domingo, julho 31, 2005

Ficção

Já não fazia isto há muito tempo.
Não sei se sou capaz.
Escrever.

Já toda a minha gente dorme. Eu, claro, nem sono tenho. Estou morto de cansaço. Tenho a cabeça cheia. O que mais precisava era de dormir umas boas oito horas, seguidas de preferência, mas ainda não é hoje que isso vai acontecer.
Durmo tão mal. E pouco. No domingo acordei eram 7h30. Lutei contra aquilo que sabia ser inevitável (que já não ia dormir mais) e às 8h20 saí da cama. Recriminei-me tanto, mas não adianta muito lutar contra aquilo que sou. Decidi aproveitar da melhor maneira possível o facto de ter acordado cedo e fui andar.

Concordas que não adianta lutar contra aquilo que se é? Eu acabei de o escrever mas, na verdade, não sei. Às vezes até parece que nunca fiz outra coisa durante toda a minha vida. Lutar contra o que sentia, contra o que pensava. Contra o que era… contra o que sou.
Fosse o que fosse, a verdade é que eu até nem tenho muita razão de queixa em relação à minha vida. A determinada altura convenci-me que nunca iria chegar onde hoje me encontro.
É aquilo de que já falámos. Acredito que tenhas razão. Poderá ser uma insatisfação endémica que nos vai acompanhar até ao fim.
A verdade é que há sempre uma razão para lutar. Vê o que eu hoje te disse, a pergunta que te fiz. Eu, que procuro ter sempre o máximo cuidado com o que digo e escrevo. Que penso e torno a pensar no que digo, na forma como o digo. Que sou acusado por vezes de ser pouco espontâneo e que, por isso, ainda recentemente tinha decidido que teria de ser menos “calculista”. A ironia da coisa. E logo contigo.
Fiquei mesmo chateado comigo próprio, nunca devia ter perguntado aquilo. Mas perguntei. E sei que a tua confiança em mim foi abalada. E agora não há como voltar atrás.
Lamento imenso.
É algo por que vou ter que continuar a lutar.

É tarde. Já não sei bem o que estou a escrever. Devia rever o que ficou dito, mas acho que se o fizer não vou conseguir enviar-te isto.
Estou a atravessar um período que deveria ser calmo, pessoalmente estou numa altura tranquila. Mas tudo à minha volta está confuso. E isso é o mesmo que dizer que não ando tranquilo.
Acho que sei agora o que é isto – estou a perguntar-me há imenso tempo porque é que te estou a escrever isto. É um desabafo. Acho que é.

Já chega. Um beijo.

quinta-feira, julho 28, 2005

Às Compras no Hipermercado

Ontem à noite fui às compras.
Se há coisa que eu não gosto de fazer é ir às compras. É muito stress. Exige muito de mim. Pede-me o que eu não tenho para dar.
Mas é daquelas coisas que tem de ser (existem as compras on-line, eu sei, mas ainda não me converti). De vez em quando sai-me a fava e o caminho é o do Hipermercado.
Ainda por cima moro a 100 metros de um (Carrefour) e a 500 metros de outro (Feira Nova), o que diminui logo drasticamente algumas boas desculpas para adiar a ida às compras.

Prefiro o Carrefour, o de Telheiras. Mas aquilo que é hoje, pouco tem a ver com o que era há uns anos atrás. Antigamente diferenciava-se por apresentar uma gama de produtos de mais qualidade. O preço não contava muito. Alguns produtos só se encontravam lá.
Isto também tornava a clientela diferente. A maioria tinha um ar distinto, selecto, respiravam saúde.
Hoje não. O Carrefour entrou em competição directa com os outros. Luta no preço, ao cêntimo. O slogan é “O Mais Barato da Região”. Há algum tempo criou mesmo uma marca própria, 1 (imaginem o algarismo dentro de um circulo; fatela até dizer chega).
Agora, as estantes que antes primavam pela sobriedade, estão atulhadas de cartazes com cores berrantes a anunciar que mais barato não há.

Tento lidar com o stress da ida às compras, organizando a coisa ao pormenor: lista feita, planeio mentalmente o trajecto a fazer, moeda para o carro das compras, enfim, planeamento tipo operação militar.
Chegada a hora, respiro fundo, faço uma oração à Sra. dos Aflitos e parto.
É quando lá chego que a coisa começa a correr mal. Invariavelmente a lista fica na porta do frigorífico, a moeda na gaveta e o pânico se instala.
Se a questão da moeda facilmente se supera (o Carrefour nisso é mãos largas e tem muitas para dar; em casa devo ter mais de 1.000€ em moedas de 50 cêntimos), o da lista em falta é bem mais problemático. Só resta confiar na memória e isso já não é garantia de nada.

Para os padrões nacionais, que são de vanguarda mundial nesta matéria, este Carrefour é pequeno (nós gostamos de tudo em grande quando se trata de compras, não concordam? até no preço, se é barato não é para mim, que não sou pindérico). Ora, como os senhores que mandam no estabelecimento querem ter uma oferta variada, isso obriga a que o espaço para circular seja pouco. Seja que dia for, que hora for, está sempre congestionado. Até porque ninguém abdica de levar o carro das compras mesmo até ao sítio do produto desejado.
Deixar o carro parado num local que não estorve a circulação e ir buscar as coisas que estão perto é que não pode ser. É sinal de fraqueza, é pouco tuga. Lançam-nos olhares desconfiados. “Este também deve ser daqueles que conduz na faixa da direita na auto-estrada”, adivinho-lhes eu no pensamento.
E conduz-se no Hiper como se conduz na estrada. Dar passagem? era o davas. Encostar o carro a uma estante para não o deixar no meio do corredor? querias, “vai de volta parvalhão, ou então espera que eu chegue com as latas de atum”.
Também não percebo porque é que os corredores estão sempre cheios de porta-paletes abandonados. Usam-nos para repor as prateleiras mas nunca começam e acabam sem fazer um intervalo.
Mas ala para as compras que se faz tarde.

