segunda-feira, outubro 29, 2007

Um Jardim na Planície (2)

Joguei uma vez na vida. Teria uns 10 anos, se tanto. Recordo apenas fragmentos desse dia, mas foi algo que ficou comigo. Era verão; mais um dia de praia; os meus pais; a surpresa, antes do regresso a casa. Não parece fazer sentido, mas acho que foi num hotel – ou, mais provavelmente, perto de um. Lembro-me de ter achado divertido, aquela coisa de atirar uma bola contra figuras de madeira, que me lembravam pinguins. Não havia bolas para crianças e os meus dedos, pequenos demais, perdiam-se nos buracos, não me permitindo uma pega decente – o peso também não ajudava. Quase deixei cair uma em cima do pé, o que me valeu uma advertência do meu pai. Cuidado, que isso pode partir-te vários ossos. Não era esse, no entanto, o meu maior receio. Era mais o de ir atrás da bola, planando sobre a pista.

Não convencido daquilo que via, preferi contemplar o enorme calhau em que me tinha apoiado, a dar importância à existência da casa. Tinha a certeza que, quando voltasse a olhar, ela não estaria lá, qual jardim. Era algo que se percebia com alguma facilidade, bem vistas as coisas: estava numa planície quase deserta e as miragens são comuns em quem tem a infelicidade de se perder em tão inóspitos lugares. E como me tinha perdido eu ali? A resposta teimava em não surgir.

Estiquei o tronco um pouco para a esquerda e levantei os olhos lentamente, como se estivesse numa sala de cinema, a assistir a uma cena de suspense. A casa continuava lá. Pisquei, esfreguei a vista. Fechei os olhos e abri-os de novo. Ainda lá. E, percebia agora, havia algo mais. Um segundo risco negro atravessava a paisagem, no sentido este/oeste. O cruzamento dos dois caminhos fazia-se à frente da habitação.

Não estava muito longe e não havia o que perder. Ilusão ou realidade, em breve ficaria a saber.

À medida que me aproximei, pude perceber que era uma casa em madeira. Toda ela constituída por tábuas rectangulares e largas, de aspecto robusto, que pareciam coladas umas às outras, já que não eram visíveis quaisquer pregos. Aparentemente sem tratamento, a madeira tinha o tom da terra circundante e imensos nós, que eram grandes círculos perfeitos, de um castanho muito escuro, o que dava um ar pintalgado e desapropriadamente cómico ao imóvel. Curiosamente, o telhado era também em madeira, mas sem nós. Havia duas janelas – que estavam fechadas com portadas da mesma madeira – e uma chaminé. A porta – desproporcionadamente grande e de aspecto maciço e pesado – ficava para lá de um alpendre. Duas traves suportavam a extensão do telhado, proporcionando, pensei eu, uma sombra que seria, por certo, muito apreciada nos dias em que sol estivesse descoberto.

Parei a uns vinte metros. Parecia estar vazia. Diria mesmo, abandonada, apesar do bom estado de conservação. Hesitei quanto ao que fazer: bater à porta, contornar a casa, chamar por alguém, seguir o meu caminho – mas, para onde? O sol rasgou a neblina, mesmo à minha frente, cegando-me. Quando, finalmente, consegui ver, tinha o banco de pedra do jardim à minha frente. Uma gota de sangue escorreu para o relvado mas, com aquela luz tão dominante, não havia sequer contraste entre o vermelho e o verde, e ela perdeu-se num mar de quase brancura, a meus pés. Tive então a distinta sensação que atrás da sebe estava alguém. Aproximei-me, mas estava no alpendre, com a porta à minha frente.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Um Jardim na Planície (1)

