terça-feira, julho 26, 2011

Belo Abismo

Indiferentes ao autocolante que proibia a publicidade, as mais improváveis viagens encontravam sempre a sua caixa do correio. Não havia semana que, a troco de pouco dinheiro, não o aliciassem com um castelo algures, uma vista deslumbrante na serra, um areal dourado junto ao mar, um bailarico na adega mais típica, uma fartura de camarões e mexilhões num restaurante de beira de estrada. E ainda lhe ofereciam um presunto, ou um garrafão de azeite. Aqui não? Aqui sim! Daquela vez, por ser um folheto diferente dos habituais, em vez de ir directo para o ecoponto doméstico, ficou na bancada da cozinha, a aguardar paciência para uma revista aos envelopes do costume.

Foi só ao fim de dois dias que lhes pegou: a taxa de juro que voltou a subir; os metros cúbicos que a empresa decidiu que ele gastou; a listagem dos números de telefone a quem tinha ligado nos últimos trinta dias; inserido no programa “Viagens aos Estados de Alma”, um passeio à beira do abismo. Já se tinha espantado com o valor da Euribor, já se tinha indignado com a quantidade de água que lhe diziam que ele tinha usado, já se tinha surpreendido com o facto de, com tantas chamadas telefónicas feitas, não se lembrar de uma conversa tida, e agora estava intrigado com o destino proposto por aquela agência de viagens. Estariam a gozar com ele? Uma viagem à beira do abismo? Não havia muito mais para ler, mas pegou no folheto para o ler novamente como se nele estivesse escrito o segredo da vida.

“Venha conhecer o verdadeiro abismo, o original”, “um passeio, duas emoções”, “venha descobrir a surpresa que temos para si”, “viagem sem demonstração de produtos”, “autocarro de luxo”.

Para além de um contacto para reservas, nada mais era dito. Não havia fotos do dito abismo.

A primeira reacção foi de descrédito. Haveria alguém que acreditasse em tamanho disparate? Nem como tentativa de fazer humor era grande coisa. Ecoponto com ele.

Deitou-se a pensar no abismo e sonhou com profundezas e cavernas. Ao almoço do dia seguinte, enquanto roía o bitoque, a sua mente vagueava por depressões sombrias. Por mais que se quisesse distrair, parecia não conseguir pensar me mais nada. Abismado, ao chegar a casa, marcou um lugar para si. No fim-de-semana seguinte, iria até à beira do abismo. O original.

Chegou ao local combinado cedo. Mirou tudo muito bem mirado, em busca do mínimo detalhe que não batesse certo. Chegou mesmo a procurar possíveis câmeras de vídeo escondidas, e fez uns quantos sorrisos “a mim não me enganam vocês”, para o caso de estar a ser filmado para os apanhados. Não viu nada suspeito e, à hora marcada, surgiu o autocarro.

Foi recebido por uma sorridente rapariga que, após ele se ter sentado, deu a notícia que estavam todos e que a próxima paragem seria já no destino. O autocarro estava apenas um terço ocupado e todos os companheiros de odisseia pareciam ter idade para serem seus avós. Não sendo animado, o ambiente a bordo era perfumado em demasia e optimista, o que o tranquilizou.

A memória do que aconteceu a seguir é difusa. Lembra-se de sentir uma descarga de adrenalina, um abandono das forças, uma grande serenidade e depois de estar a ser suavemente abanado no ombro.

– Estamos a chegar – disse-lhe a rapariga, ainda mais sorridente.

– Onde estamos?

Ela arqueou muito as sobrancelhas e fez uma careta.

– Estamos à beira do abismo!

A paisagem era escura, com muitos tons de cinzento. Não havia sol e, pelas copas das árvores, o vento tinha aumentado. Estavam junto ao mar.

Não fazia ideia de quanto tempo tinha dormido. Quis perguntar as horas a um casal de idosos, mas estavam todos à conversa, muito excitados, enquanto vestiam os casacos. O autocarro deu uns solavancos ao entrar num caminho de terra batida. Atrás deles, uma nuvem de pó fugia na direcção contrária. Espreguiçou-se e fez uns quantos alongamentos com o pescoço, preparando-se para o que quer que fosse que o aguardava. Meia dúzia de solavancos depois, tinham chegado.

A porta do autocarro abriu-se e a brisa salgada do mar entrou, fria e cortante.

– Vamos abismar – afirmou a guia. Houve quem batesse palmas.

Por entre o que pareciam grandes pedaços de carvão, alguém tinha cimentado um caminho estreito, que serpenteava alguns metros até junto ao mar. Nada de penhascos, nem de profundidades assustadoras. Nada ali era tenebroso ou insondável. Uma senhora, ao chegar ao fim do caminho de cimento, arregaçou-se e, de joelhos, levou a mão à água.

