quarta-feira, maio 31, 2006

Uma Vida Nova

Não é uma nova história, é apenas o partilhar com vocês uma ocasião feliz.
Fui, esta madrugada, pai pela segunda vez.
Foram13 longas e cansativas horas de trabalho de parto, mas correu tudo pelo melhor. A mãe e o Miguel estão bem.
É grande e pesado: 3,750Kg. É, também, o bebé mais lindo do mundo (empatado com o irmão, claro). :)
O pai assistiu a tudo e portou-se lindamente, não se foi abaixo nas canetas. Uma emoção que só visto.

Obrigado a todos.

A novela trágico-marítima "Uma Vida Demorada" regressa assim que possível, tentei tê-la pronta antes do nascimento, mas não consegui.

segunda-feira, maio 29, 2006

Uma Vida Demorada (13)

Penso que para a maioria das pessoas, o conceito de “ocasião especial” encerra algo de positivo, de festivo.
Por exemplo, guarda-se uma garrafa para abrir numa celebração, para, nesse momento, partilhar a alegria que se sente usando, simbolicamente, uma bebida particularmente boa (e cara, de preferência, não tivéssemos nós a mania de que o que é caro é que é bom).
Sem nunca ter dado importância a isso, a ponto de guardar uma bebida para uma “ocasião especial”, a verdade é que tinha em casa um bom whisky há uns quatro anos sem que lhe tivesse tocado. Apesar de, por vezes, a tentação ter sido alguma, nunca fui capaz. Achava que para cumprir o objectivo porque bebia, qualquer whisky servia. E a garrafa lá foi acumulando pó - o objectivo, esse, era a inconsciência cognitiva.

Sobre uma outra expressão, posso assegurar - com a certeza que só o conhecimento de causa nos dá - que é absolutamente verdadeira: “beber para esquecer”.
Comecei a beber porque percebi que, após três ou quatro copos, deixava de pensar nas pequenas coisas do dia-a-dia, tudo saía da devida perspectiva, passava a ser relativizado, deixava de ser realmente importante – tudo o que é mau e tudo o que é bom, bem sei, mas quando o negativo supera em muito o que positivo, é um preço que se paga de bom grado.
Foi assim que perdi o controlo da bebida durante parte importante da minha vida adulta. É que, a partir de uma certo ponto, já não se bebe para esquecer, bebe-se porque já não nos lembramos de como se vive sem a bebida. Passamos a viver em estado alcoólico.

No final da tarde em que se deram os acontecimentos na sede do Partido Comunista, ao chegar a casa, dei por mim a debater comigo mesmo o conceito de “ocasião especial”.
Porque razão devia ser só em ocasiões alegres, festivas? Não é nas alturas menos boas, tristes, que mais precisamos de uma bebida? Foi assim que abri, finalmente, a garrafa de Clontarf Reserve Irish Whisky e quase a despejei nessa noite.
O estômago, já destreinado destas coisas das bebidas destiladas, pegou fogo, protestou e, na manhã seguinte, parecia estar carbonizado, reduzido a carvão. Nada que me tivesse feito pensar duas vezes sobre se devia continuar a beber ou não. Sentia-me mal comigo mesmo, com o mundo. A criança dentro de mim – pois era uma criancice, sei-o agora – sentia-se magoada, abandonada, precisava de compaixão e, à falta de alguém que cumprisse essa tarefa, o álcool teria de servir. Passei pelo supermercado e abasteci a garrafeira lá de casa.