Gosto muito de pão e não consigo perceber porque é que nos Hipermercados o pão não vale a ponta de um corno. É azar meu ou é assim em todo o lado? e quem fala em pão, fala na pastelaria em geral. E a carne que é 80% água e gordura, rija como sola de sapato?
E como se não bastasse uma pessoa já sofrer só por ir às compras, as marcas ainda pioram tudo.
Chega-se aos detergentes, roupa, por exemplo, uns têm lixívia, outros acção efervescente, uns são para roupa branca, outros para de cor, há para roupa preta, e para roupa às riscas, há os que evitam a pré-lavagem, outros fazem a roupa secar mais depressa. Mas o que é isto? Só podem estar a gozar comigo. Quem é que se consegue entender? Eu não. Fecho os olhos e agarro num ao calhas.
E é implicância minha ou a publicidade ao Skyp anda há anos e anos a dizer que agora é que é, com esta nova fórmula é que não há nódoa que resista. Ai agora é que é? Então andei a ser enganado estes anos todos, ou não?
E o azeite? Em quantos tipos de acidez já vai? Quantas ervas diferentes já eles conseguiram enfiar dentro do azeite? E o vinagre a mesma coisa. Achei também piada ao facto de já haver óleo especial para fritar congelados.
Ingénuo, foi comprar um pacote de batatas fritas. Onduladas, lisas, light, com menos 30% de gordura… esperem, com menos 40% de gordura, fritas em óleo vegetal, em óleo de girassol, caseiras, receita da avó… bardamerda pr’as batatas.
E que história é esta de ultimamente as águas com gás terem ganho sabores? “É bom, toda a gente gosta. É a água daquele maluco da televisão, da Frize, está na moda”. Já ocupam quase um corredor inteiro.
Até a Água das Pedras ganhou uma irmã, a Levíssima… flutua e tudo. Vou para comprar a Água das Pedras e não há, só da flutuante. Qualquer dia tiram o álcool ao Licor Beirão.
Nos refrigerantes não há sumo de laranja! Manga e Tangerina? Há. Ameixa, Papaia e Kiwi? Não pode faltar. Diospiro com Anona? Com certeza. Sumo de Laranja? Está “out”. Já não se usa, só os pobres de espírito bebem disso.
Se há sitio que me aflige em particular é a secção das frutas e legumes. Ainda lá não cheguei e já me estou a amofinar.
Vou às maçãs. Do Chile, da Argentina, de Itália, de Espanha… mau, então e das nossas? Nada a fazer, não há. Terão sido todas gastas nos iogurtes da Danone? Espero que sim.
Os alhos vêm da China. Juro por todos os santinhos do altar que já vi alhos chineses à venda no Carrefour. Goste-se muito, pouco ou nada, temos que reconhecer que os chineses são danados para o comércio. Até os alhos nos conseguem impingir. Acho que também diz algo sobre nós, mas isso agora não interessa.

Tenho um defeito: gosto muito de melão. É de família. Se me cruzo com um bom melão, é a desgraça de ambos. Acreditem que até das pevides gosto. Experimentem, tirem-lhe a casca e deliciem-se.
Mas como diz o povo, os melões só depois de abertos e eu não sei escolher melões. Também não dou parte fraca. Ponho o meu ar de Engenheiro e faço os melões rebolar um pouco, só então pego num. Ar desconfiado, aperto o cu do melão, naaaa nunca m’enganaste, outro, também não, mais um… é claro que isto é só fita, bem podia pegar num qualquer, mas admitir a minha ignorância em pleno Hiper? Nunca.

Ontem ia-me envolvendo numa cena de pancadaria com uma velhinha na secção dos legumes.
O Carrefour faz-nos pesar os produtos. Junto às balanças a confusão é sempre muita. Ontem esqueci-me da Courgette e tive de voltar atrás. A velhinha à minha frente estava aflita a tirar os melões de dentro do carro e a rapariga que estava na balança fez-me sinal para avançar. O que eu fui fazer. A velha não gostou que eu metesse a minha Courgette à frente dos melões dela.
Arma-se ali um trinta e um que nem vos conto. Mas a velha teve azar, ontem não me fiquei. Já estava disposto a dar com a Courgette na tola da velha, quando um cliente mais sensato me afastou do local.
Vai um gajo às compras contrariado e ainda tem que levar com as velhas do inferno, que têm o dia todo para ir às compras mas esperam sempre pelo fim do dia só para poderem atazanar o juízo aos outros.

Outra coisa que me chateia no Carrefour é um gajo que lá vai de vez em quando vender salpicões.
O desgraçado do velho está possuído pelo mafarrico e ninguém se importa.
O que o gajo grita. “Olhó salpicão de Arganil”, “Olhó salpicão de Arganil”, “Olhó salpicão de Arganil”.
Ele sabe-a toda, isso tem de se admitir. Enquanto as miúdas que lá vão fazer a demonstração do novo fiambre cozido em forno a lenha, quase não abrem a boca, mesmo com os clientes ali parados à espera de serem atendidos, o possuído anda pelos corredores atrás dos incautos e se vê alguém distraído, aproxima-se por trás e grita: “Olhó salpicão de Arganil”.
E não é que o tipo se safa? Tem de safar, está lá tanta vez.

Já estou em estado caótico e ainda me falta passar por um tormento horrendo: a caixa.
É raro haver mais do que 20% de caixas a funcionar. As filas são sempre a perder de vista.
Ainda quando calha um artista das novelas da TVI ou um jogador da bola, temos com que nos entreter (“ena, o gajo tem uma borbulha”, “afinal não é assim tão alto”, “ganda gordo”… também lá vejo de vez em quando artistas do sexo feminino…).
No outro dia estava lá aquele actor/modelo (ou é modelo/actor?), o… ai que já não me lembro outra vez (quando me lembrar, coloco o nome do tipo). (Entretanto, e com ajuda preciosa, descobri o nome do rapaz: Pedro Lima).
A menina da caixa estava que não podia mais. Viam-se as palpitações do seu pobre coração, tal o estado em que estava. Era só dentes. Quando ele foi embora, teve de telefonar à melhor amiga, tal o seu estado perturbado.

Não sei se acreditam no destino, se são fatalistas. Eu tenho tendência a não ligar a isso, mas no Hipermercado não há volta a dar-lhe, sou obrigado a ser.
É fatal como o destino que haja problemas com as compras do cliente à minha frente. Sempre, nunca falha!
Ontem foi o quarto de presunto a que faltava um dígito no código de barras.
Pensam que a senhora, desistiu do presunto industrial? Está bem. Logo daquele belo quarto de presunto saído de um porco que tinha partilhado a suinicultura com porcos pretos. Qualidade daquela não se deixa para trás.
E lá pára tudo. Telefonema da ordem. Eis a patinadora que chega. Com a sua mini-saia esvoaçante, desliza por entre os carros mal estacionados evitando o acidente com destreza. Lá vai ela em busca do dígito perdido. Não faz mal, eu espero.

Na caixa é fundamental apresentar o Cartão Família (invenção esperta, que dá ao Hipermercado um resumo das compras de cada família). O Cartão vai comigo para todo o lado. Dá desconto. Acumula o que vamos poupando para mais tarde descontarmos.
Já consegui juntar 33 cêntimos! “quer que desconte”? pergunta sempre a menina da caixa. “Desconte sim”, surpreendo-a eu. Sei lá o que me vai acontecer e sempre são 33 cêntimos.