Água a cair. É a primeira coisa que recordo. Gota a gota. A intervalos irregulares. À minha volta. Caindo em superfícies diferentes, uma sinfonia fluida e repetitiva.
Seria chuva ou alguém que regava? Veio-me à ideia, vagamente, a existência de um jardim, algures no meu passado. Uma imagem ténue de relva, flores, uma sebe e muito sol. E de um banco de jardim, em pedra. A resposta chegou célere, na forma de um arrepio que me trespassou; gelado e cortante. Era chuva: o frio que me percorreu anunciava que o verão já não era mais. O cinzento metálico do pouco que eu conseguia distinguir do sítio em que me encontrava, parecia confirmá-lo. Tudo o resto era o mais absoluto negrume.
O som do que me pareceu ser um camião a passar a alta velocidade, interrompeu a orquestra líquida e transportou-me para uma planície distante e estranhamente familiar. Ao longe, a toda a volta, altas montanhas cercavam a paisagem. Um risco escuro e sinuoso, feito de alcatrão, serpenteava pelo cenário, como que à procura de uma saída. Grandes conjuntos de pedras arredondadas, umas por cima das outras, estavam por todo o lado. Da vegetação – rasteira, enfezada e torcida, toda em vários tons de castanho – caiam as últimas gotas.
Tinha parado há pouco de chover – mesmo antes da minha chegada – e sentia-se ainda o cheiro a terra molhada. Pressentia-se a saída dos animais dos seus abrigos para uma inspecção ao território, agora húmido. Quem sabe se na esperança de encontrar uma refeição distraída, a contemplar tão inquietante lugar… que era o meu caso, ocorreu-me subitamente. A adrenalina disparou e com ela o ritmo cardíaco. Como se estivesse algo ou alguém atrás de mim. Instintivamente, olhei em redor. Nada nem ninguém. Apenas a tristeza daquela vasta paisagem, em que as cores pareciam ter sofrido um processo de arrefecimento. Tudo ali era frio. A existência parecia em suspenso.
Impelido, talvez, por um ancestral instinto de sobrevivência, fui abrigar-me junto a uma daquelas formações rochosas, composta pelo que pareciam ser gigantescas bolas de bowling deformadas, empilhadas umas nas outras, em periclitante equilíbrio. Não demorei a sentir-me desconfortável. Embora consciente da ínfima probabilidade das pedras desabarem sobre mim, achei por bem afastar-me. Mas o desconforto não passou: não eram as rochas, era todo aquele sítio.
O fio escuro do alcatrão desaparecia uns metros mais à frente, num declive, para reaparecer mais longe e perder-se na linha do horizonte. A norte, surgia de uma curva apertada, a meio da parede montanhosa descendo depois vertiginosamente, enquanto a sul era engolido por uma espécie de enormes rolos de neblina que, num tom entre o cinzento e o castanho, pareciam rebolar sobre si, num movimento perpétuo – lembraram-me flocos de algodão doce a formarem-se em redor da pega de madeira. Todo o céu estava coberto não por nuvens, mas por farrapos daquela estranha massa líquida vaporizada e muito difusa – seria fumo?
Onde eu me encontrava não havia vento, mas a maior altitude não era assim, já que os vários pedaços em que a neblina se divida seguiam em várias direcções, impelidos por um vento que não descia. Era grande o contraste entre a desanimadora imobilidade terrestre e a frenética agitação celeste. Vi então, outra vez, o jardim. A relva, o banco de pedra, muita luz, as cores esbatidas, a sebe… e a inquietante sensação que estava alguém atrás da sebe. Perto de mim, um relâmpago rasgou o céu, e a ténue memória do jardim. O trovão demorou a chegar, mas quando o fez foi com uma violência inusitada, algo que eu nunca tinha presenciado. Levei as mãos aos ouvidos e encolhi-me. A onda de choque apanhou-me pelas costas e fez-me dar um passo.
Abri os olhos devagar, talvez por receio de me ver num outro local. Sabia que tinha sido apenas um relâmpago, mas nada do que me estava a acontecer parecia normal. Encontrei a mesma planície deserta e silenciosa e o mesmo céu, caoticamente agitado. Tentei lembrar-me do jardim, afinal, estava lá mais alguém, mas não fui capaz, não me conseguia concentrar. E então, reparei que nem tudo estava absolutamente igual: eu estava agora em cima do alcatrão.

Distinguia-se um ponto fixo por entre o movimento apressado daquelas estranhas nuvens. Uma circunferência amarelada. Perfeita e grande. Pela altura do sol no firmamento, calculei que o dia estivesse a meio. Achei por bem caminhar na sua direcção.
Pouco depois da sexta centena de passos, o caminho de alcatrão começou a descer, em curvas abertas e suaves, por entre plantas carnudas e espinhosas, que me pareceram ser da família dos cactos. Caminhava-se com facilidade naquele piso. O betuminoso parecia ter sido amolecido pela recente chuva e era mais uma pista de tartã do que pista para veículos automóveis. Entretive-me na procura de um ser vivo animal, já que até então não tinha avistado nenhum. Olhava agora mais para baixo que para a frente e quase tropecei no banco de jardim que, inusitadamente, apareceu à minha frente. A luz do sol era ainda mais intensa, colorindo tudo de um amarelo que era quase branco: a relva, a sebe, a pedra de sentar, o sangue. Sangue? Seria sangue aquela mancha num dos vértices do assento? Senti-me oco, como se, num instante, tivesse abandonado o meu corpo. Procurei apoio na pedra para não cair desamparado.
Apesar do sol intenso – que deveria ser abrasador – a rocha estava fria e húmida. Tinha colocado a mão na mancha de sangue. Mas não. Não havia banco de pedra, nem sol. Eu não estava no jardim, antes, continuava naquela inexplicável e ininteligível planície. Estava apoiado numa das bolas de bowling e, para lá dela, avistava agora uma casa.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Há Magia no Chiado (4)

