Gosto de ver Lisboa. Não apenas olhar para ela, mas vê-la! Talvez seja essa a razão porque a fotografo tanto, é que o que a câmera retém é diferente daquilo que os olhos vêem. Há na fotografia, no momento perpetuado, sempre algo de novo à espera de ser descoberto, basta saber encontrá-lo. Foi a sempre presente tentativa de descobrir esse ângulo diferente para as coisas, especialmente as do dia-a-dia, as mais evidentes, que me levou a ser fotografo.
Gosto, especialmente, de ver Lisboa a partir dos seus miradouros, a cidade estendida do cimo da colina até ao rio. Tento percebê-la através da lente, encontrar uma lógica naquilo que nos surge, à partida, como uma paisagem caótica, um labirinto impossível de decifrar.
Terá sido essa a razão pela qual, na primeira vez que saí com Leonor, a tivesse levado a Santa Catarina, conseguindo surpreendê-la.
Foi também lá que combinei encontrar-me com ela, desta vez. Telefonei-lhe, inseguro da sua reacção. Não a deixei falar até lhe ter dito que tinha encontrado a minha mãe e que precisava falar com ela, explicar-lhe algumas coisas. Ela pouco falou, limitando-se a aceder a um encontro ao final do dia seguinte, uma sexta-feira, e a perguntar como eu estava, o que me pareceu, na altura, um bom indicio.
Tirei a tarde de sexta para mim, queria ir cedo para o Chiado. Deixaria o carro em Telheiras e iria de Metro, queria aproveitar o caminho até Santa Catarina para fazer umas fotos, especialmente no Elevador da Bica. Imaginava um portfolio com os Elevadores de Lisboa. Falhadas que tinham sido as fotos no Lavra, não iria falhar o da Bica. E depois, tinha esperança que as fotografias me ajudassem a descobrir as palavras certas que eu precisava dizer a Leonor. Não podia voltar a falhar com ela, e as palavras nunca tinham sido o meu forte. Antes pelo contrário.
Não acredito no destino, não consigo conceber que está escrito, algures, como vai ser. Quero acreditar que essas páginas escrevemo-las nós, ao ritmo de cada batida do coração. Mas, por vezes, não tenho a certeza que seja só azar.
Na plataforma da estação de Metro de Telheiras, procedia-se à substituição de algumas lâmpadas dos placares que anunciam, entre outras coisas, a aproximação dos comboios. Todo aquele aparato feito de placares esventrados e de pequenas lâmpadas interessou-me e decidi tirar algumas fotos. Em má hora o fiz. O Segurança da estação vê-me e manda-me parar, que não posso fotografar na estação, que tenho que lhe entregar o rolo.
- Mas são fotos digitais, não há rolo.
- Ah, isso não me interessa, não pode fotografar aqui, vai ter que me dar as fotos.
- Eu mostro-lhe as fotos, vai ver que nem se percebe sequer o local…
Passaram quatro comboios enquanto discutia com o rapaz que, por fim, me deixou seguir.
Na estação Roma, uma paragem anormalmente longa. Alguma impaciência e nervosismo começam a instalar-se. Sinto um gosto amargo na boca. Ao fim de uns minutos, saída da instalação sonora da carruagem, uma voz metálica dá as más noticias: em virtude das obras no acesso norte da estação, parte de uma cofragem caiu à passagem do último comboio e está a obstruir a via; a circulação na linha verde estava suspensa.
Antevejo o pior e corro para a superfície. A Avenida de Roma parece um circo romano dos tempos modernos: reina o caos no trânsito e várias pessoas atropelam-se, tentando conseguir um transporte alternativo - afinal, é já hora de ponta e logo de uma sexta-feira. Desafiando a má sorte, consigo um táxi rapidamente.
- Chiado, depressa… por favor! - O taxista ri-se.
- É nestas alturas que o taxista até é um gajo porreiro, verdade? - Atira-me ele. – Amigo, a esta hora, com este trânsito… que trajecto prefere?
- Não sei, o mais rápido…
Fez o melhor que pôde, mas podia pouco. Praça de Londres, Avenida do México, Calçada de Arroios – opção arriscada, fugindo ao mais que previsível congestionamento da Avenida da República -, Rua dos Anjos, Rua da Palma, Martim Moniz, Praça da Figueira.
