terça-feira, janeiro 29, 2008

Seis Estações Para o Destino (3)

As últimas pessoas que saíram da composição iam já a meio da escada. Não havia sinal da rapariga das calças escritas, nem da leitora de Goethe. Quis lembrar-se do rosto delas e não conseguiu. Frederico não tinha nada para lhes dizer mas, inexplicavelmente, sentia que faltava alguma coisa – na confusão da saída, não tinha guardado memória delas enquanto pessoas, apenas enquanto significados que lhes atribuiu. Sabia que as não voltaria a ver.

Deu três passos largos na direcção dos degraus e subiu-os aos pares, quase atropelando um casal de idosos a quem já não era permitida pressa. Estacou. Muitas pessoas seguiam em todas as direcções. Rodou a cabeça na direcção dos acessos à rua. Nada. Foi então que, na direcção do acesso à linha vermelha, viu um conjunto muito coeso de caracóis louros a navegar por entre um mar de cabelos escuros. Ainda havia esperança. Deu o impulso necessário para começar a correr, mas algo lhe reteve o braço direito. Olhou espantado para uma coisa pálida, sarapintada de manchas castanhas e percorrida por finos fios esverdeados que estava agarrada ao seu cotovelo. Parecia ser algo mole, sem força, mas uma série de protuberâncias articuladas, que dela saiam, cheias de cabelos engelhados, mantinha-o no lugar. Uma voz débil misturou-se com o barulho da hora de ponta que começava e coou-lhe na cabeça, aumentando a sua confusão. E se havia coisa que Frederico não apreciava era confusão. E traição e desordem.

“O senhor viu o que fez?” Conseguiu desviar o olhar da coisa branca – que, percebia agora, era carne – e encarou um velhote que o mirava com uma intensidade inusitada. Reparou que o homem tinha duas coisas daquelas, uma no seu cotovelo e a outra estava entregue a uma mulher, velha como ele, com o cabelo branco como ele, da mesma altura dele, com uma gabardine amarelo-torrado igual à dele e com uma cara de reprovação igual à dele. “Não viu, pois não?” Quis dizer alguma coisa, mas olhou antes na direcção da linha vermelha. Os caracóis tinham desaparecido. “Pois fique sabendo que ia dando um valente encontrão na minha mulher”, continuou o homem, fulminando-o com um olhar que, há uns anos atrás, teria queimado. “Sabe que ela sofre dos ossos e que se você a derruba tínhamos aqui um grande sarilho?” “Se eu a ia derrubando é porque não derrubei”, respondeu-lhe Frederico, ao mesmo tempo que, com um movimento brusco, se libertou da mão do homem. Antes de sair a correr, ainda pediu desculpa, ao que o velho respondeu alguma coisa que não ouviu.

Foi encontrar a mulher a meio da passadeira rolante, presa no tráfego congestionado por quem aproveita a boleia mecânica para dar descanso aos passos. Viu também a rapariga da ganga grafitada. Tinha ido pela escada lateral. Avançou uns metros e virou-se para trás, sorrindo. Surpreendido, Frederico pensou que tinha sido apanhado: a rapariga tinha percebido que ele a estava a observar. Ia voltar para trás quando reparou que não era para si que ela sorria. Acabada de desaguar da passadeira, a mulher arrumava o jovem Werther na mala que levava a tiracolo. Depois, num gesto gracioso passou o braço direito por cima dos ombros da rapariga, que continuava a sorrir e que, por sua vez, passou o braço esquerdo pelas costas da mãe, que lhe devolveu o sorriso.

Seguiram abraçadas em direcção a Oriente.

Frederico voltou para trás. Tinha a cara rasgada pelos lábios – se se visse ao espelho, ter-se-ia certamente espantado com a elasticidade da sua boca. Não viu o casal passar por si, mas na sua cabeça duas vozes débeis fizeram-se ouvir: “mal-educado”.


FIM

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Seis Estações Para o Destino (2)

Mais uma paragem. Duas pequenas multidões cruzam-se ao abrir da porta, numa sucessão de encontrões que a ninguém parece perturbar. Quem chega não tem onde se sentar. Nas expressões, vê-se instalar uma ainda maior pressa em dali sair. Mas o semáforo não passou a verde e ali ficaram todos, imóveis, muito ciosos do seu pequeno território, partilhando o mesmo ar saturado e a mesma impaciência. Frederico apreciou o tempo extra, que a resposta teimava em não chegar, mas um movimento feito por uma passageira, captado pelo canto do olho, chamou-lhe a atenção e distraiu-o do raciocínio que tinha eleito como passatempo. Um simples virar de página.