Quando chego a casa e vou arrumar as coisas no frigorífico, vejo a lista esquecida. É sempre o mesmo, quase metade ficou por comprar.
Amanhã tenho de lá voltar.

terça-feira, julho 26, 2005

Taxismos - Um Homem Livre

Acontece-me cada uma. Isto de ser taxista tem muito que se lhe diga. A maioria das pessoas não faz a menor ideia.
Nem sei bem porque gosto disto, mas a verdade é que gosto. Talvez porque me permite o contacto com muitas e variadas pessoas.
Mas acontece cada coisa. Ainda ontem, por exemplo. Eu nem devia estar a contar isto, ninguém vai acreditar, mas não quero saber.
Deviam ser umas 2h00 da manhã. Estava parado há mais de meia hora em frente à igreja de Benfica. Sentia-se o ar pesado, uma estranha calma mesmo para uma noite de verão, quando me apareceu aquele sujeito. Nem o vi aproximar, só dei por ele quando me abriu a porta detrás do carro. Se não soubesse melhor, diria que se tinha materializado ali mesmo.
Falou com uma voz profunda, cavada, mas ao mesmo tempo, como dizer… suave, não sei explicar melhor.
- Sabe qual é o ponto mais alto de Lisboa? – perguntou ele.
- Não tenho a certeza, talvez as Amoreiras, o Hotel Sheraton?
- Referia-me ao local natural, por assim dizer, sem contar com construções.
Ele há com cada um. As perguntas que nos fazem a uma hora destas. O tipo era novo, não tinha nada ar de maluco. Bem vestido, bem tratado, até a barba tinha feita.
- Não sei, com essa é que você é que você me apanhou – respondi eu.
- Sabe onde fica a capela da Sra. do Monte, na Graça?
- É aí? Não sabia que era o ponto mais alto de Lisboa. Não é sitio onde vá muitas vezes.
Ajustei o espelho para o poder ver melhor. Reparei que sorria.
Dei à chave, escolhi a tarifa e partimos.
O trânsito era quase nenhum. Não se via ninguém na rua. Aquele tipo intrigava-me. Acabei por meter conversa.
- Olhe que a capela já deve estar fechada – disse eu, sentindo-me logo um pouco estúpido.
- Não quero ir à capela. Mas pode-se dizer que vou numa espécie de peregrinação.
- Desconhecia que se faziam romarias à Sra. do Monte – ainda pensei acrescentar algo sobre a hora, mas não o fiz.
- É uma romaria muito pessoal. Eu nunca fui muito de me meter em confusões. Ajuntamentos de pessoas fazem-me impressão. Não, isto é algo muito pessoal, muito meu.
- Muitos pecados para expiar.
Ficou calado. Reparei que olhava pela janela. Não pude deixar de reparar como as luzes da cidade se reflectiam nos seus olhos.
Preparava-me para dizer que não tinha nada com isso, que já estava a falar demais, quando ele olhou para o espelho, nos meus olhos e me disse: - Esta noite tenho umas contas para acertar. Libertar-me.
- Libertar-se?
- Sim. Há muitas formas de cativeiro. Hoje liberto-me do meu. Vou para as terras escuras. Tão certo como a vida nada significar, e que em nada tudo termina, é o céu e o inferno estarem perto demais um do outro.
“Há muito que quero ir para as terras escuras, mas sempre houve algo que não me deixou. Pois hoje vou libertar-me de todas as dores, de todas as mágoas”.

Só vi o auto-tanque da Câmara que andava a lavar a rua no último instante. Desviei-me por instinto e não lhe bati por milímetros.
A minha pulsação estava disparada. Fiz um esforço para me recompor. Confesso que agora, ao pensar nisso, não sei se estava naquele estado por causa do acidente eminente, se por causa do que tinha ouvido, da expressão dele ao me dizer aquilo.
Subíamos a Rua Maria da Fonte. O passageiro parecia tranquilo. Se se tinha assustado, não o demonstrava.
Ao chegar ao Largo da Graça, ouvi-o dizer: - Estamos a chegar. Já reparou como está uma noite linda?
Eu devia estar com cara de caso porque ele sorriu e pediu-me desculpa.

Parei o carro. Não se ouvia um barulho que fosse. Uma ligeira brisa fazia-se sentir mas não estava frio. Pagou-me e, ao sair, disse-me: - Quando passar um pássaro em direcção a sul, vou agarrar-me à sua cauda e vou partir.
E tinha ele acabado de me pedir desculpa.
Afastou-se e ficou a contemplar a cidade, lá em baixo.
Por qualquer razão, ao mesmo tempo que eu queria sair dali, algo me fez ficar. Saí do carro e fiquei a observar aquela estranha criatura.

Não sei bem o que aconteceu a seguir. Pelo menos não sei bem como o descrever.
Vi-o passar a vedação. Sei que corri na direcção dele. Saltou. Elevou-se no ar levando consigo todas as suas dores e mágoas.
Planou durante breves segundos e caiu. Vergado pelo peso que carregava, embateu no chão. Num derradeiro esforço, murmurou “adeus”.
Juro que o vi erguer-se e voar. Finalmente o seu sonho tinha-se tornado realidade, era um homem livre.

Eu sei que não vão acreditar. Mas posso garantir-vos uma coisa: há por aí cada um.

segunda-feira, julho 25, 2005

Esta Coisa dos Blogs

Eu sabia que não me devia ter metido nisto dos Blogs. Não me dou bem com esta “pressão” de publicar.
Vocês dirão que há pressão nenhuma. Eu sei disso. Sei que ninguém me pressiona a escrever, que não existe nenhum compromisso, pelo menos “externo”. Mas é que eu me encarrego a fazer isso a mim próprio.
Acho que a coisa deve ter alguma periodicidade. E, pior, acho que deve ter alguma qualidade.

Aqui chegado e antes de mais, um aparte: falei em qualidade, ora isso pressupõe que o que está publicado até agora, a tem. Mas não é isso que eu quero dizer. Eu tenho bem a noção das minhas limitações. O que eu quero dizer é que o que escrevo tem que me satisfazer minimamente, o que, para um pessimista encartado como eu, é coisa complicada.
Encerre-se o aparte.

