segunda-feira, março 29, 2010

44

Joaquim Manuel ia numa aflição. Na verdade, ia para o Cais do Sodré. Isto é, ia para a Cruz Quebrada. Ou melhor, queria muito chegar à primeira praia. E depressa. E daí a aflição - não por a Cruz Quebrada já não ser praia com maiúscula, que isso até era uma vantagem. Joaquim Manuel era dado a pensamentos tortuosos, especialmente à noite, e na noite passada (em vigília, mais uma) deu por si a matutar em defeitos próprios e alheios. Como não se dava bem com puzzles e com labirintos (nem com palavras cruzadas, sudokus, sopas de letras e afins), chegou à paragem do 44 ainda antes dos primeiros raios de sol. Dali para o comboio e depois para a espécie de areal no fim da cidade. Para ele, a praia era o contrário da noite. O sítio onde não havia curvas nem esquinas.



(este texto veio de autocarro, daqui)

quarta-feira, março 17, 2010

O Alarme

– Então, o que é que se faz por aqui para passar o tempo? – o misto de jovialidade e ingenuidade com que a pergunta foi feita, conferiu-lhe uma particular frieza. Sentada à janela, instintivamente, a mulher levantou a cabeça do tricô e o olhar fugiu-lhe para o exterior, para o mais longe que a vista conseguiu alcançar, indo fixar-se numa grua que se erguia acima do contorno da cidade. Era a primeira vez que visitava a avó sozinho, e por sua iniciativa, na residência para a terceira idade. Nem dessa nem das vezes que tinha ido com os pais, tinha reparado num papel que, fechado numa caixa de alumínio e vidro, à entrada, enumerava as regras que os visitantes deviam observar. Eram muitas, mas faltava ainda uma, talvez a mais importante: não mencionar a passagem do tempo.

Já não esperava resposta da avó enquanto a via perdida na paisagem encaixilhada da única janela do quarto. Reparava nas rugas daquela face mil vezes beijada, espantando-se por nunca antes as ter sentido nos lábios, como havia sentido momentos antes.

– Vivem-se as solidões em conjunto – a frase desenhou um círculo no vidro, embaciando-o durante breves momentos. Quando a auréola de humidade se desvaneceu, um sorriso familiar, ainda que sem vida, estava desenhado por baixo. Inquietou-se com aquele momento e mais ainda quando os seus olhos encontraram o reflexo dos da avó e percebeu que ela o tinha estado a observar. – Sabes, a partir de uma certa idade, ninguém gosta de ser lembrado que a contagem decrescente está quase a terminar. E aqui dentro, tudo parece caminhar para zero – o sorriso era agora franco, como ele o recordava de sempre.

O som ténue de uma granada de morteiro a cair soou no quarto. Apressou-se a tirar o telemóvel do bolso interior do casaco; a mensagem tinha chegado na melhor altura, safando-o do constrangimento de não perceber nada do que se estava a passar. Respondeu com polegares ágeis e depois encolheu os ombros à avó, que estava agora de pé, a arrumar a lã e as agulhas na mesa-de-cabeceira.

– E se fossemos lanchar? – perguntou ela, com animo. – Hoje é o dia em que o chá vem acompanhado com bolas de massa no forno e doce. As raparigas que aqui trabalham chamam-lhe scones, mas são bolas de massa que elas deixam sempre cozer demais; e como a clientela pode bem dos dentes, é sempre uma tarde divertida…

De braço dado, dividia a sua necessidade de apoio enquanto andava entre o neto e uma bengala. Caminhavam lentamente e em silêncio ao longo de um comprido e mal iluminado corredor. Ter um braço ocupado não o impediu de responder a mais uma mensagem.

– Aqui, tenta-se não desperdiçar um minuto que seja. A maioria das pessoas, pelo menos – a princípio, ficou sem saber se a avó falava com ele ou com alguém que se lhes tivesse juntado. – A tua pergunta de há pouco… há quem leia os livros que nunca leu, há quem releia os livros de que mais gostou, uns pintam, outros jogam, conversam e depois há o senhor Alípio… – disse ela, a voz a ganhar súbita rispidez. Na extremidade do corredor, em cadeira de rodas, aproximava-se deles um senhor de pijama e chinelos, muito seco, a cara chupada e a barba por fazer. Há medida que se aproximava, os olhos prenderam a atenção do rapaz. Eram muito claros e vivos, de uma cor indefinida que brilhava. A avó deteve-se, à espera dele. Fez cara de zangada. O homem parou junto deles.

