sexta-feira, dezembro 28, 2007

A/c do Rodrigo Leão

Rodrigo,

Lá estive, mais uma vez. Nunca é a mesma coisa – e ainda que fosse, seria sempre um prazer. Se da penúltima vez nunca tínhamos sido tantos, desta, nunca tínhamos sido tão poucos. Resultou bem a opção intimista, de como quem se encontra no café e começa a falar da vida.

Não terá sido propositado, mas achei feliz a coincidência: local de encontros – ocasionais ou fortuitos – o café é também sítio de observação daqueles cujo trajecto se cruza, num ponto do tempo e do espaço, com o nosso olhar, e nos interrogam, se a isso estivermos dispostos.

Foi isso que aconteceu no sábado passado. Encontro de amigos, que falaram de si, e na tela, os anónimos que, sem terem dito uma palavra, disseram tanto sobre nós, os portugueses – excelente o trabalho do António Barreto, da Joana Pontes e o teu, ao nos retratar tão bem.

Lá estávamos nós, com aquela expressão triste – mesmo quando sorrimos –, a preto e branco, no campo, a caminho da cidade, a esperança que ia ser desta, as barracas…; em miúdos a fazermos fila para nos encherem a caneca com leite; na praia – talvez o sítio onde somos menos fatalistas – a aproveitar cada momento como se no dia seguinte a maré não voltasse; também a cores, mais descontraídos, com cara de quem anseia pelos maiores centros comercias da Europa, que somos pobres, mas desenrascados, e também se desenrasca consumo; lá estavam os velhos que já não são, a olhar com cara de caso para quem lhes tirava o retrato; também vi pressa e fiquei a pensar para onde iríamos nós tão apressados, seria em direcção ao futuro? Sabes o que não vi, Rodrigo? Não vi o Eusébio a marcar golos, ou o Águas a levantar uma das Taças dos Campeões (bons tempos…), também não me lembro de ter visto a Amália, de xaile nos ombros, olhos cinzentos, a fingir um sorriso, e não vi Fátima, a Nossa Senhora em ombros, os lenços a acenar. Teriam as imagens passado, por certo, num daqueles momentos em que eu estava a sonhar, que é coisa que me acontece quando te oiço.

Desta vez, talvez por sermos poucos, imaginei-me um de vocês, alguém que tinha o engenho suficiente para saber tocar um instrumento e estava no palco, a ser provocado pelo olhar maroto da Viviena, como ela faz com o Jano Lisboa ou com a Celina (como ela está a cantar bem; e, já agora, o que dizer da Ana Vieira, do Marco, do Luis Aires ou do Luis San Payo? Todos excelentes). A música também serve para estas coisas, não serve? Para nos transportar para sítios onde se queira muito ir, e lá, sermos aquilo que se consegue ser apenas nos sonhos. E faz-nos querer ser melhores pessoas, limar as arestas, as falhas.

Houve alturas em que eu não estava no Jardim de Inverno, antes, fui protagonista de um filme cujo guião construí com cada acorde da tua música, que é a banda sonora perfeita para o filme das nossas vidas: para os altos e para os baixos, para quando somos apenas nós, ou quando nos partilhamos; quando partilhamos locais. São alturas em que consigo ver esboços de como as coisas deviam ser. Em que é mais fácil vislumbrar os espaços em branco da vida que compete apenas a nós preencher, e que tantas vezes não sabemos onde estão, de tudo nos surgir tão turvo.

Tenho que te confessar que é apenas isso, um fugaz momento, uma fracção ínfima de tempo e que eu não tenho capacidade de apreensão para guardar memória do mapa com o caminho de saída do labirinto, mas é algo tão raro e precioso que, por mais ténue que seja, é muito importante para mim. Sabes, permite-me esperança – algo que ao pessimista raramente é concedido.

Acreditas que, enquanto vos ouvia, vi uma estrela cadente?

Até breve. Um abraço.



Do que se trata .pdf e site

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Francisco e o Caleidoscópio

Gingando pela Rua Augusta, ao som de Lou Reed, ainda e sempre na sua, mas já sem o mesmo speed, segue o seu caminho. Com o leitor de mp3 na algibeira, Francisco o, em tempos, freak da Cantareira. Distraído a tentar perceber as novas tecnologias, vai os esses, rua acima – algo que lhe ficou dos muitos chutos nas retretes e das trips de heroína – com os seus inseparáveis sapatos bicudos e joanetes.
Agora, a noite vem e ele ainda atina. Não é já o maior da Cantareira, ainda tem borbulhas, mas não usa patchouli, nem brilhantina. A cólica, o escorbuto e a caganeira, são uma memória – embora ainda presente e sofrida. Vinte seis anos depois, ainda domina a cena e continua a farejar a judite em cada esquina. A vida, essa, complicou-se e não tem apenas um problema: se antes era o ácido com muita estricnina, agora são os inúmeros créditos a que tem que fazer face todos os meses.
Da Cantareira à Baixa, da Baixa à Cantareira, conhecia os flipados todos de ginjeira, mas agora está em Lisboa, chegou ao Rossio e a ginjinha está fechada por ordem da ASAE. Desconsolado, reparou num tipo que, a seu lado, contempla também a porta fechada da tasca. É um intelectual de ar estafado, um homem de faces cavadas. Na noite, topou imediatamente Francisco. “Por certo, no Bairro Alto”. Como que saindo de um sono profundo, o homem tomou a direcção do Jardim do Regedor.
No silêncio dos seus cansados ténis claros, seguiu em passos largos de dança. Francisco foi atrás. Aquela figura atraía-o. Teve a sensação que o conhecia. Talvez fosse aquela dureza como rocha, que lhe vinha do olhar, através dos óculos. Achou-o fã da violência: vestia cabedal, que era, afinal, napa preta. Parado no tempo!? Não conseguia afirmar, mas percebia nele fome. E agora, quem sabe, não seguia o caminho da fábrica ou do estaleiro. Francisco acelerou o passo e tocou-lhe no ombro. Quando o outro se virou, pareceu-lhe que tinha vestido a pele de um animal em fuga. Estava agressivo, o que, afinal, era a reputação ideal.
– Calma, carago! – Deu um passo atrás ao enfrentar o olhar do outro. – Eu só queria falar…
– Falar o quê? – Respondeu após um breve silêncio e depois de ter mirado o seu interlocutor e quem por eles passava.
– Acho que te conheço.
– De onde?
– De sítio nenhum, antes, de um tempo. – O outro pareceu ficar curioso. – Do inicio dos anos oitenta. Da noite. Do começo de uma mudança. Da música.
– Talvez… é possível. Eu andava por aí, nessa altura. E musica, sempre.
– Percebi isso. É que eu, também. Acho que nós acabámos por resumir bem o sentimento de uma geração – O que quer que fosse essa coisa que tinham em comum, o outro reconheceu-a em Francisco.
– Sim, talvez…
– Havia uma angústia que começou a ser gritada…
– Gritada. – Interrompeu. – Não sei se gritada, pelo menos, logo no inicio mas, pelo menos, a ser mostrada. Uma ânsia, acho que era mais isso.
– Implicou sofrimento, para ti? – A resposta chegou primeiro através de um aceno de cabeça.
– Sim, sim. – Ficaram os dois calados durante algum tempo. – Mudavas alguma coisa?
– Claro que não, carago! Eu estava lá. Fui dos primeiros, estava na vanguarda. – O outro quase sorriu. – Estou com sede, vamos beber uma?
– Bute lá! Mas, com isto tudo, nem nos apresentámos.
– Chico, mais conhecido por Chico Fininho. Portista de gema, em visita à capital.
– A mim, chamam-me Rapaz Caleidoscópio.



A inspiração(!!) deste texto vem, obviamente, do tema Chico Fininho, do Rui Veloso (letra, Carlos Tê; música, Carlos Tê e Rui Veloso) e, menos obviamente, do tema Rapaz Caleidoscópio, dos UHF (letra, António Manuel Ribeiro; música, Renato Gomes e António Manuel Ribeiro)

terça-feira, dezembro 04, 2007

Um Jardim na Planície (7)

Interroguei-me tantas vezes sobre se devia mudar, que me esqueci de mudar fosse o que fosse. Mudar de casa, mudar de comportamento, mudar de atitude, mudar de emprego, mudar de relação. Mudar de vida. Curioso como agora, depois de tudo, me interrogo ainda sobre se pode o nada mudar. Ou será o nada isso mesmo, a ausência de qualquer mudança? A imutabilidade. É desnecessária e inconsequente esta interrogação: vou ter todo o Universo para obter a resposta.
Arrefeceu bastante. Talvez por estar deitado há já algum tempo, tenho muito frio – não que isso me incomode, apenas me assusta. Acho que a temperatura começou a baixar logo a seguir à adolescência, por altura daquele fim-de-semana em que, por ter sido apanhado, sem carta de condução, ao volante de um carro que não era meu, passei a minha primeira noite na esquadra. A revisão destes últimos anos foi um gelo.
Dói-me imenso a nuca.

À medida que grandes nuvens translúcidas se foram instalando no céu amarelo, a luz foi perdendo intensidade e alguns detalhes começaram a notar-se, ainda que sem permitir certezas sobre o que via. As calças aparentavam estar bastante sujas. A camisa também. Seriam marcas de relva, ou talvez… sim, devia ser isso. Cómico e sempre surpreendente como a nossa mente funciona – a minha, pelo menos: perante algo tão definitivo como aquele corpo inerte, ocorreu-me que seria dificílimo tirar as nódoas; que era roupa cara e que eu pouco a tinha vestido; que seria um desperdício não se aproveitar.
Agachei-me e pousei a mão nas minhas costas. Foi quase uma carícia, algo como “foi bom enquanto durou, pá”, em linguagem gestual. Apesar de parcialmente tapado pelo braço, pude ver os contornos familiares do meu rosto. A expressão era a de quem percebeu tarde demais que tinha cometido um erro fatal. Ainda assim, estava eu sereno. Apresentável. Podia ser encontrado pela pessoa mais sensível, que não ia causar grande impressão. Morreste como viveste, está certo, não há muito do que queixar.
A cada minuto que passava a luz perdia força. Era já possível perceber com clareza que as manchas na roupa eram verdes, umas, e vermelhas, outras. As nuvens tinham escurecido e ganho volume, tapando quase totalmente a luz do sol que, até há bem pouco tempo, quase nada tinha deixado ver, de tão intensa.