Comecei este Blog porque me senti um pouco desafiado a isso e, também, porque já há algum tempo que o queria fazer.
Mas as razões porque o não tinha feito ainda estão na ordem do dia. Tentar explicá-las não é tarefa fácil, mas devo tentar.
Não é tanto por falta de assunto. É mais por falta de certeza no interesse do assunto. É por falta de certeza nas capacidades em dizer algo que mereça ser lido. Escrever só por escrever? Não deveria escrever só se houver algo novo para dizer ou, pelo menos, escrever sobre algo mas de maneira diferente? Ora, é precisamente de possuir esta capacidade que eu duvido.
Mas eu até gosto do desafio da escrita. Sempre invejei quem sabe escrever. Falta-me é vencer esta minha maneira complicada de ver as coisas. Tudo tem que ser sempre uma luta. Cada coisa que faça é como matar um leão com as mãos. Tudo tem que ser pensado, repensado e voltado a pensar. Preocupo-me demais e nem sei bem com o quê.
Será com o que as pessoas que lerem o que escrevo possam pensar? Talvez, deve passar um pouco por aí admito, ainda que de uma maneira um pouco inconsciente. Mas muito tem a ver com o meu sentido crítico sobre mim próprio, que é terrível – e isto independentemente de ser algo para partilhar com outras pessoas, ou não; sou assim com tudo.
E é terrível em mais que um aspecto, porque com os outros eu não sou assim. Ou seja, procedo comigo como não procedo com os outros. Há sempre muita exigência envolvida. Às vezes quase sufocante. Chego a cansar-me de mim próprio.
Raramente me satisfaço com algo e as experiências de sentido contrário não têm servido para que eu mude.
Por exemplo, há algumas coisas que faço e às quais até nem dou grande valor mas que, ao mostrá-las a alguém, são as que despertam mais atenção… mais do que aquelas que eu até achava estarem melhores.
Ora isto podia levar-me a pensar que não interessa muito o que penso sobre o que faço, a não ter tanto em conta a minha opinião (!). Neste caso, se escrevo alguma coisa, público, sem pensar mais nisso.
Mas esta é uma problemática para a qual ainda não tenho a solucionática.
E já foi bem pior, acreditem. Este post faz parte da minha terapia.

Lembro um conselho por mais que uma vez recebido: “escreve o que te vier à ideia, sem pensar nisso, sem reler, confia no instinto”.
Foi o que fiz.

quinta-feira, julho 21, 2005

Está Tudo Bem

Num daqueles momentos de tédio que quase parecem insuportáveis, ele achou que tinha uma boa capacidade de encaixe em relação à vida.
Convenceu-se de que nada, para si, era verdadeiramente insuportável.
Ficou triste.
"Que pessoa é esta que tudo suporta? Não pode ser muito normal."
Impacientou-se durante uns breves momentos. Mas passou-lhe.

terça-feira, julho 19, 2005

Sem Titulo

13 de Setembro 1992
Praia de Monte Gordo
19h57m

A praia está praticamente deserta. Uma miúda, estrangeira muito provavelmente, está sentada a uns 150 metros à minha esquerda. Estou em frente ao Aparthotel Guadiana. Parece triste. Em que pensará? Gostava de ir falar com ela. Não consigo.
A esta hora o sol põem-se por entre a neblina, está um misto de laranja e amarelo. Lindo. Há gaivotas poisadas junto à água. Ouvem-se os sons da procissão que passa ao longe
A escuridão e a neblina adensam-se. Ao longe vêem-se as luzes de Altura, da Manta Rota e daquilo que, muito possivelmente, é Tavira.
Está cada vez mais difícil escrever, a luz falta.
Ouvem-se foguetes a estoirar, a procissão afasta-se. A praia está enfeitada. Um morcego.
O mar está calmo, a maré vai vazando lentamente. Sete gaivotas esvoaçam.
A miúda lá continua, cabisbaixa.
As luzes de Monte Gordo vão-se acendendo atrás de mim. Por entre os sons do walkman, conseguem-se ouvir os carrosséis da feira.
Por cima do laranja-cinza que assinala o fim do dia, aparece a primeira estrela. Há uma outra mesmo por cima de mim.
Está uma ligeira brisa mas ainda não faz frio.
Que futuro? Passam-me tantas coisas pela cabeça. Tantas pessoas…
A miúda foi-se embora, vejo-a afastar-se por entre os chapeus de sol recolhidos. Adeus.
A noite cai, estou a escrever por instinto.
Aparecem agora duas miúditas pequenas junto à água, um pouco à minha direita.
Os morcegos voam à minha volta… que futuro?

20h14m
Estou agora no posto de observação do Instituto de Socorros a Náufragos. À minha esquerda levanta-se a lua, está enorme, num tom amarelado escuro. É uma visão impressionante.
A neblina levantou-se. As luzes ao longe estão mais nítidas, cintilam.
Escrevo mas não vejo já nada.
Há mais pessoas na praia, mas longe.
A lua está mais alta. Vê-se a luz do farol a rasgar a noite.
Onde estarão todos aqueles que me vão no pensamento e o que estarão a fazer? Como gostaria de estar junto deles.
A brisa é já vento, mas não ainda frio.
Mais pessoas na areia.
“Against All Odds”, Phil Collins.
Estão a queimar fogo de artifício no largo da igreja, a procissão chegou.
O céu enche-se de estrelas.
Estou a tentar escrever com a luz de um candeeiro que está atrás de mim, mas não é fácil.
Vão também aparecendo umas luzes no mar.
Estou quase a falar de pessoas em concreto. Não posso. Não quero.
Que lua magnifica.

domingo, julho 17, 2005

Nesta Data Querida.

Mais um aniversário que se aproxima.
Confesso que nunca fui muito dado a comemorações nesta data. Nunca achei que houvesse muito a comemorar.
É uma ocasião que sempre me fez lembrar que o fim está mais próximo – sim, eu sei que é um bocadinho tétrico demais, mas a verdade é que nesta altura do ano sempre me confrontei com o muito que ficou para fazer e que assim vai continuar… por fazer.
Nem sequer consegui ver o aniversário como apenas uma boa desculpa para uma festa, para se juntar os amigos, receber umas prendinhas. Uma espécie de Natal e Ano Novo no mesmo dia e só para nós.
Como não seria capaz de convidar uns amigos e não convidar outros, acabava sempre por achar que estava a pessoas que não se conhecem, que não têm muito em comum entre elas. Ainda para mais, achava que as estava a meter em despesas, ou seja, convidava-as para uma refeição em que cada um pagava o seu, mais a prenda que acabavam sempre por comprar.
Isto não deixa de ser estranho. Até porque quando sou convidado para aniversários, eu vou, pago o jantarinho e levo prenda, sem que isso me faça sentir mal. Não fico a pensar “lá me cravaram mais uma prenda”.

A este propósito, recordo os aniversários de um amigo meu de infância que acabam, de alguma maneira, por ser o oposto dos meus.
Por circunstância várias, foi fazendo um grupo de amigos em que predominavam aqueles que eu considero serem umas pessoas um pouco afectadas (nariz empinado, eles de cabelo gelificado e impecavelmente penteado para trás, elas com a pose decalcada das senhoras que apareciam na Hola!). Aposto que me consideravam um afectado também, mas com uma nuance: eu seria afectado do clima.
Devo dizer que não eram todos os amigos, apenas que estes pareciam dominar, especialmente nos ajuntamentos comemorativos de mais um aniversário.