– Sabes o que fez o senhor Alípio no Natal passado? Carregou no alarme de incêndio e obrigou a evacuar a residência. Não fazes ideia do pandemónio! Mas vai-me prometer que na Páscoa não o volta a fazer, não vai?

O senhor Alípio esperou que a avó e o neto retomassem o caminho. Não disse nada, nem se mexeu. Quando o miúdo olhou para trás, piscou-lhe um olho e esboçou o que pareceu um sorriso.

quarta-feira, março 10, 2010

Papel de Embrulho

sei de um alfarrabista – homem da idade dos livros que vende – que embrulha as obras em folhas de lista telefónica. coisa estranha para mim, mas nunca juntei a coragem suficiente para lhe perguntar porquê. certa vez, ao lá regressar depois de um espaço de tempo maior que o habitual, tive que me deter antes de atravessar a rua. à porta dos livros, ou eu estava muito enganado, ou era o vulto do alfarrabista que se debatia com a nuvem que se soltava de um assador de castanhas – daqueles que têm motocicletas atreladas. o estranho não era ele estar ali, era apenas ele estar ali. atravessei e fui logo perguntando, não me diga que agora vende castanhas. está bem, não digo, respondeu ele com uma malandrice que lhe não adivinhava. e sem perder balanço ou pedir licença, continuou com as palavras. entre o espanto e a surpresa, escutei. sabe, os livros têm esta coisa de me por a pensar. não me põem a comer, mas a pensar, é fácil; e a pensar em tudo. no outro dia foi nas listas telefónicas. tristemente, acumulei demasiadas. o que fazer com tantas, dei por mim a cogitar. reciclar. não, isso era sinónimo de derrota, só me lembrava braços caídos; daí a lembrar-me das castanhas foi um pulo epistemológico, e cá estou. arrendo este assador até aos Reis, continuo com os livros e compõe-se o orçamento. o melhor de dois mundos. ele com aquela conversa e eu só a pensar nos livros embrulhados em números de telefone e moradas. era agora ou nunca que lhe perguntava como lhe baixara tamanha ideia. ouça cá... cortou-me a frase um tipo com umas bochechas gordas, a segurar uns papéis enxovalhados e que parecia ter acabado de correr uma grande corrida. soluçou ele, boa tarde. e depois ficou a ofegar e a raspar com as costas da mão o suor da testa. na traseira do colete que ele envergava topei-lhe uma sigla. ele, de novo, ainda às voltas com o pouco oxigénio e com o fumo, o senhor... não sabe... que não pode... estar a fazer isso. custou-lhe tanto a frase que nem lhe colocou interrogação. eram quatro letras brancas em fundo negro, grandes e que, à primeira, me tinham parecido soletrar AZAR. deixei os homens a cuspir já frases pouco pensadas e entrei no estabelecimento dos livros. em cima do balcão, seis listas telefónicas aguardavam a vez de serem esventradas. pouca sorte a delas.

terça-feira, março 02, 2010

O Peixe Banana

Entrando na biblioteca, ela:

– O que é isto? Um homem empoleirado!? Mas que faz o senhor aí?

– Peço perdão, mas também não sei.

– Oh! É possível?!

– Não sei, palavra de honra.

– Simplício…

– Mafalda…

– Céus! Como te encontras aqui?

– Mas tu… és tu?

– Mais baixo, que podes comprometer-me. Mas diz, porque viste? Procuravas-me?

– Há 30 anos! Mas és tu a pantera… ou quer dizer, a marquesa?

– Sim, sou eu. Mas por onde tens andado para só agora me apareceres?

– Sei lá. Teus pais levaram-te para Espanha e eu emigrei para África e lá morri.

– Morreste?

– Morri para o mundo, para ressuscitar agora que te tornei a encontrar. E tu, casada?

– Não, viúva. Mas conservei-me sempre fiel ao meu primeiro amor, que foste tu.

– Também eu, Mafalda. Fiel como o cão de Guerra Junqueiro.