De pé, ao fundo da carruagem, entre os dois bancos, uma mulher lia um livro. Era uns anos mais velha, tinha a cabeça cheia de caracóis louros e o olhar escondido atrás de compridas pestanas, fiel à leitura. Usava a triskle celta num colar e vestia discretamente, em tons de Outono. Não tinha nada escrito na roupa nem havia nela o mínimo vestígio de rebeldia ou protesto, no entanto, algo fez com que Frederico a associasse à rapariga das calças escritas – talvez fosse por estar a ler aquele livro ou, simplesmente, por estar a ler um livro, cada vez mais um acto de rebeldia. “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe.

Um apito estridente soou, as portas da carruagem fecharam-se e o comboio reiniciou a marcha. Alegre, eu, por haver partido! Frederico, que havia feito um trabalho sobre ele na Faculdade, não conteve o riso e soltou uma pequena gargalhada, ao recordar as primeiras palavras do livro. Um rapaz com muitas borbulhas na cara, que estava ao seu lado, olhou para ele fazendo-o corar. Tossiu para disfarçar.

Talvez fosse o pequeno pingente, que lhe caia no peito, a ligação. Os olhos de Frederico ganharam um súbito brilho ao recordar a tatuagem que a sua amiga Lara tinha nas costas, logo abaixo do pescoço. Mais estilizado, era aquele mesmo símbolo que a mulher usava no colar. E ele até sabia o que significava, que Lara tinha feito questão de lho explicar durante um jantar de amigos: de origem celta, ligado à natureza, representa as três faces da mulher – a anciã, a mãe e a virgem – e é usado como talismã, atraindo as três principais qualidades femininas – intuição, ternura e beleza – ajudando a proteger dos males. Na altura a coisa complicou-se, quando Tomás, um amigo comum, interrogou Lara – em modos que pareceram a Frederico algo bruscos e que ele atribuiu a algum excesso de álcool – se ela sabia quem Simone de Beauvoir era e como é que alguém, em pleno século XXI, para mais uma fêmea, podia reduzir a mulher a apenas três facetas. Mais vale irem todas para casa passar a ferro. Lara, que não era de se ficar, tratou de contra-argumentar. Filipa e Teresa juntaram-se-lhe. Vendo-se em inferioridade numérica, sem apoio dos restantes homens presentes, Tomás subiu para uma cadeira falou brevemente em Betty Friedan e chamou-as de incultas, abandonando o tema feminismo para passar a atacar essas bruxarias em que vocês acreditam e com que, alegremente, pintam o corpo.

Frederico, a quem nada daquilo interessava, foi para a varanda apanhar ar com a secreta esperança que Filipa também fosse. Seria uma boa oportunidade para meter conversa com ela, que tema não faltava. Mas ela não foi e, semanas depois, ele continuava à espera de uma desculpa para lhe ligar. Mulheres, pensou ele com um suspiro. Com ar intrigado, o rapaz das borbulhas mirava-o pelo canto do olho.

Sim, mulheres. Frederico regressou à carruagem. Trazia conclusões: a leitora de Goethe, à sua maneira, discretamente, acabava também, tal como a rapariga, por proclamar parte das suas crenças, no fundo, parte daquilo que ela era. Talvez todos o façamos durante a nossa vida, de uma maneira ou de outra, pensou.

Olhou para si de alto a baixo. Virou-se para a porta e observou com a minúcia que lhe foi possível o seu reflexo no vidro. O que diriam de si aquelas roupas, o seu cabelo desgrenhado e a barba de três dias? Algo mais que ele não tinha gosto para se vestir e que frequentava um mau barbeiro? Estaria alguém a observá-lo naquele preciso momento e a tirar conclusões? Subitamente assustado, olhou na direcção do rapaz das borbulhas que, o mais depressa que conseguiu, desviou o olhar para a publicidade a um crédito telefónico, tentando disfarçar.

Frederico ia explicar-lhe o porquê de se estar a ver ao “espelho” – não podia deixar que o outro achasse que era vaidoso –, mas as portas abriram-se e o rapaz tomou a direcção da saída. Sucederam-se vários encontrões e vagos pedidos de licença. Muita gente saia ali, inclusivamente a rapariga das calças escritas e a mulher do livro. Frederico sentiu-se perdido e desorientado. Uma catadupa de decisões a tomar bloqueou-lhe as sinapses. Onde estava? Olhou para o apeadeiro. Alameda. Era também ali que saía. Tomou a direcção da porta, mas já ninguém saía, só se entrava e ninguém se mostrou solidário com os seus pedidos de passagem. Foi a custo – e à força de empurrões – que conseguiu sair no último momento, tendo ainda sido apertado pelas portas que já se uniam. (continua, ainda)


quarta-feira, janeiro 16, 2008

Seis Estações Para o Destino (1)

No cais da estação de Metro, com as biqueiras sujas dos All Star milimetricamente perpendiculares à linha amarela, pensava nas traições que a idade lhe começava a infligir – aquela dor que se lhe enfiava na zona dos rins sempre que estava de pé, na mesma posição, mais que dois minutos era uma dessas traições. Cerrou os dentes com força. Se havia coisa que não apreciava, era traição.

