terça-feira, dezembro 19, 2006

K331 - Alla Turca (sexto andamento)

- Ana…
(levanta-se do chão a custo)
- Sim…
(responde após uma pausa; está estática, a meio da sala)
- Eu queria muito entregar-te o piano.
(procura-o)
- Estás a falar a sério?
- Sempre estive.

(ela deixa escapar uma interjeição)
hoje, sempre estive.
- Eu não o quero, a sério.
- Não vamos ter esta conversa outra vez, peço-te. Acredita por uma vez em mim, quando te digo que não sou capaz de ficar com isto, nem de o deitar fora.

(observa-o)
- Qual é a tua ideia?
(suspira)
- Encontrar-me contigo, cinco minutos, sem dramas, sem… sem trocarmos uma palavra, se for preciso. Entrego-te isto e pronto.
- Para isso, um minuto chega.
- Combinado.

(aquela tinha sido a frase que mais lhe tinha custado ouvir; por seu lado, ela arrepende-se de a ter dito e hesita por um segundo, não sabe se há-de pedir desculpa; não o faz e apagam-se as luzes lentamente)

Acendem-se apenas dois projectores, incidindo cada um numa personagem.
Estão agora na parte central do palco, frente-a-frente.


- Aqui está ele.
(estende-lhe o piano)
- Como uma coisa tão insignificante…
(olha para o piano, não para ele)
- Não o será assim tanto.
- Talvez não seja, verdade…e olha, quero que saibas que não mudou nada, absolutamente nada. Não te quero a pensar que lá por termos falado como o não fazíamos há muito, com uma sinceridade que… bom, podemos voltar ao que tínhamos, ao que éramos antes.

(seca-se-lhe a boca)
eu sei como és, no que estás a pensar, mas não quero isso para mim, não posso… não consigo. O que foi não volta a ser.
(encara-o, por fim)
- Lembras-te do Matias, aquele meu amigo?
- Sim, o do PS, que chegou a ser assessor de um ministro do Guterres!?
- Exactamente. Ele foi com o Guterres para o Alto Comissariado das nações Unidas para os Refugiados, continua a ser um diligente assessor politico. Falei com ele já há uns meses… se sabia de alguma coisa, se me arranjava o que fazer.
- Vais para Genebra?

(não consegue evitar algum espanto)
- Não!
(sorri)
vou para a Zâmbia… para um campo de refugiados angolanos… aquilo tem um nome estranhíssimo…
- Sinto-me uma parva…
- Não penses nisso, tens razões para pensar isso de mim… de qualquer maneira, estou só a arrumar umas coisas antes de partir e… quis deixar-te isso, é teu.
- Aquela história de isto começar a tocar sem mais nem menos…
- É verdade, não é história nenhuma. Isso liga-se a toda a hora.
- Tu, na Zâmbia… vais conseguir?
- Preciso disto, acho que me vai fazer bem. Espero conseguir… espero…
- Vais sim… e olha, quanto ao teu primo, ao que aconteceu…
- Ana, já passou o tal minuto… aliás, já passaram os cinco minutos.
- Está bem…

(silêncio)
- Eu…

Os primeiros acordes da Sonata para piano Nº11, K331 – Alla Turca, de Mozart, fazem-se ouvir.
Ambos olham o piano enquanto as luzes vão perdendo intensidade até se apagarem.

Fim

Quem tiver curiosidade, encontra aqui um link para a música em causa (media player), ou aqui (através do browser).

Uma arreliadora falta de tempo, tem-me afastado da escrita e da leitura. Este andamento final é bem sinal disso.
Aproveito a oportunidade e a época do ano, para desejar a todos uma boas festas pelo corpo todo e dizer que este blogue vai entrar por uns tempos em pausa.

E obrigado.

terça-feira, dezembro 12, 2006

K331 - Alla Turca (quinto andamento)

- Calculei que não fosse.
(acende mais um cigarro)
- Como adivinhaste?
- Não sei, foi algo que intuí. Conhecendo-te como conheço, percebi que não bastaria uma simples vingança.
- Quem te ouvisse… fazes de mim algo que não sou.
- Não me faças rir.

