quinta-feira, fevereiro 28, 2008

(parêntese)

Só para recordar que é já no próximo sábado, dia 1 de Março, às 17h00 que passa a minha hora musical na Radar 97.8FM Emissão online, aqui.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Sentidos Únicos

Tem um trabalho ingrato: apagador-chefe, na Imensa Autoridade dos Caminhos da Vida. Compete-lhe eliminar os vestígios das estradas caminhadas pelas pessoas que não querem voltar atrás.

Só apaga a pedido e quando aceitou tal emprego, julgou que iria ter uma vida regalada de pouco ter que fazer. Quem é que não quer – nem que seja por um instante, para apenas matar saudades ou recordar algo – guardar o caminho que o trouxe ao sítio em que se encontra?

Por má estrada que fosse, por irregular que fosse o piso, sempre foi onde se deixou algo nosso, pedaços daquilo que somos. Podemos até nem querer voltar para trás, mas havemos sempre de querer saber o caminho. Nunca se sabe para onde vamos a seguir e, às vezes, pode ser útil amanhã o que não nos faz falta hoje.

Assim tinha avaliado a coisa. Mas a verdade que encontrou muito o surpreendeu: não havia mãos a medir, a toda a hora recebe pedidos para obliterar trajectos. Sem nunca conseguir evitar o espanto com tanta vontade de esquecer, lá vai ele, empurrando o carrinho de mão, a pá e a vassoura.

Tem um trabalho ingrato porque lhe custa recolher os despojos de vidas vividas. Cada objecto caído, cada memória abandonada, como se fossem partes de corpos, em nada diferentes de um braço, uma perna, um coração. Também eles necessários para viver.

Decididos a serem esquecidos, recolhe corpos mutilados, vidas mutiladas. E sente a sua definhar.

Talvez seja por isso que, ao contrário das ordens que tem, não incinera nada no fim de cada dia. Guarda tudo o que encontra no armazém dos fundos: tem esperança que um dia lhe apareça alguém, arrependido, à procura do caminho apagado, e ele possa depois ajudar.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Intempérie no Sofá

Quem não leu o penúltimo post, deverá fazê-lo aqui, antes de prosseguir - não demora nada.


Sebastião não conteve o arroto. Um efémero, mas inequívoco aroma a tremoço e malte fermentado rodopiou-lhe boca fora. Estava sozinho mas, ainda assim, sentiu uma ponta de vergonha pelo descuido.

Acomodou-se no sofá sem grande convicção. Não fosse a anemia do mercúrio no termómetro e o aviso do Instituto de Meteorologia que as vagas iriam estar particularmente alteradas, estaria a pescar à beira Tejo, a procurar gaivotas passadas, a confirmar o horário dos navios pela previsão de chegadas publicada no site da Administração do Porto de Lisboa. E a sonhar.

Distraía-se facilmente com o movimento portuário, em casa não. Deitou-se, com as pernas no ar, por cima de um dos braços do sofá. Por causa do gosto pelos navios, comprou uns binóculos para lhes conseguir ler o nome e uma máquina fotográfica para os registar para memória futura – sempre no mesmo enquadramento: do lado da foz, com os silos da Trafaria em fundo. Encontrava no facto – presumido – de ser o único dos presentes à beira mar que sabia que tipo de navio se tratava, bem como qual a sua carga, um motivo de grande satisfação. Era como se possuísse um grande segredo pelo qual muitos estariam dispostos a pagar avultadas quantias – e mesmo a matar – para conseguir. Enquanto mudava chumbadas e cobria anzóis com isco, inventava para si um personagem, sempre enigmático e solitário, membro de uma sociedade secreta, uma espécie de Templário Naval: sem super-poderes, mas com muita astúcia, engenho e pulmão, o que lhe permitia atravessar a nado o Tejo de Belém a Porto Brandão, debaixo de água, de um fôlego só. Eram momentos em que lhe vinham à tona das ideias intrigas aguadas, que navegavam à volta de navios graneleiros, porta-contentores, tanques químicos, navios de guerra, bombas terríveis, mais os terroristas do costume e que culminavam, regra geral, com a salvação da pátria. Estes filmes faziam-no sentir-se útil, alguém com uma missão, com um propósito na vida – pelo menos, durante os dois pares de horas em que estava à pesca e que regressava a casa de eléctrico.

Mas com a ondulação ao sabor da intempérie não havia peixe que fosse ao anzol e doía-lhe também a garganta. O frio húmido, que o vento conseguia fazer passar pelos mais pequenos orifícios da roupa, não lhe iria fazer nenhum bem e assim, ficou em casa a ouvir o relato dos jogos da Taça.