Trovejou e uma gota vinda do céu estatelou-se na minha têmpora. O impacto foi tremendo e julguei que me esmagava o crânio. O pânico apoderou-se de mim. Quis levantar-me, mas não consegui. Tentei mexer o braço, mas não fui capaz. A perna. A cabeça. Nada funcionava.
Água a cair. Gota a gota. Pareceu-me música. Não muito longe, um automóvel começou a trabalhar e arrancou a alta velocidade, projectando gravilha, que ouvi cair pedra a pedra. O derradeiro vestígio de temperatura abandonou-me e a noite caiu sobre mim com inusitada rapidez. Ainda vi, à minha volta, as sebes a convergir sobre mim, encarcerando-me. A última imagem que guardei foi a do banco de pedra, à minha frente, e a de um rasto de sangue que vinha dele até mim.

Sigo ainda o fumo, que se escapou abundantemente da chaminé, em golfadas sem cor definida. A paisagem não se alterou: a mesma ausência, a mesma tristeza – ou talvez ela não seja assim, e tenham sido os meus olhos que se tornaram cinzentos e eu me tenha tornado vazio; prenuncio do futuro, que ainda não cheguei não sei onde.


FIM

segunda-feira, novembro 26, 2007

Um Jardim na Planície (6)

Braço erguido, punho cerrado, incredulidade que paralisa. Devo ter permanecido assim largo tempo, em torpor, como se a paisagem me estivesse a absorver aos poucos. Sentia-me cada vez mais parte dela.

O que significava realmente aquela frase? Devia interpretá-la literalmente ou havia algo mais, subentendido, escondido, como um enigma num romance de mistério? Agarrei-me à segunda hipótese por receio que fosse tão simples como estava escrito – e tudo o que isso significava.

Afastei-me dali. A terra tinha secado e parecia agora que não chovia há muito tempo, contrariando o que eu tinha visto ao ali chegar. A cada passo que dava, uma pequena nuvem de poeira erguia-se atrás de mim, caindo exactamente no mesmo lugar, cobrindo as minhas pegadas – anulando qualquer vestígio da minha presença. O calor era sufocante e à medida que caminhava parecia haver menos oxigénio disponível. Comecei a arfar e a ter dificuldade em avançar. Tinha também sono e a crescente sensação que algo me abandonava, lentamente. A angústia foi-se instalando à volta do coração, comprimindo-o, e alastrou-se rapidamente. Doía-me tudo quando, esgotado, me prostrei, de joelhos. A cabeça foi-me descaindo até ficar entre os braços, a tocar o asfalto – que já não era suave como uma pista de atletismo, mas rugoso e ressequido como tudo o resto.

Eu estava em pleno cruzamento, não longe da casa, e interrogava-me se valia ainda a pena o esforço de tomar uma outra direcção, procurar outro caminho, deixar a estrada, voltar para trás, avançar. Sair dali.

Uma lágrima surpreendeu-me. Apressei-me a limpá-la. Olhei em redor. Ninguém. Nada. Dei um murro no alcatrão. Ainda aquela maldita resta de esperança, quando era já evidente que ninguém ia aparecer. E era também evidente que, qualquer que fosse a direcção que eu tomasse, acabaria sempre ali, naquele cruzamento, naquela casa – que, percebia-o agora perfeitamente, para mim, não eram apenas o local de inicio de uma jornada, mas também o ponto de chegada.

No céu, o movimento perpétuo dos flocos de neve, mantinha-se. Seguiam em todas as direcções. Com várias formas. Talvez até a velocidades distintas – mas isso eu não conseguia perceber. Que ventos seriam aqueles, que permitiam tamanhas façanhas? Sorri o sorriso dos aliviados; de quem começa a perceber, quando um raio de sol rompeu a formação nebulosa e encheu a paisagem. O banco de pedra, o relvado, a sebe. Em todo o lado, havia agora uma quase total falta de cor. Tudo era em vários tons de branco.

Aguardei por algum movimento, mas nada aconteceu. Fui desnecessariamente cauteloso na aproximação à sebe, à minha frente. O corpo estava de bruços, o rosto quase totalmente tapado pelo braço direito. Era-me familiar. Junto à cabeça, percebiam-se os contornos de uma mancha, que se tinha espalhado, fazendo-a parecer desproporcionada. Um calafrio percorreu-me de alto abaixo, fazendo-me vacilar. Avancei sem o querer fazer: queria afastar-me daquele lugar, mas avançava.

Dirigi-me à lareira. Junto a ela estavam alguns troncos pequenos, cuidadosamente empilhados. Dei por mim a pensar que viriam de longe, que ali não se vislumbravam árvores. E depois ri.

Eram perfeitamente redondos e tinham sido cortados com um único e certeiro golpe, que não deixou qualquer marca nas extremidades, tão lisas estavam. A madeira era ainda verde, jovem. A casca de um tom mais escuro. Um único fósforo estava colocado na boca da lareira. Li novamente a inscrição: O Fumo Indicar-te-à o Caminho.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Um Jardim na Planície (5)

O sofá era um prolongamento da paisagem. Cansado, triste, desconfortável. Parecia aguardar por alguém que o levasse, terminada que tinha sido a sua missão. Ainda suportava o meu peso, mas já não permitia descanso e em nada aliviava o mal-estar que, cada vez mais, tomava conta de mim.

Apanhei o pano do chão e tentei perceber-lhe a textura. Seria do tamanho de um lençol e talvez fosse de algodão. Ou de linho. Passeio-o várias vezes entre os dedos e até pela cara e pelos lábios, como tantas vezes eu tinha visto a minha mãe fazer quando, no quintal das traseiras, queria avaliar se a roupa estendida já estava seca. Sem resultado. Eu estava a ficar sem sensibilidade: sentia o que tocava, mas apenas isso.

Mais calmo, mas com a cabeça ainda a doer-me imenso, levantei-me. Estava no centro do que parecia ser uma divisão única. Sozinho. O que eu tinha visto pela fechadura eram apenas enormes panos brancos, que tapavam alguns objectos de vários tamanhos e formas. Até onde conseguia ver – porque as extremidades da habitação estavam submersas por uma densa sombra –, as paredes, repletas dos grandes círculos castanhos da madeira, estavam despidas e não havia qualquer indício que a casa estivesse habitada. Apesar de, inexplicavelmente, não haver qualquer vestígio de pó.

Tacteei pela parede em busca da janela, à direita. Não demorei a sentir o ferro quente do ferrolho. Sem dificuldade, fi-lo subir e depois rodar. Estava bem oleado e não deixou escapar o mínimo ruído. Puxei ambas as portadas. Foi como abrir as comportas de uma barragem a transbordar de luz. Inesperadamente encadeado, ergui as mãos para proteger os olhos. Foi então que, por entre os dedos, vi um vulto a atravessar o relvado amarelo, mesmo à minha frente. Debrucei-me, mas quem quer que fosse já tinha desaparecido atrás de uma sebe. Gritei e, movimento contínuo, fiz por sair pela janela. Estava determinado a não deixar escapar aquela pessoa. Rapidamente, passei a perna esquerda pelo parapeito da janela e, ao passar a direita, o pé embateu numa das portadas e desequilibrei-me, ficando de gatas no alpendre. Quando me ergui não havia sebe, nem relvado, nem sol. Apenas o ofegante som da minha respiração, o meu desalento e o meu desespero, agora renovado e cada vez mais intenso.

Ao fundo, banhados pela ditatorial e fria luz sem vida, os cumes das montanhas circundantes, pareceram convergir em mim. Percebi que não havia saída, eles se assegurariam de não me deixar passar. Nesse momento a esperança cedeu e tudo se iluminou à minha volta. Uma rajada de vento passou a grande velocidade, como se fugisse de algo. O som de um trovão ecoou nas montanhas e o alpendre vibrou. Cerrei o punho direito, armei o braço e preparava-me para esmurrar a madeira junto da janela, quando, através dela, vi uma lareira. Por cima do umbral, uma inscrição numa placa de madeira, fixa na pedra da laje, deteve o meu movimento.


segunda-feira, novembro 12, 2007

Um Jardim na Planície (4)

Quando recuperei a consciência, depois de ter batido com a cabeça, mantive os olhos fechados e não me mexi. Não queria que quem quer que ali estivesse comigo percebesse que tinha voltado a mim. Durante alguns minutos, mantive-me atento ao mais pequeno som, à menor vibração do chão. Não escutei nem senti nada. Apenas uma crescente dificuldade em respirar e uma forte dor no alto da cabeça, que latejava. Contrastando com o exterior, ali o calor era intenso e eu tinha agora a boca muito seca. Os lábios tinham inchado e estavam gretados. A língua era um trapo velho, curtido pelo sol e enrolado na boca, sem qualquer préstimo. Fiz um esforço por me concentrar. Precisava raciocinar, mas o oxigénio parecia estar a desaparecer e o pânico a ocupar o seu lugar.
Com as pontas dos dedos da mão, avaliei a situação como pude: estava virado de barriga para cima; a cabeça inclinada para o meu lado direito; o silêncio era absoluto; o chão era duro e uniforme, talvez em madeira; o cheiro – muito ligeiro – era o mesmo que me tinha chegado pelo buraco da fechadura. Concluí o óbvio: estava dentro da famigerada casa. O mais lentamente que consegui, entreabri a pálpebra direita. A porta estava aberta, à minha frente. Movimentei o olho e algo branco, volumoso e sem forma conhecida, surgiu mesmo ao meu lado. Fechei o olho e esperei. Estaria alguém a vigiar-me? Aguardaria apenas por um movimento para cair sobre mim? O coração começou a bater-me descontroladamente e foi a custo que controlei o impulso de sair dali a correr. Procurei dominar a respiração e os pensamentos. Alguma ideia me havia de ocorrer, apenas necessitava aguentar mais um pouco. Até que senti várias gotas de suor a convergir na têmpora esquerda. Quem está inconsciente também transpira? A garganta contraiu-se e engoli em seco, o que me doeu bastante. Maior, a gota de suor começou a deslizar-me lentamente pela face. Senti que traçava o meu destino. Num movimento que não foi pensado, abri os olhos e levantei-me rapidamente, encarando a figura branca.

