São poucos os minutos que restam às quatro da tarde. Estou no Largo do Chiado, em Lisboa, sentado na entrada do Metro, que é um assento porreiro e muito solicitado. Imediatamente, o cérebro processa a temperatura da pedra e, qual Instituto Nacional de Meteorologia privativo, emite um alerta laranja. Resisto. Tenho um texto para escrever e o sítio, sinto-o como propicio.
Acabo de chegar do São Carlos onde, com três meses de antecedência, fui comprar bilhetes para um espectáculo, não fosse o Diabo tecê-las. Pouco instruído nestas coisas do Bem e do Mal, do Céu e do Teatro Lírico, não sabia eu o Anjo das Trevas tão dado à tecelagem: bilhetes esgotados! Desprevenido, deixo que a má nova me atinja violentamente na boca do estômago. Naquele instante, se houvesse no imenso salão uma cadeira, tinha-me sentado, tal foi a pressa com que todas as forças me quiseram abandonar. Mas reagi prontamente e não deixei as forças irem a lado algum. Antes, sai altivo do edifício, dando ares de “ai é? pois ficam vocês a perder, em não me ter cá” – na verdade, ia a engolir em seco, os dentes ferrados no lábio inferior, reprimindo a frustração, que gritava para dentro. Subi ao Chiado a repetir para mim mesmo uma máxima inventada logo ali, e que diz que “deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e bilhetes para a ópera”.
Trago comigo uma planta da sala, tirada da net, a um canto de uma folha A4. Já que não me serviu a parte impressa, vou dar uso à parte
Sim, acho que já me lembro…
Chegou à entrada do Metro da Alameda como o trapezista chega à outra extremidade do arame, rabisco – é o inicio da parte 10 das Avenidas Velhas, que irá ser publicada, numa versão mil vezes alterada, semanas depois. Inspirado, vou pela folha abaixo. A coisa está a correr bem e nem dou pelo frio. Quer dizer, durante cinco minutos estou inspirado e a coisa corre bem, que depois, como sempre, logo me começo a distrair. Primeiro, é um rapaz todo janota que me estende um folheto anunciando um concerto futuro da Jacinta, no São Luiz. “Bilhetes ali para o santo do lado, não tem, pois não”? pergunto eu, provocando o espanto no rapaz – que, pouco tempo depois, vou reencontrar numa vénia, em plena revista Única, do Expresso, como exemplo de bem vestir; envergando a mesma fatiota com que se apresenta diante de mim. Depois, reparo na parte mais a norte da esplanada da Brasileira – além Pessoa – onde apenas está sentado um homem de meia-idade, mas com o olhar antigo. Náufrago, segura no colo, como quem segura uma criança, a guitarra cansada e lascada que, decido eu, é a sua única companhia fiel.
Viro para a última página da folha dobrada; que é, inúmeras vezes, o destino daquilo que baptizei de “apontamentos diversos”. (Já me ofereceram um Moleskine para esse fim, mas ele ainda não se habituou nem mim, nem à minha caótica/distraída maneira de realizar obra. Entretanto, vou semeando papéis soltos dos quais, as mais das vezes, acabo por perder rasto). É que tendo começado em Março de 2008 um texto a que não mais voltei – caótica/distraída/preguiçosa maneira… – de quando em vez, tomo um apontamento com o objectivo de o usar nessa estória. É suposto existir por lá uma parte em que acontecem coisas estranhas, ou melhor, coisas estranhas acontecerão da primeira à última linha, mas nesta parte as coisas serão ainda mais estranhas, e aquele tipo ali sentado, de instrumento na mão, deu-me uma ideia estranha: em vez de estar alguém a dar música a quem está na esplanada, está uma pessoa na esplanada a tocar para quem passa.
Mas logo a dúvida se instala: e se aproveitasse antes a ideia para um post? Isto anda tão mal de ideias… e zás!, logo outra ideia: e se usasse a ideia para o bendito (e esquecido) texto e também para um post?
É melhor apontar tudo, que ainda me esqueço de tanta ideia.
Por esta altura, já o personagem que ali me levou foi negligenciado, o guitarrista corrido da esplanada e dois casais de espanhóis se vieram sentar ao meu lado. A luz do dia já está nas despedidas finais e todas as sombras do Chiado convergem numa só, que tudo cobre. Um arrepio estreito percorre-me as costas, como se fosse atrás do sol, pela Calçado do Combro a baixo. O alerta laranja implica de novo comigo mas, desta vez, para sinalizar também que a bifana e o caldo verde que fizeram as vezes de almoço, já não estão a contribuir para a nobre causa da produção energética.
Antes de pensar em ir para casa, através das entranhas da Terra, escancaradas atrás de mim, tomo nota na conversa dos espanhóis: despreocupadamente e muito entretidos uns com os outros, estão a desancar verbalmente nos passantes. “Olha o cabelo daquela”, “e a roupa daquele? com tanta cor, parece uma árvore de Natal”, “vejam, uma baleia a entrar na igreja”, e coisas do género – a tradução é minha, o sentido das frases, deles. Riem-se, os espanhóis.
Se quem passa é, para eles, estas coisas todas, o que acharão do tipo aqui ao lado que, ao frio e à luz de montras distantes, está a escrever num papelinho muito dobrado? Coisa boa não pode ser. Vai daí, eu que até sou pela paz e pela concórdia, pelo amor e pela meditação transcendental, mas que não aprecio que gozem comigo, encho-me de fúrias e quase olho na direcção deles.
É em alturas destas que eu lamento não ser adepto dos pequenos-almoços ricos em fibra: é que não só regulam o tracto intestinal, como dão fibra – e fibra foi o que me faltou neste final de tarde. A imagem de dois espanhóis a crescerem para mim, logo seguida da imagem de duas espanholas a crescerem para mim – com maus instintos, esclareça-se, que com espanholas de bons instintos, sei eu lidar – em plena cidade que me viu nascer, fez-me pensar nos ensinamentos de Siddharta Gautama, para logo concluir que de beligerantes, está o planeta farto. E disse não à violência.
Amemo-nos uns aos outros!
Ooooommmmmmmm…*
Depois de várias exalações profundas e em ritmo regular, seguidas de inspirações nasais prolongadas, lá me acalmo o suficiente para racionalizar a coisa – acreditem, foi a sorte dos espanhóis: não são, bem vistas as coisas, os meus “apontamentos diversos” exactamente o mesmo que aquilo que os espanhóis estavam a fazer? Não ando eu por aí a observar os outros e a apenas reter deles aquilo que é menos comum? Estou eu quase contrito, quando me lembro de um detalhe: é que eu não ando a fazer comentários sobre este e aquele, em tom jocoso, nem me rio das pessoas
A chatice é que os nossos vizinhos já não são ali. No lugar deles, regalada com o calor que tinha sido deixado na pedra, está agora sentada uma senhora de respeitável idade, muito pequenina e franzina que, ao me ver aterrar na sua frente, não está de modas nem pede explicações, alça da mala que traz a tiracolo e tunga! baixa-ma no lombo com quanta força tem – pouca, felizmente.
Desando dali com quanta rapidez uma pessoa cabisbaixa consegue desandar e enfio-me na secção infantil da Bertrand. Desembrulho o papelinho e tomo uns apontamentos sobre o sucedido, não vá um dia eu querer escrever sobre o sucedido.