quarta-feira, março 25, 2009

Sexta-Feira, 15 de Janeiro de 2009

São poucos os minutos que restam às quatro da tarde. Estou no Largo do Chiado, em Lisboa, sentado na entrada do Metro, que é um assento porreiro e muito solicitado. Imediatamente, o cérebro processa a temperatura da pedra e, qual Instituto Nacional de Meteorologia privativo, emite um alerta laranja. Resisto. Tenho um texto para escrever e o sítio, sinto-o como propicio.

Acabo de chegar do São Carlos onde, com três meses de antecedência, fui comprar bilhetes para um espectáculo, não fosse o Diabo tecê-las. Pouco instruído nestas coisas do Bem e do Mal, do Céu e do Teatro Lírico, não sabia eu o Anjo das Trevas tão dado à tecelagem: bilhetes esgotados! Desprevenido, deixo que a má nova me atinja violentamente na boca do estômago. Naquele instante, se houvesse no imenso salão uma cadeira, tinha-me sentado, tal foi a pressa com que todas as forças me quiseram abandonar. Mas reagi prontamente e não deixei as forças irem a lado algum. Antes, sai altivo do edifício, dando ares de “ai é? pois ficam vocês a perder, em não me ter cá” – na verdade, ia a engolir em seco, os dentes ferrados no lábio inferior, reprimindo a frustração, que gritava para dentro. Subi ao Chiado a repetir para mim mesmo uma máxima inventada logo ali, e que diz que “deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e bilhetes para a ópera”.

Trago comigo uma planta da sala, tirada da net, a um canto de uma folha A4. Já que não me serviu a parte impressa, vou dar uso à parte em branco. Dobro-a em quatro e, de esferográfica em riste, faço um esforço para me lembrar de onde deixei o personagem no último texto que o escrevi – certamente, numa outra qualquer folha que, espero, eu vá encontrar no dia que precise dela.

Sim, acho que já me lembro…

Chegou à entrada do Metro da Alameda como o trapezista chega à outra extremidade do arame, rabisco – é o inicio da parte 10 das Avenidas Velhas, que irá ser publicada, numa versão mil vezes alterada, semanas depois. Inspirado, vou pela folha abaixo. A coisa está a correr bem e nem dou pelo frio. Quer dizer, durante cinco minutos estou inspirado e a coisa corre bem, que depois, como sempre, logo me começo a distrair. Primeiro, é um rapaz todo janota que me estende um folheto anunciando um concerto futuro da Jacinta, no São Luiz. “Bilhetes ali para o santo do lado, não tem, pois não”? pergunto eu, provocando o espanto no rapaz – que, pouco tempo depois, vou reencontrar numa vénia, em plena revista Única, do Expresso, como exemplo de bem vestir; envergando a mesma fatiota com que se apresenta diante de mim. Depois, reparo na parte mais a norte da esplanada da Brasileira – além Pessoa – onde apenas está sentado um homem de meia-idade, mas com o olhar antigo. Náufrago, segura no colo, como quem segura uma criança, a guitarra cansada e lascada que, decido eu, é a sua única companhia fiel.

Viro para a última página da folha dobrada; que é, inúmeras vezes, o destino daquilo que baptizei de “apontamentos diversos”. (Já me ofereceram um Moleskine para esse fim, mas ele ainda não se habituou nem mim, nem à minha caótica/distraída maneira de realizar obra. Entretanto, vou semeando papéis soltos dos quais, as mais das vezes, acabo por perder rasto). É que tendo começado em Março de 2008 um texto a que não mais voltei – caótica/distraída/preguiçosa maneira… – de quando em vez, tomo um apontamento com o objectivo de o usar nessa estória. É suposto existir por lá uma parte em que acontecem coisas estranhas, ou melhor, coisas estranhas acontecerão da primeira à última linha, mas nesta parte as coisas serão ainda mais estranhas, e aquele tipo ali sentado, de instrumento na mão, deu-me uma ideia estranha: em vez de estar alguém a dar música a quem está na esplanada, está uma pessoa na esplanada a tocar para quem passa.

