- Calculei que não fosse.
(acende mais um cigarro)
- Como adivinhaste?
- Não sei, foi algo que intuí. Conhecendo-te como conheço, percebi que não bastaria uma simples vingança.
- Quem te ouvisse… fazes de mim algo que não sou.
- Não me faças rir.
(interrompe a aspiração do cigarro, engasgando-se)
- Porquê, que foi?
- Que foi? Então, Ana é comigo que estás a falar.
- Isso quer dizer exactamente o quê?
- Quer dizer que estou com a cabeça a 200 à hora, tentando fazer com que tudo o que me tens dito faça sentido, tentando encaixar estas revelações em pequenas coisas do passado… atitudes tuas, incongruências, coisas que eu não percebi, que fingi não terem importância e que agora… não sei, de repente, ficou claro para mim que não te podias limitar a responder à letra. A partir do momento em que decidiste a vingança, terias de a complementar com… um toque de requinte.
- Eu não sou assim!
(ergue-se, visivelmente perturbada. Caminha pela sala)
- Mas és, e tu sabes que eu tenho razão.
- Oh…
- E requinte é mesmo o termo adequado. Tu adoras dar um toque… especial, muito pessoal, a tudo aquilo em que te envolves. Aliás, um dos teus fracassos foi nunca me teres conseguido tornar um gajo requintado.
- João, pelo amor de Deus, para quê isso agora?
- Então não estamos no momento das verdades, não foi o que disseste?
- Mas não é deste tipo de coisas que eu estou a falar, acusações que nada adiantam… em saber se tens muito ou pouco requinte.
- Sim, tens razão mas, ainda assim, te digo que tenho razão
(ela suspira e volta a sentar-se)
é verdade que nunca me adaptei ao teu estilo
(faz uma careta quando diz a palavra estilo)
ao teu gosto sofisticado, aos teus amigos… modernaços, todos eles tão.. bem, tão na moda, tão intelectuais. Porra Ana, logo foste gostar de um tipo que tem sempre a merda dos boxers a enfiarem-se-lhe pelo rego do cu acima. Aos teus amigos isso nunca acontece, aposto.
(procura mais um cigarro, mas o maço está vazio; sai do quarto)
- E pronto, aí vamos nós pela rua do disparate a fora…
(dirige-se a uma cadeira onde está a sua mala; procura algo)
- Não te apoquentes que não te vou pedir para admitires que sempre consideraste um fracasso o facto de nunca me teres conseguido fazer entrar no teu meio
(regressa com um copo meio cheio numa mão e uma garrafa quase vazia de Lemoncello na outra)
mas ainda te digo que não te levo a mal por isso, nunca levei, sempre achei legitima essa tua ambição.
- Mentira tua!
(masca furiosamente uma pastilha)
- Mentira, o quê?
- Mentira, sim. Se isso fosse verdade, tinhas feito um esforço, por pequeno que fosse, para te adaptares… e eu nem te pedia isso, que te adaptasses, apenas que tolerasses algumas coisas, que me acompanhasses de boa vontade nalgumas coisas, ainda que te custassem. Mas tu nunca foste sequer capaz de fingir, nunca fizeste a ponta de um corno… que coisa, eu só te pedia que fingisses de quando em vez.
- Terás razão, sim… não tentei lá grande coisa. Mas, verdade seja dita, nunca tive grande jeito para fingimentos…
(acentuou o mais possível o tom irónico da frase; olhou para o telemóvel como que querendo ver o efeito que aquela afirmação tinha produzido)
- Sim, sou melhor nisso que tu.
(senta-se, tentando controlar-se; está abatida)
- Que foi que fizeste mais, Ana?
- Tinha esperança que não quisesses saber… como há pouco tu não…
- Já estou por tudo, acho.
- Se não tivesses perguntado, não te teria dito.
- Arrependimento, tu?
- Sim, bastante.
- Foi assim tão mau!?
(silêncio demorado)
não me faças tentar adivinhar, por favor.
- Não, eu conto-te. É só que… não é fácil… não me diz… não diz respeito só a nós…
- Ana, que foste tu fazer...
- Eu…
(tapa a cara com a mão)
- Foi com quem? Eu conheço, não conheço?
(não obtém logo uma resposta)
- Com o teu primo.
(a frase saiu com uma aspereza não antecipada, o que a surpreendeu; seguiu-se um longo silêncio em que nenhum deles se mexeu)
calculo o que estejas a sentir…
- Não imaginas sequer.
- Sabes, a intenção era mesmo essa, provocar o máximo de dano possível, por isso o escolhi.
- Estás a ouvir-te, Ana?
- Sim, é terrível. Nem eu sabia de que era capaz de fazer o que fiz.
- Assustas-me.
(bebe pelo gargalo todo o conteúdo da garrafa; um esgar rasga-lhe a face)
- Deixa-me terminar.
- Não vale a pena, conseguiste…
- Lembras-te do início desta conversa, do pedido que me fizeste?
(perante a ausência de resposta, continua)
que te ouvisse!?
- Tenho dificuldade em raciocinar…
- Tens razão quando dizes que eu queria algo mais, superar-te na maldade que me fizeste. Quando descobri que me tinhas traído, fiquei cega de raiva. Cresceu dentro de mim algo que me estava a consumir. Só te imaginava com outras mulheres
(arrepia-se; volta a caminhar pela sala)
e depois aquelas tuas desculpas esfarrapadas, de que não tinhas conseguido resistir… como se fosses uma criança pequena, indefesa… que ódio João… só de pensar nisso…
- Mas é a verdade…
- Pára! Por favor, não me digas isso! Não inventes desculpas… assume os teus actos. Por uma vez.
- Como tu o estás a fazer.
- Como um homem.
- Um homem…
(vê-se ao espelho)
- Sabes o que pensei? Isto é horrível, eu não estava em mim, não podia estar… mas quis ver se eram todos como tu, se o teu primo era assim também, se perante os avanços de uma mulher, não conseguia resistir… para mais a mulher do seu melhor amigo.
- Chega Ana, chega…
(senta-se no chão)
- Não, ainda não chega.
- Peço-te, não serve de nada… eu… tu conseguiste… não sei, nem sei que te diga.
- Ele ainda resistiu, ao início… mas foi só enquanto ficou aparvalhado, sem saber se eu estava a sério ou apenas a brincar com ele. Que figura…
- A dele ou a tua?
- A nossa. Eu não quero… eu sei que errei, que fiz algo que jamais…
(engole em seco)
mas fi-lo… e… meu Deus, se pudesse voltar atrás…
- Não sei se alguma vez te conseguirei perdoar.
- Podes até perdoar-me, um dia, mas sei que nunca o irás esquecer, e isso é que é verdadeiramente terrível. Eu também não vou conseguir esquecer o que fizeste.
- Mas tu…
(de dedo indicador direito no ar, faz um esforço por não dizer o que queria; sente que vai chorar)
- Não tenho desculpa, eu sei. Nenhum de nós tem.
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