O volume de voz da rapariga que, pelos altifalantes, mantinha os impacientes passageiros ao corrente das notícias de há dois dias, aumentou, anunciando, ainda antes do placard electrónico, a aproximação da composição ferroviária. Um sopro quente, com cheiro de carris soterrados, foi empurrado para a galeria do arquitecto Siza, precipitando os corpos, até então respeitadores, para lá da linha. Um senhor gordo e demasiado vestido, que transpirava abundantemente das patilhas, deu-lhe um encontrão, fazendo-o pisar o risco. Cerrou também os punhos com força – não apreciava traições nem desordem.

Foi encafuado não tanto por vontade própria, mas pelas circunstâncias, numa das extremidades da composição, junto à porta que só abre no trajecto inverso. De pé, que nem tentou procurar lugar sentado, tão grande era a ansiedade em aliviar o peso do corpo que sentiu nos companheiros de viagem. Teria de suportar os rins durante seis estações. Nada a que não estivesse habituado. Antes assim. Bem vistas as coisas, ia mais à vontade pé, que nunca sabe onde pousar o olhar quando tem desconhecidos sentados mesmo à sua frente. Encontrou conforto na máxima que lhe ocorreu naquele momento: suporta-se melhor o lombo dorido que o olhar perdido.

Sorria para dentro quando uma rapariga lhe chamou a atenção – não tanto ela, mas mais as calças que usava. Depois de matutar no assunto durante um momento, Frederico concluiu que começava a não ter também já idade para se recordar de algumas coisas que tinham tido importância na sua juventude. Começavam a ficar já longe demais, ténues vestígios que, amiúde e pelas razões mais estranhas, o faziam regressar ao passado. Viu-se no alto de uma comprida curva que lhe fez lembrar o dorso de um Dromedário. Subitamente, a curva estremeceu e ele desequilibrou-se, começando a cair em direcção a uma das extremidades. Tinha 35 anos e sentia-se velho.

O comboio chiou no aperto da curva e deu um solavanco tal que o arrancou do sítio e dos pensamentos cinzentos. Reconquistado o equilibrio, achou curioso o tipo de questões que com ele implicavam, mesmo quando se encontrava em sofrível situação de equilíbrio, entalado entre desconhecidos e em permanente esforço de contenção, tentando não tocar em alguém.

Do que ele não se tinha conseguido lembrar da sua juventude, eram as razões que o tinham levado a, no 10º ano, escrever a esferográfica numa mochila verde-tropa em que carregava um caderno e alguns livros para a escola. É que a rapariga sentada perto dele – e que teria a sua idade de então – tinha as calças de ganga todas escritas a esferográfica. Havia letras de todo o formato, tamanho e cores. Umas redondas, outras angulosas. Havia palavras isoladas e frases mais ou menos longas. Umas eram em português, mas a maioria em inglês. Havia filosofia e muita música. Um tratado de vida, concluiu Frederico, sem saber bem o que isso significava.

The only moment we were alone. First breathe after coma. Your hand in mine. Six days at the bottom of the ocean. Three Seed. Lets dance to Joy Division. The stylish kid in the riot. Cool kids wear Ray Ban. Poupar a vontade. Amar é metade de crer. Carpe Diem.

Havia mais, mas não conseguiu ler por impossibilidade de se aproximar.

Nos anos 80, pelo menos na sua escola, chegou a ser moda, mas hoje, depois de tanta coisa ter acontecido, pensava que a juventude já tinha encontrado outras formas de exteriorizar as suas crenças e angústias – coisas mais “radicais”, como tatuagens e piercings. Mas a rapariga ali estava, sentada perto dele, olhar vago e muito compenetrada na música que lhe chegava através de dois fios brancos, que desapareciam num saco que ela transportava ao ombro.

Faltavam quatro estações para o destino, o tempo possível para que Frederico se recordasse das razões que o tinham levado, há muitos anos, a escrever na sua mochila, que à superfície lhe era mais difícil divagar. Eram coisas que hoje lhe pareciam parvas – Up The Irons, Megadeth, peace sells but who’s buying, Hell Raiser, é proibido proibir… Carpe Diem, um clássico destas coisas –, mas que na altura lhe pareceram ser de rebeldia, anti-o-que-quer-que-fosse, muito anti-quem-mandava. Seriam as mesmas razões que levavam uma adolescente a escrever nas calças, hoje? Concentrou-se.