Passaram-se cinco dias de que não guardo muitas recordações. Consegui fazer uma avaliação do que se terá passado pelo estado do apartamento.
Terei sonhado o sonho de sempre: o naufrágio; eu a observar e, depois, a ser levado para o fundo; uma luz, depois uma sombra. Mais nada.
No quinto dia, uma terça-feira, a minha consciência apanhou-me desprevenido. Num momento de inusitada coragem, decidi tomar banho e fazer a barba. Foi na banheira, debaixo de água fria, que ela me apanhou à traição. Inevitavelmente, conclui algumas coisas sobre a minha situação da altura: estava a ser um grandessíssimo idiota e um refinado cretino; conclui também que seria de todo conveniente dar sinal de vida para o jornal, isto se quisesse continuar a ter trabalho. Seria essa a prioridade, lidaria depois com a idiotice/cretinice.
Apesar de ter uma cabine telefónica à porta de casa, achei melhor telefonar do café vizinho: não quis ser visto a telefonar de uma cabine, era coisa que já não se usava! Com certeza, quem por ali passasse ia reparar em mim, e isso não podia ser.
O Sr. Dias, do café, foi muito compreensivo com o facto de eu ter deixado cair o telemóvel e este se ter partido, logo ele, que ainda nessa manhã tinha deixado cair uma garrafa de leite com chocolate – eu estava de novo a inventar, lembrei-me de Leonor.
As notícias vindas do jornal eram as piores, cinco dias sem lhes dizer nada tinha-os deixado furiosos. Talvez no início da próxima época futebolística tivessem trabalho para mim. Isso significava que ia ter muito tempo para mim. Pelo sim, pelo não, bebi uma bagaceira logo ali.
Deveria ligar a Leonor? Mais uma bagaceira.
As entranhas pareceram desistir e querer sair. Não me lembrava da última vez que tinha ingerido algo sólido. Comi um rissol e um croquete.
Entrei no Metro. Próximo destino, o Colombo. Precisava de um telemóvel e saber se o cartão do anterior ainda estava em condições.

Vinte sete pessoas à frente na loja da TMN! Espantei-me como, em pleno dia útil, havia tanta gente num centro comercial. Fui à FNAC fazer tempo.
Passei os olhos pelas novidades musicais e espreitei os modelos mais recentes de câmeras digitais. Nos livros, uma capa chamou-me à atenção. Era um volume grosso, com um desenho na capa, apenas o contorno de uma cabeça, um rosto sumariamente desenhado. Era Álvaro Cunhal. O livro, o segundo volume da sua biografia não autorizada, escrita por Pacheco Pereira.
Não me perturbou particularmente ter o mais comunista dos comunistas ali, à minha frente, houve antes algo que me interessou. Não sendo uma obra autorizada, como teria o autor conseguido tanta informação? Se fosse ele a procurar algo sobre a minha mãe, como faria? Tive uma ideia: conhecia o blog do Pacheco Pereira, poderia contactá-lo através dele, expor-lhe a situação, talvez me pudesse dar algumas indicações do que fazer a seguir.
Mas valeria a pena, então não era um assunto encerrado?
Um conjunto de fotografias no livro chamou-me a atenção. Eram as fotos de Álvaro Cunhal feitas pela PIDE aquando da sua prisão. Na legenda, uma referência ao arquivo da antiga policia politica, guardado na Torre do Tombo.
Num impulso, larguei o livro e apanhei um táxi para a Alameda das Universidades.

O pessimista devia saber que as boas ideias não surgem subitamente. Tudo o que parte de impulsos está condenado ao fracasso.
Talvez até aquele momento eu não fosse um verdadeiro pessimista, se fosse não me teria entusiasmado.
Bastava ter pensado um pouco para perceber que não seria possível consultar o processo de uma pessoa no arquivo de uma polícia politica. Só o próprio ou alguém por ele autorizado pode consultar a sua ficha.
Se existia uma em nome de uma tal Alda das Dores Saraiva, eu jamais o iria saber.
Deixei a Torre do Tombo e rumei a um sítio onde não ia há algum tempo, o Antigo Retiro Quebra Bilhas, no Campo Grande, podia lá ir beber qualquer coisa. Podia se a casa não fosse agora um restaurante que não atende potenciais bêbados durante a tarde. Valeu a existência de alguns estabelecimentos atabernados por perto.
Antes de comer os três pastéis de bacalhau regados com o carrascão do Cartaxo que figura como vinho da casa, tive o cuidado de escrever a morada de minha casa num guardanapo. Mais tarde, para voltar para casa, iria dar muito jeito, senti-o.