(interrompe a aspiração do cigarro, engasgando-se)
- Porquê, que foi?
- Que foi? Então, Ana é comigo que estás a falar.
- Isso quer dizer exactamente o quê?
- Quer dizer que estou com a cabeça a 200 à hora, tentando fazer com que tudo o que me tens dito faça sentido, tentando encaixar estas revelações em pequenas coisas do passado… atitudes tuas, incongruências, coisas que eu não percebi, que fingi não terem importância e que agora… não sei, de repente, ficou claro para mim que não te podias limitar a responder à letra. A partir do momento em que decidiste a vingança, terias de a complementar com… um toque de requinte.
- Eu não sou assim!

(ergue-se, visivelmente perturbada. Caminha pela sala)
- Mas és, e tu sabes que eu tenho razão.
- Oh…
- E requinte é mesmo o termo adequado. Tu adoras dar um toque… especial, muito pessoal, a tudo aquilo em que te envolves. Aliás, um dos teus fracassos foi nunca me teres conseguido tornar um gajo requintado.
- João, pelo amor de Deus, para quê isso agora?
- Então não estamos no momento das verdades, não foi o que disseste?
- Mas não é deste tipo de coisas que eu estou a falar, acusações que nada adiantam… em saber se tens muito ou pouco requinte.
- Sim, tens razão mas, ainda assim, te digo que tenho razão

(ela suspira e volta a sentar-se)
é verdade que nunca me adaptei ao teu estilo
(faz uma careta quando diz a palavra estilo)
ao teu gosto sofisticado, aos teus amigos… modernaços, todos eles tão.. bem, tão na moda, tão intelectuais. Porra Ana, logo foste gostar de um tipo que tem sempre a merda dos boxers a enfiarem-se-lhe pelo rego do cu acima. Aos teus amigos isso nunca acontece, aposto.
(procura mais um cigarro, mas o maço está vazio; sai do quarto)
- E pronto, aí vamos nós pela rua do disparate a fora…
(dirige-se a uma cadeira onde está a sua mala; procura algo)
- Não te apoquentes que não te vou pedir para admitires que sempre consideraste um fracasso o facto de nunca me teres conseguido fazer entrar no teu meio
(regressa com um copo meio cheio numa mão e uma garrafa quase vazia de Lemoncello na outra)
mas ainda te digo que não te levo a mal por isso, nunca levei, sempre achei legitima essa tua ambição.
- Mentira tua!

(masca furiosamente uma pastilha)
- Mentira, o quê?
- Mentira, sim. Se isso fosse verdade, tinhas feito um esforço, por pequeno que fosse, para te adaptares… e eu nem te pedia isso, que te adaptasses, apenas que tolerasses algumas coisas, que me acompanhasses de boa vontade nalgumas coisas, ainda que te custassem. Mas tu nunca foste sequer capaz de fingir, nunca fizeste a ponta de um corno… que coisa, eu só te pedia que fingisses de quando em vez.
- Terás razão, sim… não tentei lá grande coisa. Mas, verdade seja dita, nunca tive grande jeito para fingimentos…

(acentuou o mais possível o tom irónico da frase; olhou para o telemóvel como que querendo ver o efeito que aquela afirmação tinha produzido)
- Sim, sou melhor nisso que tu.
(senta-se, tentando controlar-se; está abatida)
- Que foi que fizeste mais, Ana?
- Tinha esperança que não quisesses saber… como há pouco tu não…
- Já estou por tudo, acho.
- Se não tivesses perguntado, não te teria dito.
- Arrependimento, tu?
- Sim, bastante.
- Foi assim tão mau!?

(silêncio demorado)
não me faças tentar adivinhar, por favor.
- Não, eu conto-te. É só que… não é fácil… não me diz… não diz respeito só a nós…
- Ana, que foste tu fazer...
- Eu…

(tapa a cara com a mão)
- Foi com quem? Eu conheço, não conheço?
(não obtém logo uma resposta)
- Com o teu primo.
(a frase saiu com uma aspereza não antecipada, o que a surpreendeu; seguiu-se um longo silêncio em que nenhum deles se mexeu)
calculo o que estejas a sentir…
- Não imaginas sequer.
- Sabes, a intenção era mesmo essa, provocar o máximo de dano possível, por isso o escolhi.
- Estás a ouvir-te, Ana?
- Sim, é terrível. Nem eu sabia de que era capaz de fazer o que fiz.
- Assustas-me.