Mas logo a dúvida se instala: e se aproveitasse antes a ideia para um post? Isto anda tão mal de ideias… e zás!, logo outra ideia: e se usasse a ideia para o bendito (e esquecido) texto e também para um post?

É melhor apontar tudo, que ainda me esqueço de tanta ideia.

Por esta altura, já o personagem que ali me levou foi negligenciado, o guitarrista corrido da esplanada e dois casais de espanhóis se vieram sentar ao meu lado. A luz do dia já está nas despedidas finais e todas as sombras do Chiado convergem numa só, que tudo cobre. Um arrepio estreito percorre-me as costas, como se fosse atrás do sol, pela Calçado do Combro a baixo. O alerta laranja implica de novo comigo mas, desta vez, para sinalizar também que a bifana e o caldo verde que fizeram as vezes de almoço, já não estão a contribuir para a nobre causa da produção energética.

Antes de pensar em ir para casa, através das entranhas da Terra, escancaradas atrás de mim, tomo nota na conversa dos espanhóis: despreocupadamente e muito entretidos uns com os outros, estão a desancar verbalmente nos passantes. “Olha o cabelo daquela”, “e a roupa daquele? com tanta cor, parece uma árvore de Natal”, “vejam, uma baleia a entrar na igreja”, e coisas do género – a tradução é minha, o sentido das frases, deles. Riem-se, os espanhóis.

Se quem passa é, para eles, estas coisas todas, o que acharão do tipo aqui ao lado que, ao frio e à luz de montras distantes, está a escrever num papelinho muito dobrado? Coisa boa não pode ser. Vai daí, eu que até sou pela paz e pela concórdia, pelo amor e pela meditação transcendental, mas que não aprecio que gozem comigo, encho-me de fúrias e quase olho na direcção deles.

É em alturas destas que eu lamento não ser adepto dos pequenos-almoços ricos em fibra: é que não só regulam o tracto intestinal, como dão fibra – e fibra foi o que me faltou neste final de tarde. A imagem de dois espanhóis a crescerem para mim, logo seguida da imagem de duas espanholas a crescerem para mim – com maus instintos, esclareça-se, que com espanholas de bons instintos, sei eu lidar – em plena cidade que me viu nascer, fez-me pensar nos ensinamentos de Siddharta Gautama, para logo concluir que de beligerantes, está o planeta farto. E disse não à violência.

Amemo-nos uns aos outros!

Ooooommmmmmmm…*

Depois de várias exalações profundas e em ritmo regular, seguidas de inspirações nasais prolongadas, lá me acalmo o suficiente para racionalizar a coisa – acreditem, foi a sorte dos espanhóis: não são, bem vistas as coisas, os meus “apontamentos diversos” exactamente o mesmo que aquilo que os espanhóis estavam a fazer? Não ando eu por aí a observar os outros e a apenas reter deles aquilo que é menos comum? Estou eu quase contrito, quando me lembro de um detalhe: é que eu não ando a fazer comentários sobre este e aquele, em tom jocoso, nem me rio das pessoas em publico. Começa a fúria em ebulição, outra vez. Espero sossegadamente que ela ebula como deve ser e dou um salto na direcção dos castelhanos, convicto das virtudes do ataque de surpresa.

A chatice é que os nossos vizinhos já não são ali. No lugar deles, regalada com o calor que tinha sido deixado na pedra, está agora sentada uma senhora de respeitável idade, muito pequenina e franzina que, ao me ver aterrar na sua frente, não está de modas nem pede explicações, alça da mala que traz a tiracolo e tunga! baixa-ma no lombo com quanta força tem – pouca, felizmente.

Desando dali com quanta rapidez uma pessoa cabisbaixa consegue desandar e enfio-me na secção infantil da Bertrand. Desembrulho o papelinho e tomo uns apontamentos sobre o sucedido, não vá um dia eu querer escrever sobre o sucedido.



quinta-feira, março 12, 2009

O Arame da Vida

O desfiladeiro amanheceu da cor do metal acabado de fundir. Com as primeiras sombras, os animais nocturnos retiraram-se e os diurnos tomaram conta do cenário, desde logo apressados, nos seus afazeres de comer e evitar ser comidos, antes que a temperatura os empurrasse de novo para debaixo das pedras.

