calcanhares, o queixo ainda a não se conseguir desembaraçar do emaranhado de pêlos que espreitavam pela gola da t-shirt, voltou à posição original, no lavatório. Tentou descolar a cabeça do peito, abanando-se, mas todo o corpo se balançou, num gesto de negação.

Maquinalmente, a razão a desafiar a vontade mais profunda, tapou o ralo do lavatório, abriu a torneira, tacteou até à embalagem de espuma para a barba, agitou-a, destapou-a, abriu uma das gavetas, de onde retirou uma lâmina descartável, fechou a torneira e mergulhou as mãos na água fria. Uma onda de choque trespassou-o, soltando-lhe o queixo e quase fazendo os olhos abrirem-se. Dobrou-se então, atirando água à cara, enquanto maldizia a sua vida e tudo o que ela implicava. Repetiu a promessa – nunca cumprida – que fazia de segunda a sexta-feira, religiosamente, àquela hora: que nessa noite se deitaria mais cedo.

Quando se ergueu, lá estava ele, no espelho meio embaciado, mal-encarado como sempre, com ar de que todos lhe deviam e ninguém lhe pagava. Passou a mão pela pequena cicatriz feita na véspera e perguntou-se onde aconteceria a cicatriz de hoje. Uma outra pergunta ecoou-lhe na caixa craniana, propagando-se como um incêndio de Verão, até lhe queimar os lábios. “O que queres ser quando fores grande”?, murmurou. O homem no espelho mostrou-se surpreendido e até chegou a encolher os ombros, sem saber o que responder. Mas havia uma resposta, a mesma que dava quando era infante e que tantas vezes fez sorrir quem o interpelava. “Quero ser super-herói”!

Mergulhou novamente as mãos no líquido frio e, desta vez, não as trouxe à tona, levando antes o rosto a elas. Abriu os olhos debaixo de água e não viu nada, tudo era difuso e inconsistente. Assim como a sua existência, ocorreu-lhe. Ergueu-se em aflição, esquecido que esteve da impossibilidade de respirar. Uma dor funda massacrava-lhe as costas, junto aos rins. Despiu a t-shirt, toda molhada, e procurou nas gavetas uma tesoura, com que cortou os pêlos junto do pescoço, atirando-os para a sanita.

Interrogou-se sobre os motivos daquelas ideias lhe assaltarem o espírito, assim, sem propósito aparente. Talvez fossem apenas sonhos, e os sonhos não se sabe bem de onde vêm, nem porque têm tão estranhos argumentos. Afinal de contas, não estava ele ainda meio a dormir, na casa de banho? Encheu uma mão com espuma e espalhou-a na cara, quase até aos olhos. Manejando a lâmina com movimentos trôpegos, desbravou a face direita, depois a esquerda, o bigode e, quando chegou ao queixo, uma pontada aguda fê-lo perceber que se tinha cortado. Não tardou a que uma pequena mancha escura se propagasse por entre a espuma que restava. Baixou a tampa da sanita e sentou-se. Enquanto observava no espelho, com um misto de atenção e desalento, o ponto cada vez mais vermelho que alastrava lentamente no queixo de um homem que julgou não conhecer, não pôde deixar se considerar as manhãs, em geral, e as casas de banho, em particular, péssimas para reflexões sobre a condição humana. E que os super-heróis não têm barba.