Entre semáforos e filas de automóveis, o tempo escoa-se. À hora combinada, entramos na Rua dos Fanqueiros. Ligo para Leonor, nada, tem o telemóvel desligado. Mais uma paragem. Sem ar condicionado, entre dois autocarros da Carris, o ar dentro do carro torna-se quase irrespirável. Passam vários minutos e não nos mexemos.
- Oh meu, que se passa, pá? – Fora do carro, o taxista tenta perceber o que se passa. A resposta não podia ser pior: - Você está com azar, amigo. Um Eléctrico está parado ao fundo da rua, não consegue passar, um caramelo qualquer estacionou em cima da linha.
- Saio aqui!
- Mas ainda é longe.
- Arrisco. – Atirei uma nota de 10€ para o banco da frente, meti a mochila às costas e desatei a correr pela Rua da Vitória.
No cruzamento com a Rua Augusta, uma rapariga de bloco na mão, faz-me sinal para parar.
- O senhor trabalha dentro ou fora de Lisb… ei, tenha lá cuidado…
Sou obrigado a fintar dezenas de pessoas que seguem em todas as direcções. Corri poucas centenas de metros mas sinto o baço quase a rebentar. Agarrado ao corrimão, subo as escadas para a Rua Nova do Almada, as forças começam a faltar-me, já mal sinto as pernas. Vários anos de imobilismo, fazem-se sentir com um efeito devastador. Ao cimo da Rua Garrett, desisto, não consigo dar mais um passo. Encosto-me ao Pessoa, sinto o coração parar.
Desesperado, concentrei-me nos rostos de quem passava, de quem estava sentado nas esplanadas, como que esperando ver Leonor passar, depois de ter desistido de esperar. Naquele momento, senti algo que nunca tinha sentido antes: medo de a perder. E esse medo tomou conta de mim, só que, desta vez, ajudando-me a focar a atenção, as energias que restavam. Mais do que nunca, tive a certeza daquilo que eu queria. Aquele encontro era mais importante que qualquer busca. Leonor era a pessoa que eu mais precisava voltar a encontrar.
Soube exactamente o que precisava fazer e o que lhe iria dizer.
Ergui-me. A Leonor que eu conheço não é mulher de desistir, sei-o bem. Não, ela ainda lá está à minha espera.
Quase sou atropelado a atravessar para a Praça Luís de Camões e, na Rua do Loreto, choco com uma turista, que quase faço cair. Deixo um excuse me e continuo a correr. Suo por todos os poros.
Passo pelo Elevador da Bica e nem olho para ele, ainda não é desta… talvez começando pelo da Glória. Dobro a esquina da Rua Marechal Saldanha, estou a chegar.
Diz a lenda que a expressão “ficar a ver navios”, teve origem neste local. Que, aquando das invasões francesas, em 1807, Junot chegou Santa Catarina ainda a tempo de ver a frota em que o príncipe regente D. João e a corte portuguesa embarcaram para o Brasil, sair a barra do Tejo, ficando a ver os navios.
Eu cheguei a Santa Catarina e não vi nada. Não vi os Cacilheiros a riscar o Tejo; não vi as chaminés que se erguem ao longe, no Barreiro; não vi o castelo de Palmela; não vi a grua em Cacilhas indicando onde foi outrora a Lisnave; não vi o Mar da Palha; não vi os telhados em vermelho esbatido, estendendo-se até ao rio; não vi o Adamastor, de cabelo soprado por uma brisa imaginada; não vi as pessoas sentadas na esplanada, apreciando a paisagem; não vi o Cristo-Rei a abraçar o lado de cá; não vi a Ponte, cordão umbilical que liga os dois lados do rio; não vi a luz difusa do final de tarde, nem as sombras que se alongam vagarosamente, anunciando o fim de mais um dia de verão. Não vi nada disto, mas sei que estava tudo lá.
Vi a Leonor, de perfil, sentada num dos bancos de jardim. Usava um lenço na cabeça e óculos escuros. Lia um livro.
Não me viu ela até me sentar a seu lado, ofegante e sem forças.
- Demorei muito…
Ela retirou os óculos, pegou-me na mão direita e colocou-a no seu ventre, a sua mão por cima da minha, apertando-a ligeiramente. Olhou-me profundamente durante algum tempo e sorriu o mais lindo sorriso.
- Demoraste o tempo que foi preciso.
Fim