– Está fresquinha – disse ela, para contentamento geral. A rapariga tomou a palavra:

– Pois bem, eis-nos à beira do abismo. Ouve-se por aí muita gente dizer que está à beira do abismo e mais não sei o quê, mas a verdade é que nunca cá estiveram, isto é ainda um sítio pouco conhecido, pouco divulgado, mas que tem grande potencial turístico e nós somos a primeira empresa a apostar nele. No fim do passeio, vou-vos distribuir um diploma que comprova que vocês sim, já estiveram à beira do verdadeiro abismo.

Mais aplausos. Os comentários vieram logo a seguir.

– Muito bonito.

– Não fazia isto nada assim.

– Um bocado ventoso.

– Nós temos cá coisas muito bonitas.

– A bucha será aqui perto? Já tenho a estômago a dar horas…

Entre um misto de raiva, incredulidade e estupefacção, ele tentava organizar as ideias para vociferar um protesto coerente e veemente.

– Alguém quer fazer alguma pergunta? – questionou a guia.

Um dedo reumatismal elevou-se.

– Diga.

– Aquela bóia de salvação está ali a fazer o quê? Quem cai no abismo tem salvação?

– Isso é uma excelente pergunta! Lembram-se de no folheto nós prometermos que este passeio era dois em um e que tínhamos uma surpresa? Pois bem, não só vos oferecemos a visita a um estado de alma, como a dois! – estava agora visivelmente excitada. – É que essa bóia é feita de pedra!

As interjeições e os olhares de espanto percorreram os rochedos.

– Já alguém percebeu?

Ninguém estava a conseguir.

– Apresento-vos a verdadeira, a original, sensação de falsa segurança – e foi juntar-se à bóia, acariciando-a.

Muitos aplausos e sorrisos. Fantástico! Que maravilha! Quem diria! Que local magnifico! Já estava na hora de almoço?

O grupo rodeou a bóia e fizeram a pose mais hirta que conseguiram. Atordoado e ainda sem ser capaz de dizer o que lhe ia na alma, o rapaz tirou a foto ao grupo.

– Já que estamos aqui todos juntos, e antes de irmos almoçar, aproveito para anunciar o próximo passeio.

Um misto de ansiedade e excitação percorreu o grupo.

– Vamos visitar a verdadeira, a original, depressão.

Uma trovoada de aplausos.

Decidiu logo ali que não ia. Para ele, aquele passeio tinha sido três em um.



terça-feira, julho 12, 2011

Grandes Planos

Vemos as coisas de maneira muito diferente. Tu vês mais, consegues uma perspectiva mais abrangente. Abarcas mais realidade.

Tem a ver com a idade e com a maturidade que vem com ela. Não só vemos as coisas de maneira diferente, algumas coisas, pelo menos, como que para mim, muito do que é aparentemente simples, se apresenta logo com a complexidade, o sub-texto, que lhe é intrínseco, e que para vocês, jovens, é como se não existisse, ou existisse apenas depois; quantas vezes, tarde demais. Chama-se a isso, experiência de vida.

Estavam deitados na relva, olhos postos nas copas das árvores e nas nuvens que passavam, as formas estendidas pelo vento alto. O jovem pegou na câmara fotográfica a apontou-a à luz que se esquivava às folhas. Fazia um esforço para conter o riso.

É como te digo, acredita. Eu consigo perceber mais as coisas, apreender melhor o seu significado, tanto o mais evidente, como o mais subentendido. Há outra capacidade para ler as entrelinhas, percebes, ou, como eu prefiro dizer, em captar a alma das palavras.

O jovem disfarçou o riso incontido com tosse seca. Ia dizer que sim, mas não foi a tempo.

Isto não é para toda a gente, não penses; mas não te preocupes, conhecendo-te como conheço, sei que também vais conseguir. Percebo em ti capacidade para isso. Apenas tens que manter a tua estrutura interna em equilíbrio, não te dispersares com o acessório, não saíres do caminho. Sabes, as bermas nem sempre são atalhos. Pode parecer que fora do caminho vamos mais depressa, mas quase nunca é assim. Queimar etapas pode ser prejudicial, e acabarmos também nós chamuscados.

Fez-se silêncio. O jovem debatia-se com o que tinha vontade de dizer e o mais velho ia dizendo que sim com a cabeça. Depois, falou.

Quero que saibas que podes contar comigo.

Eu sei que sim e agradeço, mas o que eu queria dizer é que com essa tua lente, a grande angular, se consegue ver coisas, tirar fotos, que eu, com a minha, não consigo.

De olhos fechados, o outro ia dizendo que não com a cabeça.


(faz hoje seis anos que esta brincadeira começou. hoje, já não é uma brincadeira. algures por entre estes mais de dois mil dias, deixou de o ser. acho que agora já não é coisa nenhuma. abraço)