As últimas pessoas que saíram da composição iam já a meio da escada. Não havia sinal da rapariga das calças escritas, nem da leitora de Goethe. Quis lembrar-se do rosto delas e não conseguiu. Frederico não tinha nada para lhes dizer mas, inexplicavelmente, sentia que faltava alguma coisa – na confusão da saída, não tinha guardado memória delas enquanto pessoas, apenas enquanto significados que lhes atribuiu. Sabia que as não voltaria a ver.
Deu três passos largos na direcção dos degraus e subiu-os aos pares, quase atropelando um casal de idosos a quem já não era permitida pressa. Estacou. Muitas pessoas seguiam em todas as direcções. Rodou a cabeça na direcção dos acessos à rua. Nada. Foi então que, na direcção do acesso à linha vermelha, viu um conjunto muito coeso de caracóis louros a navegar por entre um mar de cabelos escuros. Ainda havia esperança. Deu o impulso necessário para começar a correr, mas algo lhe reteve o braço direito. Olhou espantado para uma coisa pálida, sarapintada de manchas castanhas e percorrida por finos fios esverdeados que estava agarrada ao seu cotovelo. Parecia ser algo mole, sem força, mas uma série de protuberâncias articuladas, que dela saiam, cheias de cabelos engelhados, mantinha-o no lugar. Uma voz débil misturou-se com o barulho da hora de ponta que começava e coou-lhe na cabeça, aumentando a sua confusão. E se havia coisa que Frederico não apreciava era confusão. E traição e desordem.
“O senhor viu o que fez?” Conseguiu desviar o olhar da coisa branca – que, percebia agora, era carne – e encarou um velhote que o mirava com uma intensidade inusitada. Reparou que o homem tinha duas coisas daquelas, uma no seu cotovelo e a outra estava entregue a uma mulher, velha como ele, com o cabelo branco como ele, da mesma altura dele, com uma gabardine amarelo-torrado igual à dele e com uma cara de reprovação igual à dele. “Não viu, pois não?” Quis dizer alguma coisa, mas olhou antes na direcção da linha vermelha. Os caracóis tinham desaparecido. “Pois fique sabendo que ia dando um valente encontrão na minha mulher”, continuou o homem, fulminando-o com um olhar que, há uns anos atrás, teria queimado. “Sabe que ela sofre dos ossos e que se você a derruba tínhamos aqui um grande sarilho?” “Se eu a ia derrubando é porque não derrubei”, respondeu-lhe Frederico, ao mesmo tempo que, com um movimento brusco, se libertou da mão do homem. Antes de sair a correr, ainda pediu desculpa, ao que o velho respondeu alguma coisa que não ouviu.
Foi encontrar a mulher a meio da passadeira rolante, presa no tráfego congestionado por quem aproveita a boleia mecânica para dar descanso aos passos. Viu também a rapariga da ganga grafitada. Tinha ido pela escada lateral. Avançou uns metros e virou-se para trás, sorrindo. Surpreendido, Frederico pensou que tinha sido apanhado: a rapariga tinha percebido que ele a estava a observar. Ia voltar para trás quando reparou que não era para si que ela sorria. Acabada de desaguar da passadeira, a mulher arrumava o jovem Werther na mala que levava a tiracolo. Depois, num gesto gracioso passou o braço direito por cima dos ombros da rapariga, que continuava a sorrir e que, por sua vez, passou o braço esquerdo pelas costas da mãe, que lhe devolveu o sorriso.
Seguiram abraçadas em direcção a Oriente.
Frederico voltou para trás. Tinha a cara rasgada pelos lábios – se se visse ao espelho, ter-se-ia certamente espantado com a elasticidade da sua boca. Não viu o casal passar por si, mas na sua cabeça duas vozes débeis fizeram-se ouvir: “mal-educado”.
FIM