Foi vai já para duas mãos cheias de anos, mas lembro-me bem. Dizia assim: Você Numa Palavra. Não que ligue a esse tipo de análise instantânea como as mousses, mas a curiosidade apanhou-me distraído e acabei por gastar quinze minutos da minha existência a preencher o questionário da revista – o de sempre: uma situação é colocada ao leitor, que depois deverá seleccionar a opção de resposta que mais tenha a ver consigo; somam-se os pontos e consulta-se a tabela junta. A originalidade deste passatempo (que outra coisa não podia deixar de ser) era o resultado ser apenas apresentado numa palavra, mais exactamente, um adjectivo.

Não lhe dando importância, a verdade é que nunca mais esqueci o resultado, embora seja coisa em que faço por não pensar, talvez por receio de concluir que é verdade: resignado. Segundo a tabela, era isso que eu era.

Tudo isto me veio à ideia quando me vi assim reflectido, naquele mágico fim de tarde no Chiado. O toque nas costas – mais um empurrão que outra coisa – foi tudo menos amigável e deu o tom ao dialogo que se seguiu. Vá, vamos lá a mexer, foi a primeira coisa que me disse. Voltei-me e, para meu espanto, tinha perante mim mais uma figura da nossa praça. Vá lá, para casa que o jantar já deve estar na mesa, insistiu. Demorei algum tempo a perceber o que tudo aquilo significava: primeiro, porque não o reconheci imediatamente, depois a surpresa de ter o Luis de Matos a dirigir-me a palavra com maus modos, e por fim, ver o meu reflexo nos seus óculos espelhados.

Bem mais alto do que eu, mirava-me como o Golias deve ter mirado o David. Atrapalhado com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo, só me via a mim, minúsculo nas lentes dele. Nada de importunar o artista, siga mas é o seu caminho. Eu, que nunca antes tinha sequer estado perto de gente conhecida, naquela tarde, em poucos minutos, era já a segunda vez que me cruzava com alguém conhecido da televisão e das revistas – e ambos pareciam decididos a implicar comigo, que me sentia cansado e só queria chegar a casa.

Luis de Matos, nem mais. O nosso Siegfried. O nosso Roy. O Copperfield lusitano. O homem que atravessa paredes de canecas, faz desaparecer elefantes e adivinha o Totoloto, estava a empurrar-me. Sendo grande mágico, é também a medida da nossa pequenez enquanto país: em 1995 acertou na chave do Totoloto com uma semana de antecedência, mas vejam lá se ele acerta na do Euromilhões. Uns poucos milhares de Escudos? Não custa nada. Uns milhões de Euros? ‘Tá quieto. É a cruz que teimamos em carregar: pobrezinhos, mas honrados. Parece-me mal e tenho para mim que ele devia tentar, quanto mais não fosse, para mostrar mais uma vez a essa Europa aquilo de que o tuga é feito – nem que fosse numa semana em que não houvesse jackpot, para ser mais fácil, que ninguém lhe levava a mal por isso.

Oh amigo, siga o seu caminho, e mais um empurrão. Vejo-me diminuído no reflexo, mas reparo que estão lá dois de mim. Foi o suficiente para sair do estado de torpor em que me encontrava. Resignado, eu? O sangue ferve-me num repente e já o estou a empurrar também. Que é, pá, há azar? Aos impropérios e interjeições que se seguíram, vou poupá-los, mas ainda vos digo que ele depressa percebeu que tinha mais a perder do que a ganhar em continuar a troca de insultos com um zé-ninguém em plena via pública, e acabou por se acalmar. A intervenção de Larry Porter também ajudou, ao se meter entre nós e ao dizer ao amigo mágico que eu não o estava a importunar. Eu só quero ir para casa, pá; se falei aqui com o seu amigo é porque me pareceu conhecê-lo – e estava agora ainda mais convencido disso, que na troca de encontrões, acabei por ver que ele tinha uma cicatriz na testa, tal como eu suspeitara.

