quarta-feira, março 14, 2007

quinta-feira, março 08, 2007

Fonte Luminosa

Vejo-me ao espelho. Observo os locais onde as primeiras rugas vão aparecer. Sinto-as à flor da pele, a fazerem-se dentro de mim. Alimentam-se das noites mal dormidas e dos vícios a que me entrego. Sem piedade e remorso. Ajeito o espelho, talvez na estúpida esperança de que, noutra posição, as não sinta. Tento enganar a mim mesmo. Mais uma vez. Tento. Decomponho-me no retrovisor. Eu, aos pedaços. Ainda serei eu, se for apenas parte de mim? A porta abre-se e o frio é o primeiro a entrar. Reflecte-se no espelho e senta-se a meu lado. Atrás dele, um casal de velhos. “Boa noite. Para a Alameda, se fizer o favor”, diz ele, cortês nas palavras e na pose. Falam de cinema. Deixo-os em frente ao Café Império. Vão matar saudades do bife e do lugar. Quase lhes digo que o tempo não volta atrás, mas a figura dela, que cruza a avenida mesmo à minha frente, distrai-me. Dou-lhes o troco e desejo-lhes bom apetite. Têm o cuidado de agradecer. Atravessam a estrada de mão dada. Foi o tempo suficiente para a perder. Era apenas uma mulher, mas levava algo no olhar. Intenso, foi tudo o que consegui perceber. Desapareceu na Alameda. Alguém faz sinal e leva-me para Sete Rios. O frio, esse, ficou. Uma hora à espera. Local inóspito. Fico. Depois, Saldanha. Mais espera. Um jovem de fato e gravata à banda, que há muitas horas colocou gel no cabelo, aproxima-se. “Intendente… depressa”. Os nervos embrulham-lhe as palavras. Vai recuperar a compostura perdida. Pelo menos, até amanhã de manhã. Que depois, tudo de novo. Conheço-os bem. Todas as noites os tenho por companhia. Fica na Rua dos Anjos. A tremer. Entregue ao seu azar. Regresso à Alameda. Quem sabe. Estaciono. Nada. Viro o espelho para mim. Não. Chega. Saio e acendo um cigarro. Ninguém. A cidade só para mim. Expiro nuvens breves. Invejo-as. E então, vejo-a. Caminha sobre o bordo da Fonte Luminosa, seca. É ela. Pára junto ao cavalo, empinado na sua traseira de peixe. Observa-o. Os rostos próximos. As expressões, distintas. No entanto, percebo-lhes o mesmo desejo. Atravesso a estrada. Atrás de uma árvore, vejo-a saltar do bordo para a relva e da relva de novo para o bordo. Repete o movimento várias vezes. Brinca como não brincava há muitos anos. Ali, é de novo uma criança. Corre e salta para dentro da fonte. Sedenta. Abandonada. Aproxima-se das estátuas. Estende o braço. Uma carícia imaginada. Corre e salta para fora da fonte. Imóvel. Vejo-lhe o brilho no olhar. Parece feliz. Vem na minha direcção. Viu-me? Volto para o carro e meto a chave na ignição. Faz-me sinal. “Ajuda”. Hesito. Deseja-me boa noite e então percebo. Ajeito o espelho e aproveito para a observar. Encostou a cabeça ao banco. O olhar perdido para lá da janela. “Tudo o que eu sempre quis foi um filho”. Não digo nada. “Há dois meses que estou grávida…” A frase em suspenso. “Estou tão cansada. Andei tanto. Tanto”. Digo o quê? Nada. “Não sei onde estive, o que fiz todo este tempo”. Parece nem respirar. “Não devia fazer tanto esforço”, arrisco. Não responde logo. “Hoje fui fazer a eco… não havia batimentos… o coração desistiu”. Leva a mão à janela. O que quer que fosse, escapa-lhe. “Trago-o dentro de mim, sem vida… consegue imaginar…” Não consigo. “O médico diz-me para fazer exercícios, correr, saltar… para o expulsar… saí da clínica e andei, andei muito… e agora…” Deixa cair o braço. O frio tomou conta do carro. Pequenas gotas de água caem no vidro. Os olhos dela, no espelho. Percebo, então. É dor. As escovas chiam ao empurrar a água do vidro. Uma lágrima atraiçoa-a. “Ajuda”, digo eu. “Preciso…”