Curiosa a evolução. Nos primeiros tempos era jantar na Valenciana (em Lisboa; quem conhece sabe do que estou a falar, quem não conhece fique a saber que é um restaurante onde a ementa para grupos permitia escolher entre o frango assado e os escalopes de porco grelhados; os acompanhamentos eram sempre os mesmos: a boa da batata frita com o óleo de fritura incluído, o arroz enformado e a rodela de tomate a cavalo na fiel companheira folha de alface; o barulho, ensurdecedor). Mas as coisas iam mudar.
Num determinado ano fui surpreendido. Telefona-me ele, “aniversário, juntar alguns amigos, gostava que fosses”, respondo eu, “claro, pá, em que dia, a que horas?, “este ano vai ser diferente”, diz ele.
Qual Valenciana. Nesse ano iríamos “beber um copo, apenas” ao Chester’s (este bar/restaurante digamos que é uma coisa discreta, num local discreto, a versão possível de um clube de fumo britânico).
E durante alguns anos lá nos juntámos no Chester’s. Todos muito selectos. Eles com as suas carreiras de sucesso, eu, pouco selecto e sem carreira, a tentar decidir se já não parecia muito mal pirar-me (só dois apartes: o primeiro, que o Chester’s me fazia ter saudades da batata frita da Valenciana, o segundo, que a despesa era maior mesmo que só bebendo).

Flash-Forward. Estamos agora no presente. Já há uns anos que não há ajuntamento no Chester’s. A vida dá voltas e uma série de azares a nível profissional, têm trazido o meu amigo triste (e são mesmo azares, que ele é bom naquilo que faz).
Ele é agora um pai babado de uma linda menina que fez há poucas semanas um ano. E houve festa de aniversário. Fui convidado e lá estava com o maior dos gostos.
A certa altura dei por mim a reparar que dos afectados nem sinal. Dos antigamente só eu e outro.
Não quero com isto dizer que as festas de aniversário não fazem sentido, porque daqui a uns anos sabemos lá o que pode acontecer. Se convidamos aquelas pessoas é porque, naquele momento, queremos estar com elas.
Trata-se apenas de um exemplo oposto ao meu.

Curioso que nunca antes tinha pensado muito nas razões de nunca ter feito nada por ter uma festa de aniversário. Este ano deu-me para isto. Deve ser uma espécie de balanço.
Dou por mim a pensar se não exagerei um pouco. É que, por mais que pense nisso, não me recordo de alguma vez ter tido uma festa de aniversário.
Existem fotos de uma festa quando fiz cinco anos. Não me lembro dela mas sei que existiu. Daí para a frente zero, nada.
Lembro-me de, certo ano, ter ido com dois amigos meus ao centro da Amadora dar uma volta e de lhes ter pago um pão com chouriço (hei, uma a cada um, está bem?).
Noutro ano fui com um grupo de amigos ao Cine Plaza ver “Os Marginais”, do Coppola, no meu dia de anos. Lembro-me de sair de lá a pensar que isto de ser marginal tinha que se lhe dissesse. Ah, e não houve pão com chouriço para ninguém que era um grupo maior!

Ao longo dos anos devo ter pago uns copos a mais alguns amigos, mas fora isso, nunca promovi nenhuma reunião.
Estupidez minha, dirão vocês. Acredito que sim. Eu próprio não tenho a certeza de ter feito bem, como já disse.
Mas este ano, nem me passou pela cabeça fazê-lo. Está a passar agora, que escrevo isto.
Mas agora já é tarde.

sexta-feira, julho 15, 2005

O Último Comboio (epílogo)

Pedro ficou algum tempo com a mão no puxador da porta, incapaz de se mover.
Tentava ordenar as ideias, mas sem sucesso.
A música que entretanto começou, despertou-o.

“know a man, his face seems pulled and tense”, cantou o Eddie Vedder.

Pedro dirigiu-se até à janela e ficou a observar as luzes da cidade, ao longe.

“i wonder about his insides, it’s like his thoughts are too big for his size”

Abriu uma gaveta e tirou uma caixa que tinha em tempos guardado charutos açorianos.
Por entre dezenas de bilhetes de concertos, teatro e cinema, encontrou o que procurava.
As letras estavam muito sumidas, gastas, mas ainda se podia ler Paper Mate M15 Permanent Marker.
Destapou-o. O cheiro característico da tinta fez-se sentir.

“i saw the strain creep in, he seemed distracted and i know what is gonna happen next”.

Tirou uma folha da impressora e escreveu: “she took the last train…”.
Tantos anos depois, o marcador não tinha secado.

quinta-feira, julho 14, 2005

O Último Comboio (parte II)

Sentiu o sangue subir-lhe à face. Baixou os olhos. Sentia-se atrapalhada.
Por fim, conseguiu dizer algo: - Desculpe… eu moro no 5º, vinha pagar o condomínio… só hoje vi o seu aviso, já devia ter vindo mais cedo.
Ele parecia algo divertido com a atrapalhação dela. Mantinha o mesmo sorriso.
- Eu conheço esta música – exclamou ela.
Sem dar por isso, ela tinha entrado em casa do seu vizinho.
Com os olhos postos na luz alaranjada do leitor de cd’s, estava agora a meio da sala.
- Já não ouvia isto há tanto tempo. “Heartbreak Station”, dos Cinderella.
- E eu que pensava que era o único…
Foi bruscamente interrompido.
- Peço imensa desculpa. Entrei-lhe pela casa a dentro – não conseguia disfarçar o incómodo que sentia.
- Não tem importância. É sinal de que gosta mesmo muito deste tema.
- Sim, traz-me muitas recordações. Recordações de há uns anos atrás. Da minha juventude.

A sala estava pouco iluminada. Apenas um pequeno candeeiro junto do monitor do computador estava aceso. A restante luz na sala vinha do leitor de cd’s e da janela que estava aberta.
Pareceu-lhe uma sala algo despojada. Uma mesa com 4 cadeiras, um sofá de três lugares, um pequeno móvel onde estava o leitor de cd’s e o computador e uma cadeira com rodas. Reparou que não havia televisor.
A decoração parecia ser constituída unicamente por colunas com cd’s. Muitos cd’s. Havia também um quadro numa das paredes. Fez-lhe lembrar Number 7, de Jackson Pollock.
“Típico de um homem solteiro”, pensou.

