segunda-feira, dezembro 22, 2008

Avenidas Velhas (7)

A rapariga travou a trela extensível e puxou com quanta força tinha, detendo o avanço do grande e possante cão, mas apenas por um segundo. Assim que recuperou a tracção, o animal deu um solavanco para a frente, trazendo a rapariga pela trela mais uns metros, aos tropeções.

– Amon, quieto. Faz aqui, junto à árvore – o cão sacudiu a cabeça, como que dizendo não, projectando baba em todas as direcções. – Aqui, na árvore, Amon, cocó…

No separador central da Avenida de Roma, ele tinha parado para observar a cena. Apreciou o esforço da rapariga, ao tentar que o cão fizesse as necessidades mais sólidas no pedaço de terra que circunda a base das árvores. Não era uma preocupação frequente – particularmente em zonas da cidade sem espaços verdes. Amon alçou uma das patas traseiras para a árvore, mas sem resultados visíveis. Quando a baixou, deu novo impulso para a frente, quase fazendo a dona cair.

– Cocó, Amon… pára…

Passou o Gauloises do canto esquerdo da boca para o direito e avançou também, na direcção contrária. Juntou-se a um grupo de idosas que, no cruzamento com a Rua Frei Amador Arrais, aguardavam o sinal para atravessar. Falavam muito alto, sobre a morte da súbita de alguém. Olhou para a esquerda e para a direita, contornou-as e seguiu em frente, paralelo ao trânsito. Há três meses que tinha voltado a percorrer a cidade.

Tinha enchido caixas com perguntas e tentativas de respostas. Escrevera como antes havia caminhado: com voracidade, como se o futuro dependesse daquele acto e da maneira como era executado – palavras espalhadas no papel, muitas vezes numa sucessão frenética e atabalhoada, sem aparente conexão e sentido. Física e psicologicamente exausto, numa madrugada mal iluminada e gelada de fim de Inverno – igual a tantas outras –, interrogou a página sobre a fuga; sobre as razões que levam pessoas adultas e vividas – “a cair de maduro” – a fugir de algo indefinido, até daquilo que, muitas vezes, se sente apenas vagamente, nas entranhas. “Ou será”, acrescentou mais tarde, em nota de rodapé, “por isso mesmo”?

“Fujo de quê? (Que medo é este?) O que existe lá fora que me enclausura atrás destas paredes? (De que me escondo?) Só me deparo com razões para me esconder de mim próprio (mas sei mais que isso), sei que jamais o conseguirei (sei até que nem sequer devo tentar). Ao longo de tantas páginas, de incontáveis interrogações e considerações (e, antes disso, de tantos passos dados, de tantas coisas pensadas), achava já ter feito as pazes com o tempo (que passa), mas fui ingénuo (mais uma vez… serei sempre): o tempo está contra mim (está sempre). Chegou a altura das respostas (?)”

Aos poucos, a letra havia-se tornado ainda mais pequena, mais indecifrável, quase um alfabeto próprio, de símbolos minimalistas e angulosos. Mas as últimas folhas eram diferentes. Notava-se alguma contenção na letra, que era menos torrencial, maior e mais redonda – um pedido de Adelaide, que sentia crescente dificuldade em descodificá-la, ao passar os textos para computador.

Passaram-se ainda algumas semanas na rotina de sempre: o trajecto entre casa e a arrecadação, a ocasional ida a um dos restaurantes da zona para uma refeição ligeira, a compra esporádica de um maço de tabaco no quiosque da esquina. Até que uma manhã, ao contemplar as prateleiras da arrecadação que se enchiam, soube o que fazer a seguir. Sacudiu o pó à mochila e à cadeira articulada e, nessa mesma tarde, saiu para comprar o material que, desde então, passou a habitar a mesa maior, no centro da arrecadação. Demorou quatro dias a preparar tudo o que considerou ser indispensável e a decidir onde e como executar o plano.

Há três meses que sai todas as tardes – assim as condições atmosféricas o permitam. Vai da Avenida de Roma até à Avenida Guerra Junqueiro. Leva a mochila às costas, cheia; na mão, a cadeira articulada e nos lábios, a bailar, um cigarro. Já não foge de nada, enquanto caminha. Passou a procurar – não sabendo bem o quê – algo para si, nas pessoas com quem se cruza.