Consegue recitar de memória os principais diálogos dos filmes portugueses mais populares. Os antigos, claro, os bons filmes, aqueles que enaltecem os valores certos, que ele aprendeu a cultivar e a apreciar nos outros; nada como os filmes de agora – e “agora” significa mais de três décadas – onde apenas há violência, decadência, amoralidade, corpos despidos e almas nuas. Não que o saiba por experiência própria, que não entra numa sala de espectáculos desde o reviralho caryophyllus, como chama ao 25 de Abril, mas continua a ler nos jornais o que por cá se vai fazendo, e bastam-lhe os resumos dos enredos para saber que o cinema português está entregue a uma corja amalgamada de pseudo-iluminados que tudo quer expor, de preferência, em carne viva: corpos e espíritos. Que é feito de uma Maria Matos e de um António Silva? Os bons actores tinham desaparecido com os bons filmes.

Recorda o diálogo entre dois dos seus actores preferidos, d’ O Costa do Castelo, ao entrar no Jardim Guerra Junqueiro – mais conhecido como Jardim da Estrela.

Apesar de não ser propriamente um jardim de recantos, consegue encontrar lá, nalguns locais, durante certas horas de certos dias, o sossego interior que, às pessoas como ele, apenas vem quando estão ao ar livre: uma calma não inteiramente pacifica, em que o som da cidade faz falta como ruído de fundo, filtrado que chega pelas copas das árvores centenárias e pelo deambular errante das outras pessoas velhas que por ali esgotam algum do tempo que lhes sobra. Um sossego não tão profundo como aquele que se apodera de uma pessoa de uma certa idade que vive sozinha num pequeno apartamento ainda mais antigo que ela, rodeada de coisas que apontam para trás, para o que já foi. A isso, ele chama desespero. E, portanto, sempre que pode, vai para a rua.

Aquele pedaço do jardim é o seu predilecto. Tem um muro coberto de vegetação quase a toda a volta, um pequeno charco que o torna fresco nos dias de calor, muita sombra, a estátua de um escritor e poeta que faz boa companhia e não tem onde sentar – não havendo bancos, ninguém por ali se demora muito. Apesar da idade, o facto de as suas pernas não o deixarem ainda ficar mal, enche-o de orgulho – e é também para sentir essa satisfação que por lá se demora. Mas é uma satisfação que não partilha com ninguém: não porque não quer, apenas porque leva uma vida em que os afectos foram sempre uma coisa acessória e dispensável; algo a que nunca sentiu a falta. Uma sucessão de relacionamentos inevitavelmente rarefeitos, em que foi cumprindo intermitentemente, mais por obrigação que por convicção, aquilo que considerava serem os preceitos obrigatórios de uma relação entre duas pessoas, tinham-lhe sido suficientes para a condução de uma vida… suficiente. Nunca teve porque se queixar, até ao dia, já tarde na vida – e não imagina sequer a razão –, em que sentiu a falta de algo, para logo perceber que não era de algo, mas sim de alguém.


Não consegue deixar de sentir que, lá do alto, Antero de Quental o contempla com uma expressão de absolvição e isso chateia-o um pouco. Quem julga Antero que é, que sabe ele da sua existência, para proferir assim sentença?

Mas já olha em redor, certificando-se que está sozinho. Leva a mão a um dos bolsos da gabardine e tira um saco de plástico transparente, que eleva à altura dos olhos. Fixa a mancha vermelha que se agita no ambiente líquido e toca ao de leve no saco, como forma de encorajamento. Acaba por achar melhor verbalizar o que lhe vai na mente, não fosse a mensagem não chegar ao destinatário. Murmura brevemente sobre as agruras da vida, os obstáculos que é preciso superar, os inevitáveis sacrifícios que há que fazer e as escolhas difíceis com que somos confrontados, quando se quer ser alguém. Olha novamente por cima dos ombros, antes de se colocar ao lado da estátua, na relva húmida, não se importando em sujar os sapatos de lama. Agacha-se junto do charco, desata o nó do saco e despeja o conteúdo com cuidado. O peixe dá uma volta sobre si, vai ao fundo, volta à superfície e, durante algum tempo, ali fica, imóvel.


Àquele homem já de idade, que na tarde cinzenta de Inverno, no Jardim da Estrela, em Lisboa, está agachado junto à água, parece que o peixe lhe devolve com o olhar o sentido das palavras que lhe acaba de dirigir. Quem sabe não vou encontrar em ti o meu primeiro amigo.


paralelo às cores