- Que coisa, voltar a ouvir esta música, assim, tantos anos depois – pensou ela alto.
- Mas senta-te. Desculpa, já te estou a tratar por tu
Ana sentou-se no sofá, ele na cadeira que estava virada para o computador.
- Não, claro, não tem importância. Ana, chamo-me Ana.
- Pedro…
- Sim, eu sei.
Ao vê-lo um pouco surpreendido, sorriu e explicou: - O aviso, está assinado.
- Oh pois. Disparate meu.
Entretanto, a música tinha chegado ao fim e Pedro, com o comando, voltou a colocá-la.
- Mas diz-me, que recordações são essas que o “Heartbreak Station” te traz? Desculpa, antes disso, queres tomar alguma coisa?
- Não, obrigado, estou bem assim… só se for um copo de água.
- Fresca?
- Natural.
- Vais desculpar-me mas água só da torneira, engarrafada não tenho.
- Da torneira, eu bebo da torneira.
- Mas conta – disse ele enquanto ia à cozinha. Tinha ficado curioso.
Ana reparou numa foto a preto e branco que estava junto ao computador. Era o que parecia ser uma praia, cheia de conchas de ostras abertas. Muitas. Tinha um ar desolado, triste.
“Muitas ostras mas nenhuma pérola”, pensou ela.

- Aqui está, água pura e cristalina da torneira – gracejou ele -. Vais ter que me desculpar duas coisas – acrescentou -, uma é eu ter perguntado o que querias beber, quando só tenho água em casa. A outra, é eu estar sempre a pedir desculpa. Desde que chegaste parece que não fiz outra coisa.
Ana sorriu.
- Eu também já te pedi.
- Mas quanto à música…
- Vais achar-me maluca.
Pedro continuava a interrogá-la com os olhos.
Ela sentia-se algo intimidada. O que ele lhe pedia não era fácil, apesar de parecer. Mas, ao mesmo tempo, sentia vontade de o fazer.
Inspirou, como que para ganhar coragem.
- Pois bem. Por volta dos meus 17 anos vivia aqui perto, na Amadora, mas fui estudar para Lisboa. O transporte que mais de dava jeito era o comboio.
Falava depressa, gesticulava. Parecia querer dizer tudo de um fôlego só. Talvez porque receasse perder a coragem.
- Eram daqueles comboios antigos, sabes? Enfim, a partir de certa altura, comecei a ver em muitas carruagens o refrão desta música.
Escrito nas carruagens, a marcador, percebes? “she took the last train out of my heart”…
Ele, que até agora tinha estado imóvel, inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos; encostou o queixo às mãos, unidas. Olhava agora para ela muito fixamente.
- … mas em quase todas, mesmo. Todos os dias eu apanhava dois comboios, sentava-me ora nas carruagens da frente, ora nas de trás e em quase todas elas, aquela frase se repetia.
“Mais, a acompanhar a frase, quem a escrevia colocava sempre a data: o dia, o mês, o ano; e os dias iam sempre mudando, as frases não tinham sido todas escritas de uma só vez, não, iam sendo escritas ao longo do tempo”.
- Por um doido, com certeza – deixou escapar Pedro, que a ouvia com toda a atenção.

Pedro tinha 33 anos. Vivia sozinho e tinha tido a audácia de aceitar ser o administrador do condomínio, quando percebeu que mais ninguém estava disposto a avançar. Tinha colocado como condição procurar uma empresa especializada na gestão de condomínios a quem “passar a pasta”.
Tinha acabado de fazer uma contestação no computador, era advogado. Preparava-se para ir para a cama ler “A Casa do Sono”, de Jonathan Coe, quando lhe tinham batido à porta.

- Mas queres ouvir algo realmente estranho? – disse ela depois de beber um gole de água. Continuou sem o deixar responder.
- Eu identificava-me com quem escrevia aquilo. Por qualquer razão para mim desconhecida, eu como que compreendia aquela pessoa. Sentia que a conhecia. Pasme-se…
Ana reparou nos olhos de Pedro. A sua expressão tinha algo de indecifrável. Parecia paralisado, por momentos pareceu-lhe que ele não estava ali, o corpo sim, mas a mente tinha partido para parte incerta.
Ana pousou os olhos no chão e esperou que Pedro dissesse algo, mas este parecia incapaz de pronunciar uma palavra que fosse. Continuava ausente.
- Vou passar o cheque – disse ela enquanto procurava a caneta.
- Não, espera – disse Pedro apressadamente; levantou-se -, vais ter que me explicar como é que sentias isso por alguém, apenas por uma frase escrita num comboio.
Foi à cozinha, de onde regressou com um copo de água. Reparou que ela estava a olhar fixamente para a foto que parecia ser de uma praia.
- Por favor, conta-me.
A surpresa inicial parecia ter dado lugar a uma curiosidade excitante.
- Não é fácil explicar. Não sei sequer se tem explicação.
Ana olhava agora pela janela. Recordar aquele período da sua vida nunca tinha sido fácil. Nunca tinha retirado prazer disso mas, naquele momento, sentia que era capaz de falar disso.
No fundo, sempre tinha desejado que alguém quisesse ouvir aquela sua “história”. Sendo difícil de admitir, sempre tinha tido necessidade de que alguém se interessasse por si.
- Falar sobre isso é falar sobre mim e eu sempre tive dificuldade em falar sobre mim – olhava distraída mas fixamente nos olhos de Pedro.
Fez-se silêncio. Pedro reconheceu algo nos olhos de Ana. Quase que podia jurar que era tristeza.
- Associava aquelas frases a um sentimento de abandono, de ausência, de solidão – continuou ela -, achava que quem tinha necessidade de escrever uma frase daquelas num comboio, é porque não tinha com quem falar. Entendia aquela frase como um grito, como se fosse o deitar fora a gota de água que iria fazer transbordar o copo.
Ana falava automaticamente. Parecia nem dar pela presença de Pedro. Pensava alto.
- Achavas que podias ter sido tu a escrever aquelas frases – o ponto de interrogação colocou-o Pedro com o olhar.
- Sim, acho que sim, podia ter sido eu. Ao mesmo tempo, sentia que podia ajudar essa pessoa, que a podia escutar, achava que teria feito diferença. Mesmo que não tivesse nada para dizer, só o facto de escutar teria feito diferença.
- Quem sabe era isso mesmo que essa pessoa procurava, alguém com quem falar, com quem partilhar algo.
- Mas nunca aconteceu. Apesar de sempre ter tido a sensação que um dia ia conhecer essa pessoa, nunca a surpreendi enquanto escrevia.
- O que eu tenho alguma dificuldade em compreender é como é que se pode sentir algo por alguém que não se conhece. Apenas por algo que essa pessoa possa dizer.
- Ah, pois. Já coloquei essa mesma questão a mim mesma muitas vezes.
“Nunca encontrei uma resposta satisfatória, mas sei que acontece. Sei que bastam as palavras para se estabelecer uma relação com alguém Uma relação forte. Ao ponto de nos poder abalar. Abalar as nossas vidas, fazer-nos questionar coisas que tínhamos por adquiridas, questionarmo-nos a nós próprios.
- Como uma coisa que à partida parece simples, pode tornar-se tão complicada.
Olhavam os dois para a janela. No vidro, as suas silhuetas reflectidas.
Foi Ana quem quebrou o silêncio.
- A partir de certa altura as frases foram rareando e deixaram de aparecer. Quem sabe se terá conhecido alguém. Sempre me interroguei sobre isso.
- Quem sabe se não foi o marcador que secou…
- Achas que terá desistido? – perguntou Ana.
- Não forçosamente desistido, pode ter chegado à conclusão que não valia a pena. Afinal, não estamos a falar de nada muito nobre como escrever poemas, estamos a falar de um tipo que escrevia uma frase em comboios! Um tipo solitário de certeza. Um dia deve ter percebido que não valia a pena, que ninguém ia aparecer. Cansou-se.