No céu, o grande círculo de luz continuava vagamente amarelo e baço. Era como se eu estivesse num lugar fixo no firmamento. Desprovido de movimento de rotação e translação. Por detrás dos farrapos de nuvens, o sol continuava no mesmo local. Imperturbável. Combalido e cada vez mais confuso, eu tinha vindo ao alpendre para tentar perceber quanto tempo tinha estado inconsciente. Não podia ter sido muito.
Tudo permanecia imutável. O horizonte diante de mim, era como que a projecção de um filme com as cores desbotadas e gastas, no ecrã de um cinema antigo, num sítio parado no tempo e no espaço, em que eu era o único espectador. Tudo continuava em suspenso, à espera, como se tudo naquela paisagem tivesse sustido a respiração durante o clímax de uma cena – veio-me à ideia que talvez fosse eu que fizesse parte do filme, e fosse a natureza, diante de mim, que aguardasse pela cena seguinte.
Voltei a entrar na casa, onde a escassa e fria mancha de luz que entrava pela porta, pouco penetrava a escuridão reinante. A meus pés, jazia umas das formas brancas.

terça-feira, novembro 06, 2007

Um Jardim na Planície (3)

A imagem da minha mãe, ainda nova, materializou-se no meu espírito. Tinha aquele ar habitual, em que não se percebia onde terminava a severidade e começava a reprovação. Inclinou um pouco a cabeça e franziu um nada a testa, num movimento que me enchia de terror, enquanto criança.

Depois de muito ter batido à porta e chamado por alguém, tinha-me lembrado de espreitar pelo buraco da fechadura, e foi quando olhei em redor, com receio de ser apanhado em tão flagrante acto de intromissão, que me lembrei da minha mãe.

Mas eu já não era criança e, naquele sítio, no meio do nada, onde nem um insecto se tinha ainda deixado ver; ali, onde só as nuvens pareciam ter vida – fosse aquela massa informe e indistinta, nuvens –, onde nem eu, realmente, sabia se estava, quem se poderia ofender?

Coloquei-me de cócoras. Lentamente, encostei o nariz à madeira, fechei o olho direito e levei o esquerdo à fechadura. Não vi nada. A escuridão era absoluta, mas uma ligeira fragrância parecia escapar-se de dentro da casa. Levei o nariz à estreita abertura da chave e inspirei profundamente. Sem dúvida que havia ali um aroma, mas não consegui identificar a quê. Lembrou-me o Outono e estrelas.

Era noite e estava deitado numa manta, sobre relva, ao ar livre. O céu estava carregado de pontos brancos tremeluzentes. Uma estrela cadente e depois outra. A luz inquieta de uma fogueira reflectia-se vagamente nas copas das árvores, perto de mim. O calor suave do lume chegava-me como se fosse uma carícia. Pensava em como fazer para que aquele momento nunca acabasse, quando uma mão pousou na minha face. O polegar veio ao encontro de uma lágrima que lá não estava e fez o seu percurso até à maçã do rosto. Virei-me para ver quem comigo partilhava aquele instante, mas uma pinha estalou na fogueira e faíscas voaram em todas as direcções. As copas das árvores incendiaram-se e, no céu, as estrelas fundiram-se num mar de luz sem cor que, de tão intensa, não permitia ver nada. O toque suave e cúmplice de há pouco, era agora húmido e viscoso. Quente. E abandonava-me, cara abaixo.

Consegui vislumbrar a relva branca e o banco de pedra. Junto a mim, alguém se afastava. E depois, traves de madeira. Um tecto.

Maldisse a paisagem seca e cansativa. Maldisse a minha sorte e ter nascido. Caído no alpendre, senti pela primeira vez as forças ceder. Merecia a pena levantar-me? Talvez se dormisse um pouco o sonho acabasse.

Fosse tudo um sonho. O desespero fez-me levantar de um pulo e gritei pelo buraco da fechadura. Nada. Voltei a espreitar e, desta vez, deixei que a vista se habituasse à escuridão. Não demorei a vislumbrar vultos brancos. Três, talvez quatro, era difícil perceber. Eram baixos e largos mas, aparentemente, todos diferentes uns dos outros. Apurei a vista e respirei fundo. Precisava perceber o que era aquilo que, recebendo alguma luz que entrava pela fresta da porta, contrastava com a escuridão. Gritei de novo. Estou a vê-los! Sem resposta. A minha imagem reflectida e distorcida pela superfície côncava e dourada do puxador, era a de um desconhecido, tão grande era o transtorno em que me encontrava. Num assomo de fúria, puxei pela maçaneta da porta com quanta força consegui reunir. Ao fazer o movimento contrário, a porta, que estava aberta, escancarou-se e eu caí desamparado, indo bater com a cabeça em algo.

segunda-feira, outubro 29, 2007

Um Jardim na Planície (2)

Joguei uma vez na vida. Teria uns 10 anos, se tanto. Recordo apenas fragmentos desse dia, mas foi algo que ficou comigo. Era verão; mais um dia de praia; os meus pais; a surpresa, antes do regresso a casa. Não parece fazer sentido, mas acho que foi num hotel – ou, mais provavelmente, perto de um. Lembro-me de ter achado divertido, aquela coisa de atirar uma bola contra figuras de madeira, que me lembravam pinguins. Não havia bolas para crianças e os meus dedos, pequenos demais, perdiam-se nos buracos, não me permitindo uma pega decente – o peso também não ajudava. Quase deixei cair uma em cima do pé, o que me valeu uma advertência do meu pai. Cuidado, que isso pode partir-te vários ossos. Não era esse, no entanto, o meu maior receio. Era mais o de ir atrás da bola, planando sobre a pista.

Não convencido daquilo que via, preferi contemplar o enorme calhau em que me tinha apoiado, a dar importância à existência da casa. Tinha a certeza que, quando voltasse a olhar, ela não estaria lá, qual jardim. Era algo que se percebia com alguma facilidade, bem vistas as coisas: estava numa planície quase deserta e as miragens são comuns em quem tem a infelicidade de se perder em tão inóspitos lugares. E como me tinha perdido eu ali? A resposta teimava em não surgir.

Estiquei o tronco um pouco para a esquerda e levantei os olhos lentamente, como se estivesse numa sala de cinema, a assistir a uma cena de suspense. A casa continuava lá. Pisquei, esfreguei a vista. Fechei os olhos e abri-os de novo. Ainda lá. E, percebia agora, havia algo mais. Um segundo risco negro atravessava a paisagem, no sentido este/oeste. O cruzamento dos dois caminhos fazia-se à frente da habitação.

Não estava muito longe e não havia o que perder. Ilusão ou realidade, em breve ficaria a saber.

À medida que me aproximei, pude perceber que era uma casa em madeira. Toda ela constituída por tábuas rectangulares e largas, de aspecto robusto, que pareciam coladas umas às outras, já que não eram visíveis quaisquer pregos. Aparentemente sem tratamento, a madeira tinha o tom da terra circundante e imensos nós, que eram grandes círculos perfeitos, de um castanho muito escuro, o que dava um ar pintalgado e desapropriadamente cómico ao imóvel. Curiosamente, o telhado era também em madeira, mas sem nós. Havia duas janelas – que estavam fechadas com portadas da mesma madeira – e uma chaminé. A porta – desproporcionadamente grande e de aspecto maciço e pesado – ficava para lá de um alpendre. Duas traves suportavam a extensão do telhado, proporcionando, pensei eu, uma sombra que seria, por certo, muito apreciada nos dias em que sol estivesse descoberto.

Parei a uns vinte metros. Parecia estar vazia. Diria mesmo, abandonada, apesar do bom estado de conservação. Hesitei quanto ao que fazer: bater à porta, contornar a casa, chamar por alguém, seguir o meu caminho – mas, para onde? O sol rasgou a neblina, mesmo à minha frente, cegando-me. Quando, finalmente, consegui ver, tinha o banco de pedra do jardim à minha frente. Uma gota de sangue escorreu para o relvado mas, com aquela luz tão dominante, não havia sequer contraste entre o vermelho e o verde, e ela perdeu-se num mar de quase brancura, a meus pés. Tive então a distinta sensação que atrás da sebe estava alguém. Aproximei-me, mas estava no alpendre, com a porta à minha frente.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Um Jardim na Planície (1)