Não sei que horas eram, nas estava já escuro quando o taxista me abriu a porta do carro para eu sair. Escuro como não era habitual à porta de casa, a iluminação pública estava apagada.
Lembro-me que havia vento, uma série de fortes rajadas dificultaram-me a chegada à porta do prédio – pelo menos assim pareceu.
A primeira sensação que tive foi a que tinha um sem-abrigo a dormir à porta. Alguém estava nos degraus.
Peguei nas chaves, tentando perceber qual era a da porta da rua. O candeeiro deu sinal de vida, piscando algumas vezes. O vulto saiu da escada e aproximou-se de mim. Dei dois passos atrás, o candeeiro piscou outra vez em vários tons amarelados, dando um ar algo sinistro à cena. Senti o coração disparar, a adrenalina a fazer-se sentir. Coloquei os braços em posição defensiva, não estava em condições de lutar, mas não ia ser assaltado sem resistir.
A luz acendeu-se definitivamente. Era uma mulher que estava perante mim.

- João…
- Quem é?
- Sou eu, a tua mãe.


Nota: O autor falhou! Só agora reparei que, no texto anterior, deixei escapar cinco palavras. Estão no diálogo entre o João e o Evaristo, na sede do PC, para quem tiver paciência de as procurar. Por tal facto já me penitenciei à boa maneira dos albinos da Opus Dei. Desculpem.

sexta-feira, maio 26, 2006

Uma Vida Demorada (12)

Enquanto esperava por ela, contei seis. Reflectidos nas janelas azuis escuras, cruzavam o edifício numa diagonal descendente, aparecendo e desaparecendo ao longo da fachada.
Entre cada passagem naquele gigantesco espelho azul, eu observava o piso térreo do edifício vizinho, composto por uma porta de vidro - cruzada por barras de ferro branco, metade na vertical, metade na diagonal -, centenas de azulejos dos mais variados feitios e algumas formas em relevo.
Os azulejos, de todas as cores, formam várias imagens em que homens mulheres e crianças estão envolvidos em várias actividades: agrícolas, industriais ou simplesmente a ler. São várias as pombas brancas que esvoaçam pelo mural e os arco-íris que brilham. A mensagem era óbvia.

O sétimo avião ouviu-se ao longe. Virei-me para o edifício azul para ver passar o seu reflexo, Leonor estava ao meu lado. Estremeci.

- Então, entramos? – Perguntou-me ela, sorrindo.

Estávamos os dois em frente à sede do Partido Comunista Português, na Rua Soeiro Pereira Gomes. A fantástica ideia de Leonor era simples: segundo ela, o meu pai tinha sido comunista e a minha mãe também, logo, existia uma ficha de inscrição de cada um deles nos arquivos; no caso da minha mãe estar viva, com dados actualizados.
Desta vez não protestei, não a contrariei, guardei para mim os muitos argumentos que tornavam aquela ideia em algo muito próximo do disparate.
Bebi uns whiskys a seguir ao almoço para me anestesiar um pouco mas, tudo o que consegui, foi ficar indiferente ao objectivo que ali nos trazia e propenso a implicar com tudo e com todos. Sentia-me preparado para o confronto.

- Vamos a eles. – Respondi-lhe.

A porta estava fechada. Empurrei uma segunda vez e um som estridente e contínuo ouviu-se. Alguém a tinha destrancado.
Uma lufada de ar fresco enlatado fez-se imediatamente sentir, contrastando com o ar quente do exterior. Leonor agarrou-me pelo pulso: - Não vai ser fácil, mas tenho esperança que se comovam com a tua história.
- Nem penses que lhes vais falar da minha vida, não te atrevas; deixa que eu sei bem o que lhes vou dizer.