As palavras de Pedro fizeram Ana tirar os olhos do televisor.
- Já há muito tempo que não pensava nestes episódios – disse Ana -, nem imaginava que me lembrava tão bem de todos os pormenores.
“Deves achar-me uma parva… Sabes? Nunca tinha contado isto a ninguém. Nem sei porque te estou a contar, nem sequer te conheço, e daí… talvez seja por isso mesmo”.
- Não penses mais nisso. Ainda bem que contaste. Eu tenho que confessar algum espanto, alguma surpresa… muita surpresa. Tudo isto é, de alguma maneira, uma revelação para mim.
“Mas eu entendo-te. Eu também fui sempre muito reservado, sempre fui de guardar as minhas coisas para mim. Sofro de uma certa tendência para cair em buracos, mas também sempre consegui sair deles sem grandes mazelas… só com alguns arranhões – disse Pedro, sorrindo -, são arranhões que prezo muito, lembram-me coisas, dificuldades que aprendi a tornar úteis, que me ajudam agora na resolução de alguns problemas, no enfrentar dos fantasmas.
- Precisamos conquistar essas armas para combater os nossos fantasmas, não é? Sinto isso. Também tive que lutar para conseguir essas armas. Tive que lutar para poder ir à luta. E sabes o que é mais engraçado… ou triste, não sei? Todas essas lutas foram contra mim própria, ainda o são.
- Todas?
- Talvez não todas, mas as mais difíceis foram. Aquelas que mais me marcaram, essas foram.
“Consumi muito tempo, muita energia a tentar perceber quem eu era, como eu era, porque era assim”.
- Mas porquê tão grande esforço? Porque não deixar isso de lado e concentrares-te em viver a tua vida?
- Sem me entender? Era a minha maneira de racionalizar as coisas. Sempre tive muita necessidade de compreender o que me rodeava, nunca fui de aceitar as coisas só porque sim, por serem moda, porque me diziam para o fazer. Sempre questionei tudo. Com tudo o que isso implica.
“Ora isso chocou de frente com o facto de eu não me compreender lá muito bem a mim própria. Tentar compreender o que me rodeia sem me compreender a mim própria, não é tarefa fácil”.
- E esse conflito nunca te consumiu?
- Consegui evitar isso. Acho que me fui agarrando a algumas coisas, a algumas bóias que me foram mantendo à superfície. A música, por exemplo. A frases escritas em comboios… foram coisas que me foram permitindo sonhar, que me foram entretendo. De alguma maneira, pegava nelas e transportava-as para a minha realidade. As energias que gastava com isso, iam impedindo que me consumisse.

Pedro estava pensativo. Não sabia o que dizer.
Ana olhou para o leitor de cd’s e viu as horas. Era tarde.
- Vou indo, é muito tarde. Que disparate.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Pedro seguiu-a.
- Olha – disse ele -, quero que saibas que não fiz nenhum julgamento acerca de ti, do que me disseste. Não sou de julgar as pessoas.
Ana abriu a porta. Sem se voltar para trás, virando apenas a cabeça sobre o seu ombro direito, disse:
- Toda a minha vida tenho tentado ser boa pessoa, fazer aquilo que acho correcto. Interrogo-me se tem valido a pena. Às vezes tenho muitas dúvidas de que tenha valido. Interrogo-me sobre como tenho conseguido superar as dificuldades com que me tenho deparado.
“Continuo a tentar perceber quem sou”.

Fechou a porta e avançou para a escada sem se lembrar que não tinha pago o condomínio.
Não foi de elevador. E não acendeu a luz.

terça-feira, julho 12, 2005

O Último Comboio (parte I)

As chaves caíram com um som abafado. O golfinho desfez-se em dezenas de pequenos pedaços.
O porta-chaves de que tanto gostava, era agora apenas uma pequena corrente que terminava no aro onde estavam presas 4 chaves.

Entrou no prédio. Uma lágrima rolou-lhe pela face direita. Apenas uma. Não fosse ter sentido o ar fresco que se fazia sentir no interior do prédio, teria, por certo, chorado.
Ultimamente andava assim. Tinha vontade de chorar por tudo e por nada. Mesmo em situações em que o que devia sentir era raiva, apenas conseguia sentir as lágrimas juntarem-se-lhe nos olhos.
Não andava bem e sabia-o.

Na escada sentia-se ainda um ligeiro perfume a flores de plástico. Pelo menos era isso que lhe fazia lembrar o cheiro do detergente usado pela Nancy, a rapariga que a empresa de limpeza tinha destacado para o prédio e que lavava com brio as partes comuns todas as segundas, quartas e sextas. Aquele cheiro recordava-lhe a casa da sua tia Noémia, paz à sua alma.
Abriu a caixa do correio e parte de 5 dias de correspondência e publicidade caiu ao chão. Lembrou-se do golfinho.

No elevador o mesmo perfume a flores de plástico. A Nancy.
A rapariga de origem cabo-verdiana, com grandes olhos, claros e expressivos, que transmitiam confiança, tinha sido a última pessoa a perguntar-lhe como estava. A última pessoa a quem tinha confidenciado algo realmente sincero sobre si… que não se estava a sentir muito bem ultimamente.
Subiu ao quinto andar. Entrou em casa, atirou com os papéis que trazia do correio e com a mala para cima do sofá. Um banho era tudo o que estava a precisar.

Comeu qualquer coisa em frente ao televisor, enquanto via as noticias. Pouco lhe ficou dessa hora em que repartiu o olhar entre o ecran e o prato. Tinha estado a pensar noutras coisas.
Já não se lembrava do que tinha visto na televisão, nem do que tinha comido. A bem dizer, já nem se lembrava no que tinha estado a pensar.
Acontecia-lhe muito. As coisas passavam por ela e nada parecia ficar retido. Por vezes, dava consigo a pensar que tinha deixado de viver, limitava-se a sobreviver.