Água a cair. É a primeira coisa que recordo. Gota a gota. A intervalos irregulares. À minha volta. Caindo em superfícies diferentes, uma sinfonia fluida e repetitiva.
Seria chuva ou alguém que regava? Veio-me à ideia, vagamente, a existência de um jardim, algures no meu passado. Uma imagem ténue de relva, flores, uma sebe e muito sol. E de um banco de jardim, em pedra. A resposta chegou célere, na forma de um arrepio que me trespassou; gelado e cortante. Era chuva: o frio que me percorreu anunciava que o verão já não era mais. O cinzento metálico do pouco que eu conseguia distinguir do sítio em que me encontrava, parecia confirmá-lo. Tudo o resto era o mais absoluto negrume.
O som do que me pareceu ser um camião a passar a alta velocidade, interrompeu a orquestra líquida e transportou-me para uma planície distante e estranhamente familiar. Ao longe, a toda a volta, altas montanhas cercavam a paisagem. Um risco escuro e sinuoso, feito de alcatrão, serpenteava pelo cenário, como que à procura de uma saída. Grandes conjuntos de pedras arredondadas, umas por cima das outras, estavam por todo o lado. Da vegetação – rasteira, enfezada e torcida, toda em vários tons de castanho – caiam as últimas gotas.
Tinha parado há pouco de chover – mesmo antes da minha chegada – e sentia-se ainda o cheiro a terra molhada. Pressentia-se a saída dos animais dos seus abrigos para uma inspecção ao território, agora húmido. Quem sabe se na esperança de encontrar uma refeição distraída, a contemplar tão inquietante lugar… que era o meu caso, ocorreu-me subitamente. A adrenalina disparou e com ela o ritmo cardíaco. Como se estivesse algo ou alguém atrás de mim. Instintivamente, olhei em redor. Nada nem ninguém. Apenas a tristeza daquela vasta paisagem, em que as cores pareciam ter sofrido um processo de arrefecimento. Tudo ali era frio. A existência parecia em suspenso.
Impelido, talvez, por um ancestral instinto de sobrevivência, fui abrigar-me junto a uma daquelas formações rochosas, composta pelo que pareciam ser gigantescas bolas de bowling deformadas, empilhadas umas nas outras, em periclitante equilíbrio. Não demorei a sentir-me desconfortável. Embora consciente da ínfima probabilidade das pedras desabarem sobre mim, achei por bem afastar-me. Mas o desconforto não passou: não eram as rochas, era todo aquele sítio.
O fio escuro do alcatrão desaparecia uns metros mais à frente, num declive, para reaparecer mais longe e perder-se na linha do horizonte. A norte, surgia de uma curva apertada, a meio da parede montanhosa descendo depois vertiginosamente, enquanto a sul era engolido por uma espécie de enormes rolos de neblina que, num tom entre o cinzento e o castanho, pareciam rebolar sobre si, num movimento perpétuo – lembraram-me flocos de algodão doce a formarem-se em redor da pega de madeira. Todo o céu estava coberto não por nuvens, mas por farrapos daquela estranha massa líquida vaporizada e muito difusa – seria fumo?
Onde eu me encontrava não havia vento, mas a maior altitude não era assim, já que os vários pedaços em que a neblina se divida seguiam em várias direcções, impelidos por um vento que não descia. Era grande o contraste entre a desanimadora imobilidade terrestre e a frenética agitação celeste. Vi então, outra vez, o jardim. A relva, o banco de pedra, muita luz, as cores esbatidas, a sebe… e a inquietante sensação que estava alguém atrás da sebe. Perto de mim, um relâmpago rasgou o céu, e a ténue memória do jardim. O trovão demorou a chegar, mas quando o fez foi com uma violência inusitada, algo que eu nunca tinha presenciado. Levei as mãos aos ouvidos e encolhi-me. A onda de choque apanhou-me pelas costas e fez-me dar um passo.
Abri os olhos devagar, talvez por receio de me ver num outro local. Sabia que tinha sido apenas um relâmpago, mas nada do que me estava a acontecer parecia normal. Encontrei a mesma planície deserta e silenciosa e o mesmo céu, caoticamente agitado. Tentei lembrar-me do jardim, afinal, estava lá mais alguém, mas não fui capaz, não me conseguia concentrar. E então, reparei que nem tudo estava absolutamente igual: eu estava agora em cima do alcatrão.

Distinguia-se um ponto fixo por entre o movimento apressado daquelas estranhas nuvens. Uma circunferência amarelada. Perfeita e grande. Pela altura do sol no firmamento, calculei que o dia estivesse a meio. Achei por bem caminhar na sua direcção.
Pouco depois da sexta centena de passos, o caminho de alcatrão começou a descer, em curvas abertas e suaves, por entre plantas carnudas e espinhosas, que me pareceram ser da família dos cactos. Caminhava-se com facilidade naquele piso. O betuminoso parecia ter sido amolecido pela recente chuva e era mais uma pista de tartã do que pista para veículos automóveis. Entretive-me na procura de um ser vivo animal, já que até então não tinha avistado nenhum. Olhava agora mais para baixo que para a frente e quase tropecei no banco de jardim que, inusitadamente, apareceu à minha frente. A luz do sol era ainda mais intensa, colorindo tudo de um amarelo que era quase branco: a relva, a sebe, a pedra de sentar, o sangue. Sangue? Seria sangue aquela mancha num dos vértices do assento? Senti-me oco, como se, num instante, tivesse abandonado o meu corpo. Procurei apoio na pedra para não cair desamparado.
Apesar do sol intenso – que deveria ser abrasador – a rocha estava fria e húmida. Tinha colocado a mão na mancha de sangue. Mas não. Não havia banco de pedra, nem sol. Eu não estava no jardim, antes, continuava naquela inexplicável e ininteligível planície. Estava apoiado numa das bolas de bowling e, para lá dela, avistava agora uma casa.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Há Magia no Chiado (4)

Foi vai já para duas mãos cheias de anos, mas lembro-me bem. Dizia assim: Você Numa Palavra. Não que ligue a esse tipo de análise instantânea como as mousses, mas a curiosidade apanhou-me distraído e acabei por gastar quinze minutos da minha existência a preencher o questionário da revista – o de sempre: uma situação é colocada ao leitor, que depois deverá seleccionar a opção de resposta que mais tenha a ver consigo; somam-se os pontos e consulta-se a tabela junta. A originalidade deste passatempo (que outra coisa não podia deixar de ser) era o resultado ser apenas apresentado numa palavra, mais exactamente, um adjectivo.

Não lhe dando importância, a verdade é que nunca mais esqueci o resultado, embora seja coisa em que faço por não pensar, talvez por receio de concluir que é verdade: resignado. Segundo a tabela, era isso que eu era.

Tudo isto me veio à ideia quando me vi assim reflectido, naquele mágico fim de tarde no Chiado. O toque nas costas – mais um empurrão que outra coisa – foi tudo menos amigável e deu o tom ao dialogo que se seguiu. Vá, vamos lá a mexer, foi a primeira coisa que me disse. Voltei-me e, para meu espanto, tinha perante mim mais uma figura da nossa praça. Vá lá, para casa que o jantar já deve estar na mesa, insistiu. Demorei algum tempo a perceber o que tudo aquilo significava: primeiro, porque não o reconheci imediatamente, depois a surpresa de ter o Luis de Matos a dirigir-me a palavra com maus modos, e por fim, ver o meu reflexo nos seus óculos espelhados.

Bem mais alto do que eu, mirava-me como o Golias deve ter mirado o David. Atrapalhado com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo, só me via a mim, minúsculo nas lentes dele. Nada de importunar o artista, siga mas é o seu caminho. Eu, que nunca antes tinha sequer estado perto de gente conhecida, naquela tarde, em poucos minutos, era já a segunda vez que me cruzava com alguém conhecido da televisão e das revistas – e ambos pareciam decididos a implicar comigo, que me sentia cansado e só queria chegar a casa.

Luis de Matos, nem mais. O nosso Siegfried. O nosso Roy. O Copperfield lusitano. O homem que atravessa paredes de canecas, faz desaparecer elefantes e adivinha o Totoloto, estava a empurrar-me. Sendo grande mágico, é também a medida da nossa pequenez enquanto país: em 1995 acertou na chave do Totoloto com uma semana de antecedência, mas vejam lá se ele acerta na do Euromilhões. Uns poucos milhares de Escudos? Não custa nada. Uns milhões de Euros? ‘Tá quieto. É a cruz que teimamos em carregar: pobrezinhos, mas honrados. Parece-me mal e tenho para mim que ele devia tentar, quanto mais não fosse, para mostrar mais uma vez a essa Europa aquilo de que o tuga é feito – nem que fosse numa semana em que não houvesse jackpot, para ser mais fácil, que ninguém lhe levava a mal por isso.

Oh amigo, siga o seu caminho, e mais um empurrão. Vejo-me diminuído no reflexo, mas reparo que estão lá dois de mim. Foi o suficiente para sair do estado de torpor em que me encontrava. Resignado, eu? O sangue ferve-me num repente e já o estou a empurrar também. Que é, pá, há azar? Aos impropérios e interjeições que se seguíram, vou poupá-los, mas ainda vos digo que ele depressa percebeu que tinha mais a perder do que a ganhar em continuar a troca de insultos com um zé-ninguém em plena via pública, e acabou por se acalmar. A intervenção de Larry Porter também ajudou, ao se meter entre nós e ao dizer ao amigo mágico que eu não o estava a importunar. Eu só quero ir para casa, pá; se falei aqui com o seu amigo é porque me pareceu conhecê-lo – e estava agora ainda mais convencido disso, que na troca de encontrões, acabei por ver que ele tinha uma cicatriz na testa, tal como eu suspeitara.

Luís de Matos fez-me ver que, nunca tendo eu saído do país – com a honrosa excepção de ter ido uma vez a Ayamonte, não havia ainda ponte no Guadiana – pura e simplesmente não podia conhecer o Larry, que nunca antes estivera em Portugal. Pela televisão, contrapus. Impossível, rebateu o mágico, ele nunca apareceu na nossa televisão. Eu calei-me que, por não os ter, não me lembrei do cabo nem da parabólica. A tudo isto o visado respondia com o sorriso amarelo de quem está numa situação desconfortável. Com a mochila onde tinha guardado os artefactos da profissão, às costas, parecia um miúdo no primeiro dia de aulas, numa turma em que todos os colegas se conheciam. Ia fazendo festas à coruja que, de olhos fechados parecia dormitar no seu braço, e dizia: no problem, lads, that’s quite alright, e virando-se para mim, acrecentou: really, i never been here before. Estive quase para lhe dizer quem eu achava que ele era, mas o medo do ridículo não me deixou falar e acabámos por ficar uns minutos na conversa.

Já a sorrir, o Luís explicou-me o que era o festival Lisboa Mágica e os seus planos para o futuro. Larry, por sua vez, contou como não tinha ainda tido tempo de visitar a cidade, como estava a achar as pessoas muito simpáticas e que ia aproveitar para ficar uns dias por cá, para jogar golfe, a sua nova paixão, depois de ter deixado de praticar o seu desporto favorito. Football, disse eu. Oh no, Quid… Nesse momento, a coruja abriu os olhos e bateu as asas, soltando um grito que fez parar o Chiado. Curling, acabou Larry por dizer, i just love to sweep the floor, e estampou um sorriso ainda mais amarelo que o anterior. Eu ia falar de vassouras, mas ele levantou-se rapidamente e disse que tinha de ir, que a mulher e os dois filhos estavam para chegar à estação de comboio. Estendeu a mão e eu agarrei-a, sacudi-a, e não a larguei. Disse-lhe que teria todo o gosto em o acompanhar a Santa Apolónia e, de caminho, parávamos para comer qualquer coisa na “Taberna do Menino Jesus”. Pork sanduíche, very nice!, e pisquei-lhe o olho. Larry não conseguiu evitar um esgar e, educadamente, rejeitou a oferta da sandes e da boleia, até porque, disse ele, a estação era já ali perto, no Rossio. Impossível, expliquei eu, que essa estação estava fechada há muitos anos para obras. No trains. Ele soltou a gargalhada mais bem disposta que ouvi nos últimos anos. Don’t worry, it’s a special train.

