quinta-feira, abril 22, 2010

Nas Lonas

Quando era mais novo, talvez fruto de seu pai ter sido marceneiro, sempre fora rapaz para armar barraca. Com o passar dos anos, a semente da maturidade encontrou nele solo suficiente e ganhou raiz. Mais calmo e sábio em relação às coisas da vida, passou a armar tendas. E fez disso negócio. Mas, tal como os carrosséis, a vida dá muitas voltas e, na mesma terra em que um dia despontou a maturidade, nasceu também a esperteza saloia. Quando a crise veio e a procura de tendas foi, engendrou um estratagema para as pessoas precisarem dos seus abrigos: um pombal móvel, atrelado à camioneta das tendas. Agora, quando o negócio alivia, ele carrega na dose de laxante que mistura no milho que dá aos pombos. E é vê-lo pelos telhados do país, a dar asas à imaginação.


Carrasqueira

terça-feira, abril 13, 2010

O Futuro Segue Dentro de Momentos

Bolas! a exclamação saiu-lhe ainda antes de ter tido tempo de pensar no que estava a dizer. Florêncio tentou disfarçar e pôs-se a olhar para a decoração do acanhado hall de entrada. Não havia como enganar, estava em território esotérico e místico. Mas, sem querer, lá voltava a reparar na grossura das lentes da senhora que, à sua frente, o conduzia para o interior do apartamento. Antes de abrir a porta, a senhora fitou-o no seu olhar míope e, ficando muito séria, afirmou: temos sempre de acreditar nas cartas e nos astros, mas nada se compara ao que o cristal nos diz. Florêncio fez que sim com a cabeça, mas só pensava em fundos de garrafa e em como é que uma pessoa idosa e curta de vistas conseguia ver tão longe quanto ficava o futuro.
Bolas! ainda levou a mão à boca, mas já se tinha descaído novamente. Desta vez, a causa do seu espanto era uma imensa descomunal, foi o termo que lhe ocorreu na altura bola de cristal que, sustida com dificuldade numa mesa, ocupava quase toda a área da assoalhada. Se se abraçasse a ela, pouco mais de metade da sua área conseguiria cobrir.
Sente-se ordenou a vidente. A sala estava na penumbra e as paredes eram inteiramente cobertas por panos escuros com dourados em forma de estrelas, galáxias, cometas, planetas e posters com cartas astrais ampliadas. A um canto, vindo do chão, um fio de fumo subia alguns centímetros e, dissipando-se, dava lugar a um aroma algures entre a canela e a noz moscada.
Sentada em frente a ele, a mulher surgiu-lhe distorcida, do outro lado da bola de vidro. A face contorcia-se em esgares e caretas horripilantes.
Quer que eu chame o 112? perguntou Florêncio, levantando-se de um pulo, assustado com a possibilidade de se ver a braços com uma vidente a ir deste para um outro mundo.
Cale-se homem, que me estou a tentar concentrar.
Ele sentou-se muito direito, mãos nos joelhos, olhar preso numa figura estampada na toalha que cobria a mesa: um esqueleto curvado, num campo, na mão uma gadanha, como se estivesse na ceifa. A principio, a figura divertiu-o ("quem será o maluco que inventa estas coisas"), mas depois um arrepio percorreu-lhe as costas e um feixe de luz o olhar. Atordoado, perdeu por um instante a noção de onde estava. Feixes intermitentes de luz projectavam-se agora à sua frente. "A bola de vidro", pensou ele, recuperando a compostura. De facto, dentro da bola, um turbilhão de luz sem cor iluminava agora a sala. Reflectida nas lentes grossas, a luz dava à vidente um ar extraterrestre. Era como se fosse ela a fonte de toda aquela energia.
Aos poucos a intensidade luminosa foi diminuindo e um ligeiro zumbido encheu a divisão. Começando de baixo para cima, ténue, uma mira-técnica foi-se formando. A senhora deu uma pancada no vidro com a mão e a mira-técnica deu lugar a estática. Nova pancada e desta vez apareceu a Fátima Lopes, a falar directamente para Florêncio, ainda que sem som, olhando-o nos olhos, num misto de piedade e divertimento.
Mau a vidente levantou-se e duas pancadas seguidas. Com ar pesaroso e a dizer que sim repetidamente com a cabeça, Júlia Pinheiro materializou-se no globo. Também ela falava, mas o único som que lhes chegava era o zumbido eléctrico.
O senhor importa-se de esperar um pouco lá fora enquanto eu sintonizo o futuro?
Sentado na única cadeira do hall de entrada, desconsolado com a sua primeira consulta esotérica, Florêncio lamentava não ter vindo à consulta da parte da manhã: é que ele aprecia muito mais o Goucha.