Atrás de uma secretária, à esquerda, uma mulher anafada e detentora de uma expressão forjada a chumbo, observava-nos.
- Bem vindos à União Soviética. - Murmurei para Leonor, que me mandou calar.
Aproximamo-nos. Em cima da secretária, apenas um telefone e as mãos gorduchas da mulher: a esquerda em cima da direita.

- Boa tarde. – Leonor fez o seu melhor sorriso.
- Boa tarde. – Respondeu a mulher praticamente sem mexer os lábios.
- Nós pretendíamos…
- Se não te importas, falo eu. – Calei Leonor, que ficou mais vermelha que a bandeira do partido que esvoaça na varanda do último andar do prédio. – Com quem é que nós podemos falar sobre um dos membros do vosso partido?
- Qual é o assunto em concreto? – Era espantosa a capacidade daquela mulher em falar sem, aparentemente, mover um músculo da face.
- É consigo que se tratam os assuntos relativos a membros?
- Não, mas…
- Então chame lá o controleiro que trata desses assuntos. – Disse eu o mais rispidamente que fui capaz.
- João…
- Calas-te, sim? – Leonor engoliu em seco e fez um esforço por se controlar. A situação, essa, caminhava para o descontrolo.

A estátua mexeu-se, por fim. Marcou três números no telefone e disse qualquer coisa imperceptível.
- É favor aguardarem, o meu camarada vem já falar com os senhores. – Indicou-nos umas cadeiras, perto da porta.

- Tu não te podes descontrolar assim. – Leonor falava baixo e procurava os meus olhos. Desviei-os. – Anda, senta-te.
- Não, estou bem de pé. Esta malta complica-me os nervos, o que queres? - Ela ia dizer o que queria, mas calou-se. Percebeu que não ia adiantar.

Passaram-se cinco minutos e nada aconteceu. Nenhum dos três se mexeu, ninguém entrou, ninguém saiu. Apenas um ligeiro zumbido vindo do ar condicionado se fazia ouvir. Sentia os nervos em franja.
Foi Leonor quem quebrou o silêncio.

- Sabes quem foi Soeiro Pereira Gomes?
- Algum comuna, só pode.
- Sim, foi membro do Comité Central, nos anos quarenta. Apesar da pouca obra publicada, ficou conhecido como escritor. Foi um dos fundadores do neo-realismo em Portugal.
- As coisas que tu sabes.
- Morreu novo, na clandestinidade, com tuberculose.
- Olha que pena.
- João!
- Sim, está bem.
- Não leste o Esteiros?
- Não sou muito dado a livros, sabes isso, especialmente de autores… - Calei-me.
- Devias ler. O livro é dedicado “aos filhos dos homens que nunca foram meninos”. Conta a história de um grupo de miúdos pobres que têm de trocar a escola pelo trabalho numa fábrica de tijolos. Relata a violência do sistema social, a exploração dos trabalhadores, a falta de compaixão. Revela como o ser humano cria uma armadura para sobreviver. É muito contundente o livro. – Fez uma pausa na esperança que eu dissesse algo. – Não te lembra nada, a história?