* * *

Ao passar pelo Luís de bronze, encolhi os ombros na sua direcção: ou estavam todos doidos ou estava eu. Ele manteve-se impávido, sereno e cagado de pombo.

Demorei-me uns segundos a ver as cabines do elevador da Bica, já meio encobertas pela escuridão, cruzarem-se a meio da calçada, e comprei um pacote de manteiga no supermercado vizinho. Encontrei lá a Dona Alzira, a minha vizinha de baixo, e ajudei-a a trazer o saco das compras. Falámos da carestia de vida, de como os políticos são uns bananas, que só querem dar cabo da vida das pessoas e de como as paredes da nossa rua estão todas conspurcadas com desenhos estúpidos, feitos por gente estúpida. Depois mudei de roupa, fiz um chá de camomila e uma torrada, que comi devagar, à janela das minhas águas-furtadas, a ver as luzes acenderem-se pouco a pouco, do outro lado do rio. Ao colo, o livro de aventuras que estava a ler e que olhei com desconfiança, não fossem essas mesmas aventuras estarem a dar-me a volta ao miolo. Ia pegar nele quando, pelo canto do olho, me pareceu ver a silhueta de uma coruja a fazer um voo rasante aos telhados que cobrem a encosta até, à frente da minha janela. Estiquei o pescoço para fora, mas já só ouvi um piar a desvanecer-se ao longe.

Ao apanhar o livro do chão, reparei que no lugar do bilhete de cinema que servia de marcador, estava um envelope lacrado. Na frente, em letras grandes e estilizadas – com aspecto antigo e distinto – uma frase: Always Believe.

(fim)

segunda-feira, setembro 24, 2007

Há Magia no Chiado (3)

Sempre invejei a sabedoria de quem, com economia de palavras, consegue transmitir os maiores sentimentos. Invejo os alquimistas das letras, os poetas. Era nos três que habitam o Chiado que eu pensava, enquanto subia uma Rua Garret que, estranhamente, ninguém descia.

Com uma discreta flexão do pescoço, tenho por hábito cumprimentá-los: o que deu nome ao sítio – que a história de Chiado ter a ver com o chiar das rodas das carroças, não me convence (e que parece dizer para o vizinho do lado, olha para mim, aqui em cima, repara na quantidade de pessoas que tenho a meus pés, enquanto tu, aí sentado, és apenas mais um à espera de ser atendido); o poeta da pala (que, ouvindo o outro, não deixaria por certo de retorquir, rindo, o que és tu senão um poeta jocoso e de má língua, que não soubeste sequer ser dos de São Francisco, mas que nunca despiste as vestes); e Pessoa, tão atarefado em ficar bem nas fotografias dos turistas, que pura e simplesmente ignora as disputas verbais dos bronzeados companheiros.

Desta vez, porém, foi diferente. Não houve cumprimentos, António Ribeiro não provocava Fernando e Luís não sentia necessidade de intervir. Todos – eles e quem passava – tinham a atenção presa a algo que eu não conseguia descortinar, já que um muro desigual em altura, feitio e cor, feito de costas e cabelos, me não permitia ver nada. Em pleno Largo, com inusitada reverência e atenção, eram muitas as pessoas que formavam um círculo perfeito em torno de algo que pareciam venerar.

O poeta Chiado tinha gente agarrada ao pescoço, em todas as casas habitadas havia alguém à janela ou à varanda e na montra do primeiro andar da Benetton não se viam os habituais bonecos-expositores, antes, as empregadas e clientes, narizes colados ao vidro, bocas abertas de espanto – bem vistas as coisas, as diferenças não eram muitas, já que de tão imóveis, mais pareciam os tais bonecos, sendo a diferença o facto de serem mais e ninguém usar roupas da marca. Desequilibrado por ter todos os passageiros do mesmo lado, à janela, até o 28, que tinha parado no semáforo, ignorava os sucessivos verdes e não iniciava marcha. Consequentemente, a fila automóvel, imobilizada atrás do eléctrico, estendia-se já muito para além do Teatro São Carlos, mas não havia uma buzina que se fizesse ouvir: tinham todos abandonado os respectivos veículos para perceberem o que se passava e faziam agora parte daquele círculo de comunhão. Assim era o Chiado naquele fim de tarde: um eléctrico tombado a estibordo, uma fila de carros abandonados – alguns, de portas abertas –, um mundo de gente deslumbrada que amiúde soltava prolongadas expressões de espanto.

Reparava no pormenor de não se verem pombos em lado nenhum, quando um silvo agudo rasgou o ar e do centro da multidão se elevou um arco-íris, prontamente rodeado de estrelas que explodiam num som crocante, quase musical. Ooooohhh!!, exclamou a assistência em coro. Aproveitei que um camone se desequilibrou do Pessoa e saltei-lhe eu para o colo. Who goes to the air, loses his place, atirei eu, divertido, ao incrédulo visitante. Dali, pude perceber que um chapéu negro e pontiagudo, muito alto, se movimentava de um lado para o outro; era alguém – uma pessoa só – que, com gestos rápidos e, ao mesmo tempo, graciosos, prendia a atenção de todos.

Artistas de rua, sempre os houve na Baixa, mas todos sempre vi serem tratados com indiferença, daí toda aquela situação me estar a fazer uma enorme confusão quando, subitamente, outro silvo acompanhado de uma espécie de fogo de artifício se elevou no Chiado, seguido de mais estrelas crocantes que, desta vez, se prenderam nos cabos onde o eléctrico vai buscar força e ali ficaram, a tremeluzir e a projectar faíscas às cores. Ooooohhh!! Uma salva de palmas ia tomar forma, mas o chapéu pontiagudo parou subitamente e uma varinha mágica ergueu-se no ar. Todos ficaram suspensos daquele gesto e foi audível os peitos a encherem-se de ar, tal era a expectativa do que viria a seguir. A varinha mágica rodopiou, desenhando três círculos e desapareceu. Ooooohhh!! E as palmas, por fim, fizeram-se ouvir. O que aconteceu, você viu o que se passou?, perguntou-me um indigente, com bafo a carrascão, pouco seguro em cima de uma das cadeiras da esplanada da Brasileira. Eu não tinha visto e, agora que o espectáculo tinha terminado e as pessoas começavam a debandar, reparava que, em cima da cabeça do Camões, estava a coruja. Mas ela não tinha estado a ver a actuação, tinha estado a olhar para mim.

Uma buzinadela prolongada anunciou o regresso à normalidade. Anda lá com essa merda, pá. O eléctrico guinchou nos carris e avançou pachorrentamente. Segui-o a caravana automóvel, impaciente. Janelas e varandas voltaram a desertificação habitual e a montra foi devolvida aos bonecos da Benetton. Uma rapariga queixou-se à amiga que os croissants da Benard já não eram o que tinham sido e um invisual tossiu, em preludio à venda do Borda d’Água, edição 2008, já disponível nas entradas do Metro e semáforos perto do seu automóvel.

Um idoso tocou-me na perna e disse que era de mau tom eu estar em cima do Pessoa, que o poeta merecia respeito. Eu, que observara aquela cena surreal sem perceber o que se passava, estava agora incrédulo, quase incapaz de me mexer. Encostado à base da estátua do Chiado, o homem que até há pouco mais de um minuto ali tinha sido venerado, arrumava os objectos do seu mister, perante a indiferença geral. E no entanto, eu achei que o conhecia. Muito bem, até. Eu conheço-o… ele sorriu e abanou a cabeça. Sorry, i don’t speak portuguese, e continuou a arrumar coisas. I know you. Sorry, i don’t think so. Mas eu estava certo, só podia. Tudo bem que estava mais velho, mas a expressão – de duvida e receio, típica dos eternos jovens –, o sorriso tímido mas que não lhe abandonava os lábios, aqueles óculos redondos; se ao menos a franja me deixasse ver… Belive me, we never met. Of course we never met, but… what’s your name?, atirei eu, em jeito de desafio. A coruja fez um voo rasante à estátua e veio pousar no braço do mágico. Porter, Larry Porter. Nice to meet you.

(continua)


segunda-feira, setembro 17, 2007

Há Magia no Chiado (2)

Não foi há muito mais de duas semanas que, por manifesta estafa e contra o mais elementar bom senso, me sentei numa das cadeiras da “Taberna do Menino Jesus” – coisa que só inconscientes e alheados da vida fazem de bom grado. O Metro tinha avariado, os autocarros da Carris atulhado e eu, como não ganho para táxis, inconformado tive de palmilhar a calçada desde o Saldanha até à Baixa. E cansado, sentei-me…


Já a caminho de casa, uma inusitada sensação de corrente de ar nas costas teimava em me acompanhar. Entrei na Rua do Carmo com a desconfiança que um pedaço de camisa tinha ficado para trás, agarrado ao sebo das costas da cadeira.
O rosto sumido e desfocado da Ana Salazar surgiu entre dois manequins femininos que, desprovidos de braços e pernas, mas elegantemente vestidos em vários tons cinza, se suspendiam do tecto, presos pela cabeça. Eu, espantado, encostei o nariz à montra para a ver melhor. Ela, assustada, deu um passo atrás e começou a manear a cabeça para cima e para baixo, como que me perguntando que diabo estava eu a fazer.


Tentar explicar à Ana Salazar que estava a usar a montra da loja dela para ver, pelo reflexo, se tinha um buraco nas costas da camisa, feito numa taberna, enquanto comia uma bifana e bebia uma mini, foi impossível. Ingénuo, eu até estava cheio de boa vontade: virava-me de costas e apontava para trás, quase encostado ao vidro. Afinal, nunca antes tinha gesticulado com uma figura pública. Mas ela não estava pelos ajustes e fez sinal que ia discar um número de telefone – são já alguns os anos em que andamos a pressionar teclas para telefonar mas, pelo menos para quem anda nisto de estar vivo há já uns tempos, há gestos que ficam para sempre. Por entre a mímica, percebi-lhe no desenho dos lábios uma palavra: policia.


