quinta-feira, junho 12, 2008

Eu

Gostava de saber escrever. Tenho um caderno de apontamentos que é uma miséria.

Gostava de saber desenhar. Tenho um caderno de esquissos que é uma desgraça.

Gostava de ter boas histórias para contar. Tenho uma imensidão de páginas vazias.

Gostava de saber completar os espaços em branco. Tenho as ideias extraviadas.

Gosto tanto. De tanta coisa.



Este blogue vai em busca da magia das águas. Volta em Julho. Um abraço.

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quarta-feira, junho 04, 2008

O Aniversário

Patrícia mordeu o lábio inferior e abriu muito os olhos, como faz sempre que está perante uma dificuldade.
Por momentos, conseguiu abstrair-se da situação difícil em que a filha Joana a tinha colocado. Olhando para ela, reparou como estava diferente, como tinha crescido, desde a primeira vez em que lhe tinha feito uma pergunta a que não sabia muito bem como responder, fazia naquele dia, precisamente, dois anos. Os caracóis tinham-se tornado mais escassos e mais abertos, na exacta proporção em que o cabelo se tinha tornado menos claro; a expressão perdera passividade e os olhos, muito azuis, ganho preponderância no seu rosto redondo e terno.
Quase a completar cinco anos, era um compêndio de dúvidas, exigindo para todas, resposta rápida e convincente.

Após vários meses de luta contra o cancro, o pai de Patrícia morrera e, durante vários dias, Joana fez muitas perguntas sobre o desaparecimento do avô. Havia entre ambos uma relação especial. Viúvo e com apenas aquela neta, coube-lhe, desde cedo, a tarefa de a ir buscar à Creche e entretê-la até que um dos pais a fosse buscar. Foram muitas as histórias que lhe contou, muitos os sítios onde a levou a passear, os lanches que dividiram, as gargalhadas que partilharam. De um dia para o outro, o avô deixou de puder fazer essas coisas, passava o dia deitado num sítio estranho, onde estavam muitas pessoas tristes, e já não a ia buscar, já não lanchavam juntos, nem iam passear. Continuava a contar-lhe histórias, mas também já não ria como antes. E depois, desapareceu.
A mãe falou-lhe do céu, de anjos e de como o avô tinha ido para um lugar melhor, mas isso só lhe aumentou a confusão: se era bom estar no céu, porque não iam para lá, ter com o avô?

Mordendo o lábio e com os olhos arregalados, Patrícia olhou em redor. Não eram muitas as pessoas que tinham vindo propositadamente à missa de celebração do segundo aniversário da morte do pai, mas a igreja estava quase cheia – sobretudo com as paroquianas de sempre, as que, todos os finais de tarde, cumprem o mandamento de Cristo de fazer o que ele mesmo fez na Última Ceia.
Nos últimos dias, tinha tentado explicar à filha o que era uma missa e que esquisita ideia era essa de celebrar o desaparecimento de alguém de quem se gosta. Agora, em plena homilia, era confrontada com o que lhe pareceu ser o seu fracasso.
Os fiéis olhavam para Patrícia. Uns sorriam, outros nem por isso. O padre tinha-se calado e um inusitado silêncio caiu sobre a audiência, como se estivessem todos à espera da sua resposta.
Impaciente, Joana puxou a mão à mãe e repetiu, bem alto, a pergunta:


– Quando é que cantamos os parabéns ao avô?


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