Aos quinze minutos de jogo não havia golos. Os vários relatores do serviço público de rádio iam dando conta das (poucas) incidências futebolísticas de norte a sul do país – sem esquecer os arquipélagos –, quando Sebastião viu uma seta sulcar as águas na sua direcção. Um frio glaciar tomou conta de si. Completamente ensopado e gelado, sentia os pulmões espalmados, pendurados dentro de si ao sabor de um vento cortante que, impiedosamente, lhe abria feridas na carne. Respirar exigia-lhe um esforço tremendo e doíam-lhe todos os ossos da caixa torácica. Aos outros ossos, não os sentia sequer. Julgou-se dentro de uma enorme caixa metálica em que tudo era cor de ferrugem: o céu, as nuvens, os edifícios, as margens, a água.

Estava em pleno rio, a debater-se com extrema dificuldade para se manter à tona, quando reparou num enorme navio que contornava o farol do Bugio. A única cor daquele lugar era uma estreita faixa vermelho-sangue que percorria o casco a todo o comprimento, junto à linha de água. Uma seta apontada a si. E aproximava-se a grande velocidade, afastando para os lados as águas castanhas com desprezo e rudeza.

Retirou um pequeno binóculo de um dos bolsos do colete – que usava por cima de uma T-shirt com a imagem do Rambo a segurar uma metralhadora e a frase “Get Some, Baby” – e apontou-o à proa. Maersk Beaumont, leu. Como se tivesse levado uma injecção de adrenalina, Sebastião começou a nadar furiosamente na direcção da margem norte ao mesmo tempo que fazia uma avaliação da situação: navio porta-contentores do tipo panamax, foi construído nos estaleiros da Volkswerft, em Stralsund, na Alemanha; com um comprimento total de 294 metros, 32 metros de boca, 53.868 toneladas de deadweight, 48.853 toneladas de arqueação bruta, calado de 12,2 metros e uma capacidade de 4196 contentores standard. Está registado em Londres, propriedade do armador Bambini di Dio, que mais não é que uma fachada da famigerada organização internacional de malfeitores conhecida como Cosa Vostra.

Confirmava-se o relatório que tinha recebido dias antes: era esperado a qualquer momento um atentado com uma bomba atómica em Lisboa. Sabia agora que era transportada num dos muitos contentores a bordo. Àquela velocidade e naquela direcção o navio iria ser arremessado contra a Torre de Belém, fazendo assim deflagrar a bomba. Lisboa seria arrasada até Chelas. Não havia tempo a perder. Um futuro em que a Baixa seria na Zona J, era algo inconcebível. Mas o navio estava já muito próximo dele. Não havia um segundo a perder.

Carregado com instrumentos variados – aqueles com que um agente secreto nunca sai de casa sem – não conseguia velocidade. A proa era agora um monstro marinho imenso que se preparava para o tragar. Foi empurrado para o lado pela ondulação que a deslocação que tão grande animal provoca e afogou-se.

A primeira coisa que viu foram estrelas, depois uma baleia e o Capitão Nemo a acenar-lhe atrás de uma das vigias redonda do Nautilus. Atrás de um outro vidro ia um senhor de barbas, com ar antigo e distinto, que só podia ser Julio Verne. Gostava imenso dos seus livros, que tinha lido em criança com irrepetível prazer. Numa terceira vigia, surpresa das surpresas, vestido num dos seus habituais fatos que ferem a vista, estava o Elvis, que lhe sorriu um sorriso níveo, de dentes perfeitamente alinhados. Não estava gordo.

Começava a achar que a morte era uma coisa esquisita, quando ouviu um canto ao longe. Era belo, entoado numa voz juvenil, pura, que nada tinha a ver com aquele sítio frio e feio. À medida que a canção se tornava mais perceptível, viu que uma pequena figura feminina se aproximava, ondulante. De súbito, detrás de uma serapilheira velha que por ali boiava, surgiu-lhe Ariel, a Pequena Sereia. Era bela como a sua voz, de longos cabelos ruivos que pareciam dançar ao sabor da corrente. A criança, metade mulher, metade peixe, deteve-se a alguns metros dele, a cantar. Colocou depois uma mão sobre o coração e ergueu a outra na direcção do céu, enchendo as guelras de água e fechando os olhos. Ia terminar a canção com um vibrato poderoso, quando a sucção provocada pela rotação das enormes pás da hélice do navio lhe interrompeu a actuação, despedaçando-a em todas as direcções. O gosto do sangue meio humano, meio poiquilotérmico, misturado com esgoto, provocou em Sebastião um efeito estranho: de um momento para o outro o barulho do navio tornou-se de novo audível – ensurdecedor, na verdade – a água voltou a ficar gelada e os seus ossos e pulmões a doer as dores de todos os infernos.

Projectado para longe pelo turbilhão provocado pela hélice do Beaumont, percebeu que não estava ainda afogado. Conseguiu reunir a presença de espírito necessária para se livrar do colete e das calças que, encharcados e com os bolsos cheios, faziam-no pesar quase o dobro – não sem antes ter ficado com um saco de plástico transparente, que tinha um fecho de correr, o que o tornava estanque – e nadou até à superfície.