Também o trapezista estava com pressa, mas uma pressa contraditória: despreocupada, inconsciente. (Talvez não fosse pressa, apenas impaciência em chegar ao outro lado). Procedeu a alguns exercícios de desentorpecimento. Flectiu, rodou, elevou, torceu, esticou, encolheu. Achando-se fisicamente pronto, deu um ligeiro pontapé no arame, junto à estaca que o fixava ao chão de pó vermelho, como se estivesse a avaliar a pressão de um pneu automóvel. A tensão que lhe entrou pela ponta do sapato de ginástica – outrora branco, mas agora vermelho – e lhe percorreu a musculatura da perna, foi dada como boa. Só faltava achar-se espiritualmente pronto.

Pegou na comprida vara que o ajudaria a encontrar o equilíbrio necessário durante a travessia, e apertou-a entre as mãos, como quem crê pega no terço, quando reza. Contemplou o vazio que se iniciava diante de si, a um palmo dos pés. Uma ténue neblina alaranjada abandonava ainda as profundezas, não lhe permitindo ver os metros finais do cabo, do outro lado do precipício. Tudo o que dali conseguia alcançar era vermelho, àquela hora. Até na ligeira brisa que lhe agitava a franja, pareceu ver a cor do pó que pisava. Sentiu uma golfada de sangue atingir-lhe a face, ao mesmo tempo que uma imagem infernal lhe cavalgou o espírito. Felizmente, ia a galope.

Um rápido exame ao sistema nervoso central, obteve como resultado um inabalável sentimento de segurança. Foi o sinal de que necessitava. Suspirou o mais profundamente que os pulmões lhe permitiram.

Estava espiritualmente pronto.

Sem hesitações ou pensamentos de último instante – que são sempre maus conselheiros para quem vai atravessar num arame, um longo e profundo desfiladeiro – e sem sequer olhar para trás, ou despir o casaco, empunhou a vara do equilíbrio e deu inicio ao atravessamento. Concentrou-se numa máxima que o velho trapezista que o iniciara nos equilíbrios da vida lhe havia transmitido, pouco antes de morrer: “são os olhos, não as pernas, que te levam, por isso, nunca olhes para baixo”.

Olhar em frente e estamos quase lá… olhar em frente e estamos quase lá… olhar em frente e… Foi então que sentiu uma perturbadora agitação junto ao flanco direito, por alturas da nádega. O primeiro pensamento – que, tal como os de último instante, são também maus conselheiros – foi que seria um animal a roer-lhe a roupa. Um pássaro. Um Pica-Pau! Rapidamente foi aliviado do disparate por um segundo pensamento: ali não havia Pica-Paus. O toque do telemóvel interrompeu o modo vibratório e poupou-lhe um terceiro pensamento.

Na pressa (ou impaciência) com que sempre fazia as coisas importantes, tinha-se esquecido de tirar o telemóvel do casaco e o casaco do corpo. E, já que estava e constatar como havia certas coisas nele que não mudavam com o atravessar do tempo, lembrou-se também que não tinha prendido o cabo de segurança, que lhe pendia da cintura, ao arame. Bonito serviço! Agora é que não convinha mesmo nada desequilibrar-se, é que se caísse, ia estar com o velho mestre mais cedo do que era sua intenção. Não que ele não fosse bom anfitrião e pessoa de trato fácil – e até tinha sempre uma anedota engraçada a propósito do que quer que fosse que se estivesse a falar –, mas…

Num movimento estudado, ergueu o joelho direito e amparou com ele a vara, libertando assim a mão, que levou ao bolso do casaco, de onde extraiu o aparelho, que soltava agora os estridentes agudos de Barry Gibb, vocalista dos Bee Gees. Stayin’ Alive, Stayin’ Alive, ha ha ha ha Stayin’ AliiiiiiiveIronias.

Devolveu o silêncio ao desfiladeiro, atendendo a chamada. Era uma sua amiga. Manteve-se imperturbável, quando falou.