(bebe pelo gargalo todo o conteúdo da garrafa; um esgar rasga-lhe a face)
- Deixa-me terminar.
- Não vale a pena, conseguiste…
- Lembras-te do início desta conversa, do pedido que me fizeste?

(perante a ausência de resposta, continua)
que te ouvisse!?
- Tenho dificuldade em raciocinar…
- Tens razão quando dizes que eu queria algo mais, superar-te na maldade que me fizeste. Quando descobri que me tinhas traído, fiquei cega de raiva. Cresceu dentro de mim algo que me estava a consumir. Só te imaginava com outras mulheres

(arrepia-se; volta a caminhar pela sala)
e depois aquelas tuas desculpas esfarrapadas, de que não tinhas conseguido resistir… como se fosses uma criança pequena, indefesa… que ódio João… só de pensar nisso…
- Mas é a verdade…
- Pára! Por favor, não me digas isso! Não inventes desculpas… assume os teus actos. Por uma vez.
- Como tu o estás a fazer.
- Como um homem.
- Um homem…

(vê-se ao espelho)
- Sabes o que pensei? Isto é horrível, eu não estava em mim, não podia estar… mas quis ver se eram todos como tu, se o teu primo era assim também, se perante os avanços de uma mulher, não conseguia resistir… para mais a mulher do seu melhor amigo.
- Chega Ana, chega…

(senta-se no chão)
- Não, ainda não chega.
- Peço-te, não serve de nada… eu… tu conseguiste… não sei, nem sei que te diga.
- Ele ainda resistiu, ao início… mas foi só enquanto ficou aparvalhado, sem saber se eu estava a sério ou apenas a brincar com ele. Que figura…
- A dele ou a tua?
- A nossa. Eu não quero… eu sei que errei, que fiz algo que jamais…

(engole em seco)
mas fi-lo… e… meu Deus, se pudesse voltar atrás…
- Não sei se alguma vez te conseguirei perdoar.
- Podes até perdoar-me, um dia, mas sei que nunca o irás esquecer, e isso é que é verdadeiramente terrível. Eu também não vou conseguir esquecer o que fizeste.
- Mas tu…

(de dedo indicador direito no ar, faz um esforço por não dizer o que queria; sente que vai chorar)
- Não tenho desculpa, eu sei. Nenhum de nós tem.



Encontram aqui mais algumas fotos

segunda-feira, dezembro 04, 2006

K331 - Alla Turca (quarto andamento)

- Tu nunca falaste assim comigo, de uma maneira tão aberta… dramática, mesmo. Não te reconheço.
- Nem eu me conheço, por vezes. Nestes últimos meses, desde que saíste de casa, tenho pensado muito.

(pausa)
não digo que tenha mudado muito, que não mudei, mas tem dado para perceber algumas coisas… tenho-me percebido, o que é bom, acho eu.
- Tu sempre foste… como dizer isto?... quando nos conhecemos não simpatizei nada contigo; havia algo no teu olhar, na tua expressão, que me fazia ficar em sentido. Achava-te… estranho.
- Não tinha ideia, nunca me tinhas dito isso.
- Não? Ia jurar que sim. De qualquer maneira, foi algo que se foi esbatendo à medida que me fui deixando conquistar pelo teu sentido de humor, pela tua maneira de me fazeres sentir especial.

(sorri num misto de ironia e tristeza)
a mesma que depois me fez sentir tão mal.
- Portei-me assim tão mal contigo?
- Portaste João, e o simples facto de teres de me fazer essa pergunta, só me dá razão.
- Mais um vez, desculpa…
- Agora…

(suspira)
ao longo do tempo, tornaste-te uma pessoa diferente, pelo menos para comigo, uma pessoa fria… mesmo ao toque.
- Ao toque?
- Sim, mais frio, literalmente. Eu tocava-te e estavas frio.