Acordou de repente com a imagem de um revólver a ser disparado na televisão. Sobressaltada, procurou o comando e desligou.
A sala estava envolta em penumbra. O cortinado japonês estava corrido e filtrava a luz do final da tarde. Adorava estes finais de tarde de primavera, em que o sol parecia resistir ao apelo do hemisfério sul, demorando-se no horizonte.
Reparou nas sombras que eram projectadas nas paredes da sala, nos efeitos que provocavam nas fotos que tinha emoldurado e colocado nas paredes. Eram a única decoração. Eram fotos suas.
Nunca tinha percebido realmente qual a razão de ter colocado fotos suas na parede. Nunca tinha percebido aquela sua exposição. Ela, que era a descrição personificada, que nunca chamava a atenção sobre si, tinha sucumbido aquele momento de gratificação pessoal, imodéstia mesmo, como por vezes pensava.
No fundo, achava que o tinha feito porque sabia que ninguém iria alguma vez a sua casa. Sabia que não corria o risco de ter fosse quem fosse a fazer-lhe perguntas sobre as suas fotografias.

Estava no sofá, deitada em cima da correspondência e não se lembrava de ter saído da mesa.
Entre facturas para pagar, publicidade a uma viagem maravilhosa a Badajoz e a produtos de que não precisava, mas que iriam tornar a sua vida muito mais fácil, a um preço óptimo, estava uma folha A4 dobrada ao meio.

Vivia num prédio de construção recente. Numa zona onde ainda há poucos anos pastavam algumas ovelhas e cabras, apesar de ser em plena Lisboa, na freguesia de Carnide. Particularidades das cidades portuguesas.
A rua onde morava não existia, foi aberta com a construção do quarteirão que agora habitava, o que, acrescido do facto de ter sido das primeiras compradoras, lhe trouxe complicações algo bizarras.
Por não ter nome, a rua tinha para o empreiteiro um nome, para a EPAL outro, para a Gás de Lisboa outro, para a EDP outro e assim sucessivamente. Em nenhum serviço conseguiu que o nome coincidisse.
Também o número da porta não foi coisa fácil de perceber, tal foi a confusão gerada entre Corpo, Bloco e Sector. Dizer que morava no Corpo 3, Bloco A do Sector 1, nunca tinha sido indicação suficiente para ninguém.
Ter água, luz, gás e as mobílias entregues em casa, não foi tarefa simples.
Desde tais imbróglios que nunca mais tinha pensado muito nas burocracias prediais.
Mas agora estava a ler aquela folha A4.
Em poucas linhas, o administrador do condomínio lembrava que faltava pagar a semestralidade do mesmo.

No seu prédio existiam 28 habitações e nos 9 meses em que lá vivia, tinha-se cruzado uma vez com uma rapariga no elevador e outra com um casal na entrada do prédio.
Tinha sido das primeiras moradoras e o edificio demorou algum tempo a estar totalmente habitado, mas o seu convívio com os vizinhos era francamente escasso. Parecia possuir o misterioso dom de não se cruzar com ninguém naquele prédio.
Era coisa em que não gostava de pensar, mas aquele prédio era o resumo da história da sua vida: desencontros.

Recordou-se de ter recebido há uns meses uma carta da empresa construtora do empreendimento. Nela, se informava que, “tal como estipulava o contrato assinado entre ambas as partes, após serem concretizadas ¾ das escrituras, o condomínio passaria a ser gerido pelos condóminos”. Marcava-se também a assembleia de condóminos em que se procederia à eleição da nova administração.
Não tinha ido e estava agora em falta com a sua prestação.
Olhou para o relógio, eram 21h50. Hesitou. Seria tarde?
Tomou então uma resolução para aquele fim de dia: nada de adiamentos!
Levantou-se e foi à casa de banho passar água no rosto.
Evitou olhar para o espelho. Tapou o ralo e abriu a torneira sem levantar os olhos.
Quando ia colocar as mãos debaixo de água, viu o seu reflexo na tampa de inox que vedava o ralo. Nunca tinha reparado naquele espelho.
Sentiu-se estranhamente aliviada ao ver a sua imagem. Ainda assim, não teria estranhado perceber que a sua imagem não conseguia ser reflectida.
Secou a cara e enfrentou-se no espelho. Dois olhos azuis muito escuros fitavam-na. Tinha o cabelo apanhado. Era castanho claro, tinha algum orgulho no seu cabelo. Tinha também algumas sardas por cima das maçãs do rosto. Não usava brincos nem qualquer maquilhagem. As sobrancelhas demasiado cerradas para o seu rosto e longas pestanas.
Aparentava a idade que tinha, 32 anos.
Piscou o olho ao espelho e este retribuiu. Esboçou um sorriso.

Procurou o livro de cheques e uma caneta. Leu de novo o aviso: Pedro Andrade, 7º A.
Ao pegar nas chaves para destrancar a porta, pensou em algo verdadeiramente estranho: se estaria bem vestida. Surpreendeu-se a si própria. Afastou o pensamento com um gesto da mão direita e saiu.
Optou por ir pelas escadas. Era a primeira vez que as utilizava. Apesar disso, fez o que fazia quase sempre quando era miúda no prédio dos seus pais, não acendeu a luz.
A escuridão era total. Ficou imóvel durante algum tempo. Só o tempo dos seus olhos se habituarem à escuridão. Agarrou-se ao corrimão e começou a subir.
Decididamente, aquele dia estava cheio de novidades.
Nunca tinha percebido aquele seu hábito de andar nas escadas às escuras. Uma vez, a sua mãe tinha-lhe perguntado o porquê de tão estranho hábito, “será a tua maneira de enfrentar o desconhecido”? Respondeu à mãe que não e, baixinho, só para si, acrescentou “de me enfrentar”.
Recordava este episódio quando chegou ao 7º andar. “Tenho que fazer isto mais vezes”, pensou.
Acendeu a luz e dirigiu-se para a porta A. Aproximou o ouvido. Era quase imperceptível, mas ouvia-se música.
Fechou a mão e bateu com os nós dos dedos duas vezes.
Nada.
Engoliu em seco e levantou a mão. Preparava-se para bater novamente, quando a porta se abriu.
Reparou nos olhos dele, dois pontos castanhos que a interrogavam.
Sorriu, coisa que nunca fazia a estranhos.
- Não me vai bater, pois não? perguntou ele sorrindo.
Só então ela reparou que continuava de punho cerrado e erguido, o movimento de bater na porta suspenso a meio.

Inicio

" i know not what they mean,
tears from the depth of some divine dispair,
rise in the heart and gather to the eyes,
in looking on the happy autumn fields
and thinking of the days that are no more."

"The Princess"
Alfred Lord Tennyson