Quando veio à tona, já sabia como deter o navio que, naquela altura, deixava para trás a praia da Cruz Quebrada. Com o corpo trémulo e roxo de frio, parecia um cadáver ligado à corrente eléctrica. Cheio de dores e a mal sentir os membros, conseguiu retirar do saco um transmissor de rádio – que ligou e sintonizou na frequência desejada – e um GPS, que também ligou. O plano era simples: estava ao largo da barra do Tejo, a caminho de Plymouth, o HMS Tireless, submarino classe Trafalgar, da Royal Navy, que transporta mísseis de cruzeiro UGM-84 Harpoon; apenas um, seria mais que suficiente para deter o Beaumont; bastava contactá-lo e dar-lhe as coordenadas da Torre de Belém. O dia estaria salvo.

“HMS Tireless… HMS Tireless…” Impiedosamente fustigado pela ondulação e com as forças a abandoná-lo, Sebastião tinha dificuldade em falar e em se manter à tona. “HMS Tireless…” insistiu ele, “Sebastião calling… HMS… please, please…” Nada. O Beaumont estava já a poucas centenas de metros da Torre de Belém. A esperança abandonava Sebastião quando do rádio saiu um som engasgado e embrulhado em estática. Ao longe, mas sem deixar dúvidas, ouvia-se uma voz. “HMS Tireless, Sabastião calling, I need your help”, gritou ele com renovado ânimo. Uma voz formou-se nos circuitos do aparelho e ecoou bem alto na sala: “GOOOOOOOOOOOLO… Juninho Pernambucano a fazer o primeiro tento da sua equipa… uma boa jogada pelo flanco direito do ataque…”

Sebastião deu um salto no sofá, caiu mal e rebolou para o chão, batendo com a testa no soalho. Com as pernas dormentes, sem se conseguir levantar, afagava o sítio onde o galo iria nascer e pensava nas inúmeras vantagens que havia em sonhar acordado.


terça-feira, fevereiro 12, 2008

Os Meus 15 Minutos de Fama Radiofónica

É ainda o autor que vos escreve.

Preparava-me eu para publicar o tal texto meio cavilha, meio prego pequeno (amigo do senhorio) quando - surpresa boa - a Radio Radar, 97.8FM (ouvir aqui) me convidou para apresentar uma hora de música por mim escolhida e que eu lhes tinha enviado há algum tempo - para quem ouve a rádio, trata-se d'A Hora do Bolo.
Tenho estado a arear tachos, panelas e formas e a reunir os ingredientes para amanhã ir gravar a dita cuja. A emissão da coisa é aos sábados às 17h e repete domingo às 16h - esqueci-me de perguntar se o meu bolo é fatiado já no próximo fim-de-semana ou noutro posterior; de qualquer maneira, fica prometido para quinta-feira uma adenda a este texto com mais pormenores e notas da gravação.

Adenda
A coisa deu-se. Está dentro de um computador à espera de ser lançada ao éter. Vai ser dia 1 de Março, sábado, às 17h; repete dia 9, domingo, às 16h - falta ainda tempo suficiente para voltarmos a este assunto aqui no blogue.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

O Tamanho É Importante...

... ponto de interrogação.

É quem mantém este jardim florido, conhecido por Malefícios da Felicidade, que vos escreve, o autor, não qualquer narrador de ocasião, como é costume por estas bandas -
desta vez, não há história... nem estória.
E é com o coração nas mãos que me apresento perante vós - vejam lá onde é que se encostam, para não se sujarem de sangue, que a gerência não tem verba para lavandarias.

Não é sobre isso em que estão a pensar que vos quero escrever. O que aqui me traz é o tamanho daquilo que escrevo.
Ultimamente, tenho-me interrogado se faço bem em partir os contos (!?) às postas. Não consigo deixar de achar que, quando é publicada a parte seguinte, já ninguém se lembra do que ficou dito antes, perdendo-se assim o encadeamento mínimo que permite apreciar o fino recorte literário que por aqui não existe - a mim acontece-me esquecer detalhes mais ou menos importantes, confesso, que também escrevo às postas.
Assim, sinto-me tentado a por tudo à mostra de uma só vez, independentemente do tamanho. Nem que seja só para experimentar,
o próximo texto, que em termos de tamanho e usando linguagem de loja de ferragens, não é propriamente uma cavilha, mas também não é um amigo do senhorio, vai todo junto, ficando ao critério do paciente leitor a forma de melhor o pregar: se de uma martelada, se de marteladas várias (tenho quadros para pendurar, o que querem). Isto implica é uma coisa: preguiçoso como sou, sou capaz de demorar a publicar - não que isso importe, eu sei, mas já está escrito e vou deixar ficar.

E agora vou, que ainda tenho que ligar os aspersores.

Obrigado.