Luís de Matos fez-me ver que, nunca tendo eu saído do país – com a honrosa excepção de ter ido uma vez a Ayamonte, não havia ainda ponte no Guadiana – pura e simplesmente não podia conhecer o Larry, que nunca antes estivera em Portugal. Pela televisão, contrapus. Impossível, rebateu o mágico, ele nunca apareceu na nossa televisão. Eu calei-me que, por não os ter, não me lembrei do cabo nem da parabólica. A tudo isto o visado respondia com o sorriso amarelo de quem está numa situação desconfortável. Com a mochila onde tinha guardado os artefactos da profissão, às costas, parecia um miúdo no primeiro dia de aulas, numa turma em que todos os colegas se conheciam. Ia fazendo festas à coruja que, de olhos fechados parecia dormitar no seu braço, e dizia: no problem, lads, that’s quite alright, e virando-se para mim, acrecentou: really, i never been here before. Estive quase para lhe dizer quem eu achava que ele era, mas o medo do ridículo não me deixou falar e acabámos por ficar uns minutos na conversa.

Já a sorrir, o Luís explicou-me o que era o festival Lisboa Mágica e os seus planos para o futuro. Larry, por sua vez, contou como não tinha ainda tido tempo de visitar a cidade, como estava a achar as pessoas muito simpáticas e que ia aproveitar para ficar uns dias por cá, para jogar golfe, a sua nova paixão, depois de ter deixado de praticar o seu desporto favorito. Football, disse eu. Oh no, Quid… Nesse momento, a coruja abriu os olhos e bateu as asas, soltando um grito que fez parar o Chiado. Curling, acabou Larry por dizer, i just love to sweep the floor, e estampou um sorriso ainda mais amarelo que o anterior. Eu ia falar de vassouras, mas ele levantou-se rapidamente e disse que tinha de ir, que a mulher e os dois filhos estavam para chegar à estação de comboio. Estendeu a mão e eu agarrei-a, sacudi-a, e não a larguei. Disse-lhe que teria todo o gosto em o acompanhar a Santa Apolónia e, de caminho, parávamos para comer qualquer coisa na “Taberna do Menino Jesus”. Pork sanduíche, very nice!, e pisquei-lhe o olho. Larry não conseguiu evitar um esgar e, educadamente, rejeitou a oferta da sandes e da boleia, até porque, disse ele, a estação era já ali perto, no Rossio. Impossível, expliquei eu, que essa estação estava fechada há muitos anos para obras. No trains. Ele soltou a gargalhada mais bem disposta que ouvi nos últimos anos. Don’t worry, it’s a special train.

* * *

Ao passar pelo Luís de bronze, encolhi os ombros na sua direcção: ou estavam todos doidos ou estava eu. Ele manteve-se impávido, sereno e cagado de pombo.

Demorei-me uns segundos a ver as cabines do elevador da Bica, já meio encobertas pela escuridão, cruzarem-se a meio da calçada, e comprei um pacote de manteiga no supermercado vizinho. Encontrei lá a Dona Alzira, a minha vizinha de baixo, e ajudei-a a trazer o saco das compras. Falámos da carestia de vida, de como os políticos são uns bananas, que só querem dar cabo da vida das pessoas e de como as paredes da nossa rua estão todas conspurcadas com desenhos estúpidos, feitos por gente estúpida. Depois mudei de roupa, fiz um chá de camomila e uma torrada, que comi devagar, à janela das minhas águas-furtadas, a ver as luzes acenderem-se pouco a pouco, do outro lado do rio. Ao colo, o livro de aventuras que estava a ler e que olhei com desconfiança, não fossem essas mesmas aventuras estarem a dar-me a volta ao miolo. Ia pegar nele quando, pelo canto do olho, me pareceu ver a silhueta de uma coruja a fazer um voo rasante aos telhados que cobrem a encosta até, à frente da minha janela. Estiquei o pescoço para fora, mas já só ouvi um piar a desvanecer-se ao longe.

Ao apanhar o livro do chão, reparei que no lugar do bilhete de cinema que servia de marcador, estava um envelope lacrado. Na frente, em letras grandes e estilizadas – com aspecto antigo e distinto – uma frase: Always Believe.

(fim)