Enchi-me de ganas e retorqui-lhe logo ali, no meio da rua, bem alto e com gestos dramáticos. Qué que foi, pá? Só por seres quem és, pensas que mandas nisto? Abaixo o 24 de Abril! Ficas a saber que tive um bisavô que lutou contra os alemães e foi preso pela PIDE. A mim, também ninguém me cala. E, num rasgo de duvidosa inspiração, acrescentei: e ficas a saber que nunca mais te compro nada!


Na montra, já não estava a Ana Salazar, apenas o seu dedo médio da mão direita tinha ficado breves segundos para trás, esticado na minha direcção. Depois, ficou o meu reflexo, as duas bonecas desmembradas mas elegantes, cinco feios sapatos desemparelhados e o reflexo de uma coruja branca. Quando me virei, algumas pessoas olhavam para mim e eu vi-lhes pena no olhar. Retomei a ascensão da Rua do Carmo com passos pesados. Demorava-me o cansaço e agora também, o desalento. Aquele desentendimento com uma figura do jet-set tinha-me enchido de um inesperado e estranho desalento. Triste fado o meu.


Uma coruja branca, eu não tinha visto uma coruja toda branca? Que raio, teria sonhado? Só podia, que outra explicação para tão estranha presença na Baixa, não encontrava. E foi então que senti de novo o arrepio nas costas. A camisa não estava rota, e no entanto… Um piar estridente sobrepôs-se à cantiga que enchia a rua, fazendo-me voltar a cabeça. Em cima do carro antigo, que faz a vez de loja de discos, dois grandes olhos de coruja, fitavam-me. Um papel colorido soltou-se das suas garras e veio ter comigo. O título anunciava: Lisboa Mágica — Street Magic World Festival.

(continua)



terça-feira, setembro 11, 2007

Há Magia no Chiado (1)

A decisão de se cozinhar à vista dos clientes comporta sempre uma elevada dose de risco. Não ter cuidados mínimos de higiene, parece ser certidão de óbito inevitável para o negócio. Ou talvez não, se o universo em que nos movemos é o das tascas lisboetas. Na “Taberna do Menino Jesus”, na Rua do Jardim do Regedor, o chão nunca está limpo, nem as paredes, mesas e cadeiras. Tenho para mim, que Juvenal Costa – proprietário e único empregado do estabelecimento – faz disso questão. Você tem cá um descaramento. Onde é que já se viu uma taberna limpa. Eu já tinha visto, mas limitei-me a encolher os ombros. Nem a comida lhe havia de saber bem, digo-lhe eu que ando nisto há muitos anos. Eu tive de concordar. Afinal, só ali a bifana me sabia bem e rapidamente afastava de mim as dúvidas sobre se a origem de tão apurado gosto viria da frigideira a transbordar de banha castanho-queimado.

Juvenal também não era um primor de asseio. Criado numa aldeia da freguesia de Ínguias (não tem nada a ver com o bicho, fazia sempre questão de esclarecer), concelho de Belmonte, passou os primeiros anos de vida entre o trabalho do campo e o trato dos animais. Veio novo para Lisboa, de olhos fechados, apenas com a roupa do corpo e uma côdea seca de pão no bolso das calças. Tudo o que sabe aprendeu à sua custa. Higiene acabou por nunca ser o seu forte, mas isso nunca foi para mim razão suficiente para não ter admiração por alguém. E eu admiro Juvenal Costa.

Talvez seja a maneira simples como vê as coisas e toma decisões. Quando era cachopo, andavam lá pelas aldeias uns homens diferentes, que falavam diferente e se vestiam diferente. Chamavam-lhes Judeus. Eles contavam histórias antigas à canalha e a gente ficava de boca aberta. Aquilo é que eram aventuras! Havia reis e guerras e eles sofriam muito e fugiam para o deserto e viviam numa cidade onde havia um castelo muito grande, ou era uma igreja? Bom, toda a gente queria ir para lá e andavam sempre à bulha... era assim uma coisa importante, ‘tás a ver?! Havia um deles que até andava por cima da água do mar, vê lá. Eu sei que aquilo eram histórias, não penses que não sei. Naqueles breves minutos, Juvenal regressava à sua aldeia, coisa que nunca tinha, de facto, feito. Hoje, já não me lembra de nenhuma inteira, só bocados, mas quando para cá vim, sabia-as todas. Fazia cara séria para que a audiência não duvidasse, sem querer saber de ninguém estar a prestar-lhe realmente atenção. Os velhos apenas acenavam vagamente a cabeça enquanto, curvados sobre eles, sorviam os copos de três, segurando-os com ambas as mãos, não fossem eles fugirem-lhes – a freguesia da “Taberna do Menino Jesus” era composta exclusivamente por velhos e por mim: é que mesmo os de menos idade que lá iam, eram já velhos de espírito e corpo.

E de onde vem o nome da taberna, Juvenal? Essa despacha-se num instantinho. Contou uma vez um desses homens, um que tinha uns caracóis de cabelo de cada lado da cara, que o Menino Jesus, quando era novo, foi com as pessoas da aldeia dele numa grande viagem e entrou num tabernáculo, que era como se chamavam as tabernas naquela altura, e vai daí eu pensei: se o Menino Jesus ia a tabernas, a minha só pode ser a dele, não sei se me estás a perceber?! Eu mais ou menos estava, mas antes de lho poder dizer tive de levar umas palmadas nas costas, que a vontade de rir se misturou com o vinho verde à pressão e o engasgo foi sério.

(continua)

terça-feira, setembro 04, 2007

Agosto É Um Mês Pequenino

O repórter da TSF estava dentro da sua cabeça. E depois alguém que falava castelhano, entremeado com palavras em português e depois alguém que falava português com sotaque do leste da Europa. Falavam de justiça no resultado, da necessidade de fazer mais e melhor. Assim tinha sido parte da jornada futebolística da véspera. A cabeça latejou-lhe. Quando estivesse realmente acordado, iria mudar o despertador de estação de rádio que, assim, era por demais violento passar dos sonhos para a realidade do país e do mundo.
O banho pouco o ajudou. À janela, sentia que se confundia com a manhã embaciada e cinzenta. Estava acordado, mas não desperto. Até ter pegado nas calças. Por duas razões, doeu-lhe ao vesti-las: não conseguiu evitar que roçassem onde as melgas lhe haviam impiedosa e abundantemente picado e porque aquele gesto representou o regresso à inevitável rotina de quem tem de trabalhar. O fim da rotina das férias.

Na secretária de sempre, cercado pelas paredes de sempre – também elas embaciadas e cinzentas –, tentava descolar o olhar do cursor que piscava na página em branco do processador de texto. (Sentia que o negro traço no monitor, lhe marcava o ritmo cardíaco; ainda assim, oprimido pelo regresso à sua vida).
Tinha levado para férias dois sacos com papéis e planos para eles. Pouco convictos, no entanto. E agora pensava nisso, que se partirmos para as coisas com pouca convicção, não se pode esperar outro desfecho que não seja regressarmos com os mesmos papéis dentro dos mesmos sacos. Intocados.
Lembrou-se de ter querido muito colocar os seus planos em acção, de ter mesmo chegado a fechar os olhos com força, numa tentativa infantil de que uma força exterior fizesse as coisas acontecerem. Em vão, claro, que não é uma questão de quantidade mas, antes, de qualidade.

O telefone tocou. O olhar descolou-se do cursor e o ritmo cardíaco foi esquecido. Voltou ao trabalho. Com a convicção possível.

Os papéis, esses, teriam de aguardar.


terça-feira, julho 31, 2007

Saudades De Um Exorcismo Que Nunca Aconteceu

– Pode alguém ser duas realidades diferentes?
– Claro que não!
– A resposta é óbvia, eu próprio responderia igual, mas não sei, a verdade é que acho que sim, que é possível ser-se duas coisas diversas.
– Explica melhor.
– Se eu te perguntasse que opinião tens de mim, ela iria coincidir com a da totalidade das pessoas que me conhecem. Ou seja, toda a minha vida fui de determinada maneira, sempre se soube o que esperar de mim porque eu era aquilo.
– Sim, e…
– E, no entanto, eu sinto que… eu sei que sou mais do que isso. Muito mais, aliás. Sem querer exagerar, digo-te que essa outra parte de mim tem mais a ver com quem sou do aquilo que mostro. (Pausa) A ideia de que isto possa ser verdade, provoca-me um aperto terrível cá dentro.
– Uma vida não vivida.
– Pergunto-me se ando há tantos anos a enganar-me.
– Não acho.
– Porquê?
– Porque és tu próprio que está a levantar a questão. Quando muito, podes andar a representar, mas a enganar-te, não.
– Talvez, mas não passa de uma questão de semântica, que o efeito é o mesmo: uma vida… incompleta?!
– Não percebi se era uma pergunta ou uma afirmação.
– Eu também não… talvez tenha medo da resposta.

– Faltou o quê?
– Faltou sinceridade comigo próprio. Faltou coragem de ser o que sentia, de estender a mão e mostrar-me do avesso.
– Faltou perceberes isso, que eras o avesso.
– Sim, terá sido também isso. Sabes, pergunto-me muitas vezes como é que alguém que pensa tanto, nunca percebeu quem realmente era.
– Quando somos novos há muita coisa que não percebemos.
– E eu que julgava saber tanta coisa…

– Porquê isto agora?
– Porque não agora?
– Sim, se vives uma vida em que sentes que não és verdadeiro contigo próprio, ainda há tempo para mudar.
– Não seria capaz.
– Como assim?
– Quando se representa há tanto tempo como eu – e bem, pelos vistos –, já não se consegue deixar a personagem para trás.
– Parece-me que já tens a resposta que procuravas.
– Não tenho, estou apenas a partir do princípio que sim.
– Se tu o dizes…
– Tu, que me conheces bem, não achas que sempre tive uma vida simples demais?
– Ninguém tem vidas simples. Todos temos demónios para enfrentar.
– Eu sei, mas no geral, pensa nisso. Acho que é difícil encontrar uma vida mais certinha, mais isenta de altos e baixos, de confusões e, no entanto…
– Tudo aí dentro é um turbilhão.
– Tudo é dúvida, tudo é incerteza, tudo é desejo de voltar atrás.
– Mudavas muita coisa?
– Não é uma questão de quantidade, mas sim de qualidade. Vivia mais.
– Viver mais é ter mais dificuldades para enfrentar.
– Precisamente! Mas seria como transpirar: uma forma de libertar toxinas.
– Exorcizavas as incertezas.
– Hoje, saberia quem sou.