“Olá”.

“Se calhar, acordei-te”.

“Naaaaa…”

“Acordei, não acordei”?

“A sério que não”.

“Se for má altura, diz, eu volto a ligar mais tarde”.

“Não há alturas más… desde que não olhemos para baixo”.

“Hã”?

“Depois explico… espero eu”.

“Liguei para saber de ti, que não te deixas ver”.

“Oh! Cá vamos indo, no arame da vida, a ver se a brisa não sopra com muita força, que me esqueci de prender o cabo de segurança, e a rede lá em baixo foi para lavar. E tu, que contas”?

Muita coisa podia ser dita sobre o homem que naquele momento, em cima de um arame, a meio de um desfiladeiro sinistramente profundo, se equilibrava apenas num pé, mantendo uma comprida vara apoiada no joelho, enquanto falava ao telefone, mas nenhuma seria tão verdadeira como aquela que dizia que ele tinha sempre tempo para os amigos.

segunda-feira, março 09, 2009

Procuro

Pode o horizonte que se conquista, ao dar um passo atrás, afinal esconder o que se procura?

segunda-feira, março 02, 2009

Mirita

(este texto começou por ser um comentário a um vídeo/texto no Papel de Fantasia. encontram-no aqui; é o post de dia 16 de Outubro)

Mirita não pode ver uma câmera – seja se filmar, seja de retratar – que logo se vai plantar na sua frente. Não é coisa de sempre, apenas da idade terceira: foi preciso não ter o que fazer, para descobrir tão estranha mania. Todos os dias – fora os de muito frio ou água extrema – sai de casa cedo, cidade abaixo, na direcção da Baixa. Vai à cata de turistas, que é quem mais aponta "essas máquinas do demo, que só existem para me desatinar o juízo", explicou ela, às vizinhas que, um dia, perdendo a vergonha, lhe questionaram "a pancada".

Assim que vê o incauto estrangeiro a enquadrar o que quer que seja, intromete-se na moldura, sem pudor, como quem não quer a coisa, ora a fingir dores nas juntas, ora a pentear a rala melena, ou até mesmo a falar sozinha, mas sempre em pose estudada, de diva – memórias das actrizes, que lhe ficaram das matinés do Paris, e do Odeon, e do Condes, onde Germano, o marido, a levava em passeio domingueiro a ver as fitas. Desde que ele se foi desta para melhor (e ela quer acreditar que ele está melhor “lá”, porque “cá” a Gota o fez sofrer horrores), passa muito do seu tempo a recordar esses passeios de Eléctrico pela cidade; as idas ao cinema e à Revista; o prego que comiam na Estrela Brilhante, no fim da festa, para aconchegar os ânimos. Agora, para além das memórias, sente que apenas lhe restam os "camones" e as telenovelas – que vê sem som, para poder imaginar os enredos.

Coloca-se na imagem para que exista uma recordação dela, tal como ela recorda as actrizes – não importa que não se saiba quem ela é, desde que olhem para ela, por um momento que seja.

No outro dia, desanimada e dorida na sua perseguição às Sonys, Panasonics, Canons e Nikons, decidiu ir para casa mais cedo. Tinha começado a descer os degraus do Metro na Praça da Figueira, devagar, com as artroses a ganirem-lhe de fininho, quando o viu, encostado à parede, ao fundo da escadaria. Empunhava esse objecto maldito, que a hipnotizava, na direcção do céu (ou do que quer que fosse, que ela não é de perder tempo a questionar essa gente estranha que vem de longe). Como está bem de ver, não resistiu. Fez da dor fortaleza e voltou para trás. "Só mais esta, para terminar o dia". Agarrou-se ao corrimão e puxou-se, a moinha a pesar-lhe cada vez mais, a cada degrau que subia. Enquanto se introduzia no enquadramento alheio, ia dizendo baixinho, "vou fazer uma pose dramática, uma expressão de sofrimento, como aquela actriz, daquele filme marroquino, quando o deixa no aeroporto, a caminho de Lisboa... ai, mulher, tu puxa pelas pernas e pela cabeça, como se chama o raio do filme"?