terça-feira, maio 24, 2011

O Grande Frio

Os primeiros sons passaram despercebidos aos adultos mas não à criança, que logo se pôs de pé, à escuta, só para ter a absoluta certeza. Eram marteladas descompassadas no telhado, primeiro espaçadas, logo depois uma torrente impetuosa que se alastrou às janelas, cujas vidraças pareciam não estar preparadas para a suster. Quando os adultos ergueram as cabeças dos seus afazeres domésticos, foi para ver a criança a desaparecer na moldura da porta, correndo para a rua, também ele impetuoso. Foram encontrá-lo de joelhos no chão, em pleno passeio, indiferente ao granizo que lhe ia acertando nas costas e na cabeça. “Que fazes”? “Sai daí”. “Tu levas”! gritaram-lhe da protecção da ombreira. “Já, imediatamente”! “Queres ver…” Mas ele não via nem ouvia, consumido pelo desgosto da ausência de gosto. As pedradas do céu acalmaram, por fim, e a mãe foi dar com ele a chupar um grande pedaço de gelo. Sobre ele, caíram então interjeições de incredulidade e violência prometida, que aleijavam mais que qualquer pedrisco.

“Porquê, diz-me só porquê”?! pediu a mãe por entre desconcertante esbracejar, depois de o ter arrastado por um braço para casa. Não lhe respondeu, indo-se fechar no quarto. À janela, procurou sem sucesso consolo na água em que se iam metamorfoseando os seixos gelados. Poderia o seu melhor amigo lhe ter mentido ao contar o quão doce era a neve que um dia comera?


segunda-feira, maio 09, 2011

Em Suspenso

As muitas partículas de pó são surpreendidas na sua agitação frenética pelo cone de luz que subitamente atravessa a sala até então às escuras parecendo não saber lidar com a invasão da sua sombria privacidade. Ele sente-se solidário com o pó. Depois já não: percebe que está farto da sua solitária privacidade. Pregado à madeira do chão não consegue tirar os olhos daquele atravessar caótico dos vagos restos de tudo de um lado para o outro da escuridão. A mente vagueia-lhe. Tem a casa cheia de lixo especialmente quando está em casa. Sente-se nauseado. Talvez se voltar a sair…

Vai todos os dias aos lugares onde ia com ela sempre na esperança de ser encontrado. Por certo ela perceberia o erro que cometeu. Talvez amanhã. Está demasiado dorido por fora para sair. Mas não o suficiente por dentro que evite o que se prepara para fazer.

Custa-lhe mais a ausência desde que percebeu que a memória dela se está a desvanecer. Os pormenores confundem-se uns com os outros e começam a fazer parte de um todo cada vez mais genérico e difuso. Guarda imagens, mas já não tem memórias e não a quer perder duas vezes.

Tacteia o projector fazendo aparecer uma fotografia na parede.

Tem os olhos fechados e não os abre.

À sua volta, indiferente à luz à dor e ao medo, o pó segue em todas as direcções.