– És complicado.
– Isso sempre soube.


(durante as próximas semanas, este blogue vai à procura de histórias noutras paisagens; não sem deixar um abraço a quem aqui passa)

quarta-feira, julho 18, 2007

O Trono

Impedidas pelo rubro circulo controlador, filas de cansaço aguardam a vez de se mover. O sol chega de lado e aleija. Quem pode, cerca-se de ar arrefecido, os outros, resignam-se a baixar janelas, convidando a escassa brisa a aliviar-lhes a dor.
A buzina, estridente e demorada, dá sinal da impaciência reinante: à flor da pele, suor e nervos dançam, num enlevo que ameaça tornar-se explosivo a todo o momento.
No invólucro ardente que nos devolve a casa – à ilusória esperança do descanso –, os vidros sujos são o nosso filtro da realidade, com os quais nos precavemos da essência das coisas. Os significados ficam de fora, ninguém quer saber! Não aquela hora, não naquele lugar.
A não ser quando nos interpela directamente, à janela.

*

Só a um coração violento lembraria tal coisa. Por não possuir nada, quis ter um trono.
Espanto-me. Um trono é o princípio do fim: ponto mais alto, já só se pode descer… quando não cair. Quem é a pessoa que não percebe isso? – não consigo evitar, é assim que raciocinam os medíocres. Mas ele não é isso, apesar de tudo, porque não tendo nada, sonha
em grande. Foi assim que o conseguiu: apesar dos sonhos terem alcance limitado, se atreveu a querer.

*

Depois de um dia a enfrentar realidades indesejadas, e quando pensamos já estar a salvo, nada nos prepara para sermos confrontados novamente com ela, inesperadamente.
Vem embrulhada em vestes pouco dignas, se isso se pode afirmar das únicas vestes que alguém possui. Aproxima-se de nós e curva-se ligeiramente. Por vezes – nos dias em que o sol massacra mais –, com um gesto que já foi elegante e refinado, retira um boné da cabeça e murmura algo, poupando nas palavras e no volume. Não admira: está-lhe vincado no rosto que poupa na vida há demasiado tempo e todos sabem ao que vem. Quer algo. Qualquer coisa. Pode mesmo ser “qualquer coisinha”, adivinho-lhe nos lábios, que ele não o chega nunca a dizer.
E agradece sempre, mesmo que não obtenha nada – o que sucede a maior parte das vezes. Curva-se de novo e, com gesto simétrico e inverso, cobre novamente a cabeça calva. Frequentemente, acena a quem já lá vai, na pressa de deixar a realidade para trás, à beira da estrada.

*

Pode algo ir surgindo do nada? Não digo aparecer do nada, assim, de repente, de um dia para o outro. Antes, ir surgindo, aos poucos, sem se fazer notar.
Todos sabemos que o trono não foi lá colocado, que foi erguido ao longo do tempo – de muito tempo –, um pouco de cada vez, na nossa desinteressada presença e, no entanto, ninguém se recorda de tais trabalhos.
Se dissesse que eu próprio não os vi, estaria a mentir: preferi antes não me lembrar deles, filtrados que me chegaram pela poeira acumulada nos vidros do meu invólucro. Agora que reparo nele, interrogo-me se serei o único.

*

Na espera obediente e bem comportada em frente ao rubro circulo, dou por mim a invejar-lhe o engenho e a arte mas, acima de tudo, a ter podido escolher a sombra em que se protege.
Olho em redor, para os outros que, como eu, ali perdem bocados da vida, à espera de passagem. Em que pensam? Todos me parecem ter ar de manterem a primeira engatada, tal a pressa de sair dali. Uma buzina atrás de mim, protesta contra a minha imbecil inércia. Já o da frente avançou cinco metros e eu ainda não me mexi.

*

Este trono serve só para sentar. É, afinal, um pedestal. Mas não celebra nada, apenas mostra que se existe.

*

Hoje, o trono está vazio.


O trono existe e quem o construiu também - o resto, não. Está na saída do Eixo Norte-Sul para Telheiras (sentido S/N). Encontram aqui algumas fotos dele. E aqui gaivotas.

sexta-feira, junho 22, 2007

Sophia à beira do mar.

A manhã apresentou-se cinzenta e fresca, apesar de se estar a poucos dias do verão. Ideal para a minha caminhada pela praia.
Poucas pessoas à beira mar. A agitação furiosa das bandeiras hasteadas nos apoios de praia, parecia avisar os banhistas para se manterem afastados.
Sentia-me preguiçoso. Enchi os pulmões daquele ar que ameaçava tempestade e limitei-me a fazer alguns exercícios físicos apenas em pensamento, de olhos fechados. Espreguicei-me indecorosamente e dei ordem de marcha à perna direita, que lá obedeceu a custo. Era capaz de jurar que ouvi ranger.

Para nascente, o areal termina abruptamente, dando lugar a uma sucessão caótica de rochas que deslizaram ao longo dos tempos da encosta circundante e que dali se eleva, prolongando-se por vários quilómetros. À medida que me aproximava das rochas – superá-las e chegar a um minúsculo areal a partir do qual era impossível passar, era, no fundo, a razão que sempre me levava a fazer aquele percurso –, reparei que, apesar de as haver de várias cores – cinzentas, azuladas, vermelhas, negras e castanhas –, iluminadas por aquela luz difusa, todas pareciam convergir para um tom indefinível.
Alguns blocos de granito, próximos da rebentação e em cima dos últimos grãos de areia – quais guardiões do território das pedras –, parecem ter sido cortados numa máquina e para ali atirados, tal a perfeição das faces.
Já imaginava os cataclismos que as teriam feito precipitar sobre o mar e Deuses atarefados em pedreiras celestes, quando a vi. Estava sentada na fronteira da rocha inteira com a rocha granulada. Escondida, pareceu-me.
Atraiçoou-a um pequeno saco verde alface que tinha a seu lado, já que o negrume do cabelo, o azul claro das calças, o castanho claro da blusa de linho e o tom de pele dos pés descalços, se confundiam com o cenário.
Uma súbita atracção por aquela mulher, ali, assim, fez-me abrandar o passo. Mesmo à distância, percebi-lhe uma expressão enigmática. O que faria ali, em que pensaria? O olhar, escondido por óculos escuros, parecia amarrado à linha do horizonte. Instintivamente, olhei também para o mar, como se estivesse a acontecer algo fundamental e necessário. Nada. Apenas mar a perder de vista.
Não. Afinal, lá longe – muito longe – conseguia-se vislumbrar um minúsculo triângulo. Uma vela que seguia para ocidente. E então, percebi: na impossibilidade de partir, de facto, ela estava ali para imaginar viagens, partidas de uma vida indesejada. Julguei perceber a vida daquela mulher em apenas um momento. Era infeliz.

À medida que me aproximava dela, fui tomado por uma inesperada excitação com as respostas a que cheguei para algumas questões que logo me intrigaram. Seria o destino importante? (concluí que não; apenas que fosse outro, longe dali) Estaria propositadamente dissimulada? (sim, claro; na impossibilidade de embarcar para uma outra vida, dissolveria-se na paisagem da sua existência, passando assim, despercebida a todos; seria apenas ela e os seus pensamentos).
Julguei até saber o nome dela: Sophia. Com –ph, que aquela dignidade e altivez mereciam um nome assim, grande.
Ocorreu-me então que, por trás das lentes escuras, ela teria os olhos fechados. Sonha-se melhor de olhos fechados, todos sabem isso.

Ao passar por ela, não evitei um olhar directo, ainda que breve, e vi uma esfinge. Burilada em rocha, rodeada de areia, contemplava o vasto horizonte. Inamovível. Determinada. Decidida.
Deixei-a para trás e tive que resistir várias vezes ao desejo de virar a cabeça, apenas para ter a certeza que ela ainda lá estava, que não tinha sido apenas a minha imaginação.
Quando cheguei à rocha mais alta, antes de iniciar a descida para o pequeno areal, voltei-me. Não tinha sonhado, mantinha-se no mesmo local, com a mesma expressão.

Sempre que tinha visitado aquele quase nada de areia no fim da praia – seria ainda a mesma praia? – tinha-me demorado com os meus pensamentos. Encontrava ali, naquele espaço confinado por altas paredes de rocha e terra escura, apenas habitado pelos gritos estridentes das gaivotas e pelo rebentar das ondas, um estranho sossego que me permitia seleccionar e arrumar as ideias importantes, um pouco como se estivesse a arrumar caixas em prateleiras. Mas desta vez, não.
Ao colocar o pé na areia, um arrepio gelado percorreu-me o corpo. E não foi causado pela brisa fresca que ali chegava ao colo das ondas. Lembrei-me da origem da palavra esfinge, que deriva de um verbo grego que significa “estrangular”, já que a esfinge da mitologia grega estrangulava todos os que não conseguissem decifrar as suas charadas. Instintivamente, levei a mão ao pescoço.
Não me consegui demorar, sentia-me perturbado, As ideias iam ter de ficar desarrumadas por mais algum tempo. Tinha de voltar.
Iniciei o caminho de regresso, mas logo abrandei o passo. O que iria fazer, falar com ela? Não obtive resposta, apenas a certeza que tinha que voltar para trás, ainda assim. Nada daquilo era normal e tinha de haver algo, uma razão para eu estar assim.