(arrepia-se)
o teu olhar, às vezes… ficava parado, gelado. E eu ficava a imaginar o teu coração, assim, também gelado, parado… um bloco de gelo.
- Agora és tu que estás a ser melodramática, Ana.
- Talvez esteja, mas havia alturas em que estar contigo me causava temor… medo, ou o que quer que fosse… só sei que era algo mau, algo que me fazia mal, que me levou a… que me fez…

(parecia não falar já para o telemóvel, antes, pensava alto, como se estivesse a falar sozinha)
coisas que eu não julgava…
- Que coisas, Ana?

(pega num cigarro que faz rodopiar entre os dedos)
- Nada de especial… coisas em que pensamos, que acabamos por fazer sem que tenham a ver connosco.
(cala-se subitamente, como se tivesse percebido algo importante)
- O que me estás a querer dizer?
(senta-se, antecipando a necessidade de um maior apoio do que aquele que o encosto à cómoda lhe proporciona)
- Eu…
(senta-se inclinada para a frente; apoia a cabeça na mão)
sabes… também não sou… não fui… também errei… eu não devia estar com isto.
- Tarde demais!
- Sim, tens razão, agora é tarde.

(tossica, tentando livrar a garganta de algo que não existe)
tu magoaste-me muito, mesmo muito, fizeste descobrir em mim algo que eu própria desconhecia possuir: um ódio enorme… rancor… um ciúme…
(pausa, aguardando uma reacção)
nunca antes tinha sentido ciúmes de ti mas, quando percebi que me traias… João, fiquei tão… danada e enfurecida… Andei assim umas semanas, na esperança que aquilo me passasse, sei lá, mas a verdade é que não passou, aliás, piorava a cada dia… e foi nessa altura que comecei a pensar numa maneira de me vingar de ti.
- Ana…

(ia acrescentar algo que não consegue vocalizar)
- E um dia, vinguei-me.
- Não quero saber!

(levanta-se)
- Agora tenho que te contar.
- Para quê, de que adianta?
- Acho que o mesmo que adiantou teres-me contado o que contaste…
- Não, desculpa, tu apenas me queres magoar. É a maneira de te vingares outra vez.
- Não, não é.
- Até o posso merecer, sei disso, mas tu não és assim… não eras… para quê isso agora?

(fala depressa)
- Porque eu…
- Ficas a saber que eu tenho sofrido o suficiente, que me sinto uma merda, que tenho tido todos os remorsos do mundo.
- Escuta-me. Não te quero fazer sentir pior, apenas quero ser sincera contigo da mesma maneira que foste comigo. Sinto que te devo isso.
- Sentes que me deves magoar? Tu não me deves nada, Ana.
- Sinto que, por uma vez, devemos dizer tudo.
- Não, não quero saber!
- Foi esse o nosso problema, pelo menos, grande parte dele: não falarmos… tu não falavas e eu não perguntava, tu não perguntavas e eu calava-me.

(inspira profundamente)
os nossos temas de conversa passaram a ser o restaurante onde íamos jantar, que filme ir ver ao cinema, a festa do próximo fim de semana… enfim, vacuidades.
- Pode ser que tenhas razão…
- Eu tenho razão! Foi deixarmo-nos ir por esse caminho que nos conduziu aqui, a esta situação. Chega! Se estamos agora a conversar como não o fazíamos há muito tempo, que digamos tudo.
- Foste para a cama com outro…
- Sim, fui.

(senta-se à beira do sofá)
- Pronto, já sei.
(di-lo sem conseguir esconder alguma irritação)
- Foi a maneira que encontrei para te magoar, na altura. Achei que merecias.
- Não te julgava capaz de tal.
- Nem eu. Senti-me tão mal depois. Senti-me tão… como se fosse uma dessas tuas amigas…
- Sim…

(ia acentuar a sua concordância com a observação dela, mas calou-se)
- Aconteceu uma única vez, se é que saberes disso adianta alguma coisa.
- Não adianta.

(após breves segundos de silêncio, percebe algo que o paralisa)
mas não foi só isso, pois não?
- Não, não foi.