No topo da rocha mais alta, o meu olhar dirigiu-se imediatamente para o local onde a tinha visto pela última vez. Ainda lá estava, mas havia algo de diferente nela; algo que não identifiquei imediatamente, mas que senti.
Percorri as rochas o mais depressa que consegui, não evitando alguns arranhões nos pés. Estava agora próximo dela.
A postura era a mesma, a concentração também. De pernas flectidas, tinha agora os braços esticados para a frente, cada cotovelo apoiado num joelho. Segurava algo.
Gotas de suor desciam-me da testa para os olhos, o coração disparado. Estava ofegante e com a boca seca.
Quase corri.
Ela não pareceu dar pela minha presença e manteve-se imperturbável, como se ninguém ali estivesse.
E então, percebi o que ela tinha nas mãos: numa manhã cinzenta e fresca de final de primavera, sozinha e isolada num canto remoto de uma praia, uma mulher lia sossegadamente a revista Maria.

quarta-feira, março 14, 2007

quinta-feira, março 08, 2007

Fonte Luminosa

Vejo-me ao espelho. Observo os locais onde as primeiras rugas vão aparecer. Sinto-as à flor da pele, a fazerem-se dentro de mim. Alimentam-se das noites mal dormidas e dos vícios a que me entrego. Sem piedade e remorso. Ajeito o espelho, talvez na estúpida esperança de que, noutra posição, as não sinta. Tento enganar a mim mesmo. Mais uma vez. Tento. Decomponho-me no retrovisor. Eu, aos pedaços. Ainda serei eu, se for apenas parte de mim? A porta abre-se e o frio é o primeiro a entrar. Reflecte-se no espelho e senta-se a meu lado. Atrás dele, um casal de velhos. “Boa noite. Para a Alameda, se fizer o favor”, diz ele, cortês nas palavras e na pose. Falam de cinema. Deixo-os em frente ao Café Império. Vão matar saudades do bife e do lugar. Quase lhes digo que o tempo não volta atrás, mas a figura dela, que cruza a avenida mesmo à minha frente, distrai-me. Dou-lhes o troco e desejo-lhes bom apetite. Têm o cuidado de agradecer. Atravessam a estrada de mão dada. Foi o tempo suficiente para a perder. Era apenas uma mulher, mas levava algo no olhar. Intenso, foi tudo o que consegui perceber. Desapareceu na Alameda. Alguém faz sinal e leva-me para Sete Rios. O frio, esse, ficou. Uma hora à espera. Local inóspito. Fico. Depois, Saldanha. Mais espera. Um jovem de fato e gravata à banda, que há muitas horas colocou gel no cabelo, aproxima-se. “Intendente… depressa”. Os nervos embrulham-lhe as palavras. Vai recuperar a compostura perdida. Pelo menos, até amanhã de manhã. Que depois, tudo de novo. Conheço-os bem. Todas as noites os tenho por companhia. Fica na Rua dos Anjos. A tremer. Entregue ao seu azar. Regresso à Alameda. Quem sabe. Estaciono. Nada. Viro o espelho para mim. Não. Chega. Saio e acendo um cigarro. Ninguém. A cidade só para mim. Expiro nuvens breves. Invejo-as. E então, vejo-a. Caminha sobre o bordo da Fonte Luminosa, seca. É ela. Pára junto ao cavalo, empinado na sua traseira de peixe. Observa-o. Os rostos próximos. As expressões, distintas. No entanto, percebo-lhes o mesmo desejo. Atravesso a estrada. Atrás de uma árvore, vejo-a saltar do bordo para a relva e da relva de novo para o bordo. Repete o movimento várias vezes. Brinca como não brincava há muitos anos. Ali, é de novo uma criança. Corre e salta para dentro da fonte. Sedenta. Abandonada. Aproxima-se das estátuas. Estende o braço. Uma carícia imaginada. Corre e salta para fora da fonte. Imóvel. Vejo-lhe o brilho no olhar. Parece feliz. Vem na minha direcção. Viu-me? Volto para o carro e meto a chave na ignição. Faz-me sinal. “Ajuda”. Hesito. Deseja-me boa noite e então percebo. Ajeito o espelho e aproveito para a observar. Encostou a cabeça ao banco. O olhar perdido para lá da janela. “Tudo o que eu sempre quis foi um filho”. Não digo nada. “Há dois meses que estou grávida…” A frase em suspenso. “Estou tão cansada. Andei tanto. Tanto”. Digo o quê? Nada. “Não sei onde estive, o que fiz todo este tempo”. Parece nem respirar. “Não devia fazer tanto esforço”, arrisco. Não responde logo. “Hoje fui fazer a eco… não havia batimentos… o coração desistiu”. Leva a mão à janela. O que quer que fosse, escapa-lhe. “Trago-o dentro de mim, sem vida… consegue imaginar…” Não consigo. “O médico diz-me para fazer exercícios, correr, saltar… para o expulsar… saí da clínica e andei, andei muito… e agora…” Deixa cair o braço. O frio tomou conta do carro. Pequenas gotas de água caem no vidro. Os olhos dela, no espelho. Percebo, então. É dor. As escovas chiam ao empurrar a água do vidro. Uma lágrima atraiçoa-a. “Ajuda”, digo eu. “Preciso…”

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Mar de Penas

Leontino Pascual é um fora-da-lei. Quem o vê, não imagina estar perante um infractor: cabelo grisalho, já mal semeado no couro cabeludo engelhado e às manchas castanhas, caminha lentamente, curvado sobre si, apoiado numa bengala velha e sebosa. Vai na direcção do Miradouro do Monte Agudo, atento à calçada que pisa, sempre pródiga em surpresas desagradáveis. Não precisa olhar em frente: era capaz, se a isso fosse obrigado, de palmilhar o trajecto entre a Rua do Triângulo Vermelho – onde mora – e a Rua Heliodoro Salgado – para onde se dirige – de olhos fechados. São muitos anos de passos perdidos na Penha de França.
Na mão esquerda, o sempre presente saco de plástico, onde transporta a “arma do crime”: milho. Sentado num dos bancos de jardim do miradouro, Leontino tem o péssimo hábito de dar milho aos pombos, enquanto pensa na vida e fala sozinho. Zelosa na sua tarefa de proteger a saúde pública, e por manifesto fastio provocado por uma vida solitária em que nada parecia acontecer, uma moradora das redondezas fez queixa contra o velho. Assim, foram duas vidas fastidiosas e vazias, em que nada acontecia, que foram perturbadas: a dela – pouco, que a coisa resumiu-se a ir à esquadra apontar o dedo ao “bandido da bengala” – e a de Leontino, que teve o azar de o processo ir aterrar na secretária do delegado do Ministério Público com maior taxa de produtividade (e o mais salazarento de todos) e lhe deu seguimento.
A acusação não foi meiga. No processo – para o qual Leontino não se deu sequer ao trabalho de olhar – podia-se ler que “(…) diariamente, o requerido desloca-se até ao referido local, munido de uma generosa quantidade de alimento (…) os pombos permanecem em atitude expectante à espera da comida (…) logo que o requerido se senta no banco de jardim, os pombos voam do telhado do prédio do nº 60 para o jardim para se alimentarem (…) A aludida alimentação diária dos pombos tem provocado uma elevada concentração de pombos no local, designadamente, no telhado dos prédios circundantes (…) que tem constituído um factor perturbador da vida dos moradores do prédio onde habitam as requeridas e dos prédios circundantes, já que os pombos que ali permanecem têm vindo a inundar de penas e dejectos os telhados, as chaminés e os algerozes, as varandas e os estendais, bem como a rua e as viaturas nela estacionados ou que nela circulem (…) A situação é de tal modo insustentável que, presentemente, mostra-se prejudicada a utilização dos próprios espaços das habitações, em concreto das varandas e dos estendais das roupas, impedindo os respectivos proprietários ou arrendatários de aí se deslocarem ou de estenderem a roupa (…) Por outro lado, a elevada concentração de pombos e a sujidade que provocam, com as penas e dejectos que ali vêm depositando, colocam em perigo a saúde e a qualidade de vida das requeridas, dos restantes moradores do mesmo prédio das requeridas, bem como da dos prédios contíguos, assim como de todos quantos aí têm necessidade de permanecer ou de se deslocar, residentes ou não no local (…).
Seguia-se uma descrição de algumas das doenças e pragas que era acusado de propagar: Histoplasmose, Criptococose, Psitacose, Salmonelose, Piolhos e a Doença do Tratador de Pombos.
Sem apelo nem agravo, foi-lhe fixada ao abrigo do artº 384º, nº 2º, do Código de Processo Civil, e do artº 829º-A, do Código Civil, a fixação de uma sanção pecuniária compulsória no montante de €100,00 por cada dia que alimentasse os pombos.

Escasso de sanidade mental e de finanças, mas a abarrotar de tranquilidade na consciência, Leontino esteve-se a borrifar para a condenação e para os moradores das redondezas. A bem dizer, já nem se lembrava do sucedido – que a polícia nunca tinha vindo ter consigo – quando, sem olhar, atirou uma mão cheia de milho que foi aterrar em cima dos pés da rapariga que todas as tardes se sentava no banco ao lado do seu.
Boquiaberto, não dava pelo fio de saliva que se escapava pelo canto esquerdo da boca. Ultimamente acontecia-lhe muito: distraía-se a pensar em coisas de que logo se esquecia e perdia a noção de tudo à sua volta. Foram os gestos da rapariga a sacudir o milho de cima dos pés, que o trouxe de volta.


– Já aí está… nem a vi. Estava aqui a pensar que a minha vida dava uma novela… dessas que nunca mais acabam, compridas, em que está sempre a aparecer gente nova, só para nos confundir… novas situações. A diferença é que o que lá demora uma data de episódios, na minha vida, acontece tudo muito depressa… A minha mulher já se foi há… sei lá, muitos anos, mas parece que foi ontem que fui com ela ao Mercado de Arroios comprar um melão… gosto muito de melão, sabe… – Leontino atirou a última mão cheia de milho e guardou o saco no bolso do casaco. – Sabe menina, o amor é como o mar, pode ser calmo, mas também pode ser violento; transparente, ou turvo; pode derrubar-nos ou embalar-nos, se soubermos esperar por ele…. É, o amor é como o mar, umas vezes vem, mas também vai.

A rapariga sorriu-lhe, como sorria sempre. Observava o afã dos pombos de volta dos grãos do milho e tentava adivinhar que histórias aquela pessoa lhe contava todas as tardes. Quem seria aquele homem que nada lhe pedia em troca?
De início, ela ainda lhe tinha tentado explicar por gestos, mas ele nunca compreendeu que ela era surda-muda. Naquela tarde, sacudindo farinha de milho dos sapatos, uma ideia assaltou-a subitamente: talvez ele não tenha querido perceber.