Fez-me lembrar o meu pai, mas não o disse. Ia antes dizer que a brilhante advogada, com casa na Expo e carro todo catita, se estava a revelar uma profunda conhecedora das amarguras do proletariado, esmagado pelo capitalismo que ela tão bem representava, mas uma figura que surgiu ao fundo do corredor, em contra-luz, impediu-me de o fazer.
Era um homem, magro, que tinha uma farta cabeleira e caminhava lentamente. Só quando chegou perto de nós lhe pude ver a expressão. Aparentava uns setenta anos, tinha a pele do rosto macilenta e, por baixo do queixo, uma prega de pele balançava. Tinha o cabelo todo branco e uns olhos de um azul ainda vivo, como que reflectindo o azul do céu no fundo de um poço, de tal maneira estavam enterrados na sua cara.
Calçava uns sapatos de camurça castanha e vestia calças de bombasine, também castanhas. Tinha uma camisa de flanela cinzenta e, pendurados num fio, uns óculos pendiam-lhe no peito. Deve estar a morrer de calor, pensei.
Era, no mínimo, uma figura esquisita.
Trocou um breve olhar com a recepcionista e dirigiu-nos a palavra, estendendo-me, ao mesmo tempo, a mão: - Boa tarde, o meu nome é Evaristo Cordeiro.
- João, Leonor. – Disse eu, surpreendendo-me com a firmeza do aperto de mão do velho.
- Em que os podemos ajudar? – Pelos vistos, a nossa conversa ia decorrer ali mesmo.
- É o seguinte, eu sou jornalista e… er… somos jornalistas… estamos a investigar a pesca do bacalhau, antigamente… a fazer um estudo… isto é, uma reportagem,
juntamente com o Museu Marítimo de Ílhavo, sobre os pescadores que iam para a Terra Nova. – A boca secara-me num instante. Leonor mordia o lábio inferior e não tirava os olhos de mim. – Descobrimos que um desses pescadores, da Fuzeta, no Algarve, era do Partido… seu camarada… mas já morreu… o que nós queríamos era saber da mulher dele, se também era… queríamos encontra-la, falar com ela.
- Não sei se entendi.
- Queremos saber se uma tal de Alda das Dores Saraiva é, ou foi, membro do Partido.
- Trabalham para que órgão de comunicação?
- Er… para o jornal A… Público.
- Posso ver a vossa identificação? - Saquei da carteira e mostrei rapidamente o cartão que me dá acesso aos recintos desportivos. – Bom, os arquivos do partido, como devem calcular, são reservados, nós não podemos…
- Eu sei, eu sei… - A impaciência tomava conta de mim. – Nós só queremos saber se a Alda das Dores Saraiva é membro, falar com ela. Pode dizer-me isso?
- Eu não lhe sei responder e a militância partidária é algo que só a própria pessoa pode revelar.
- Ouça… - Inconscientemente, coloquei as mãos nos ombros do velhote, que deu dois passos atrás. A recepcionista ergueu-se como se tivesse uma mola.
- João, por favor. – Senti a mão de Leonor no braço.
- Eu só lhe peço que me diga se essa mulher existe.
- Mas como quer que eu faça isso?
- Quero que vá procurar aos arquivos, agora. – Larguei o homem, mas ele, apoiado que estava em mim, não se aguentou de pé e caiu. A recepcionista e Leonor precipitaram-se imediatamente para o homem, ajudando-o a levantar. Eu tentava perceber o que tinha acontecido, quando dois homens surgiram não sei de onde e me agarraram.

- Vou ter que lhe pedir que saia. – Disse-me um deles, arrastando-me para a porta.
- Eu não tinha intenção…
- Lá para fora.
- Deixe-me explicar. – Uma mulher entrava nesse momento, trazendo um enorme ramo de flores. Fui contra ela, quase fazendo-a cair.
- Fora! – Fui posto porta fora. Leonor saiu atrás de mim, desculpando-se às pessoas. Chorava.
- Tens que acreditar em mim, eu não queria…
- Deixa-me João, por favor. – Passou sem olhar para mim.
- Foi sem querer, acredita.
- Também foi sem querer que contaste aquelas mentiras? – Tinha-se voltado para trás. Grossas lágrimas caiam-lhe pela face. – Explica-me como é que pensas chegar à verdade através da mentira, és capaz?
- Como é que querias que nos deixassem ver o arquivo, bastava aqui chegar e estendiam-nos a passadeira? Logo esta gente…
- Não, explicávamos-lhes a situação, pedíamos que, caso existissem dados sobre a tua mãe, nos dessem o contacto dela. – Um táxi apareceu no início da rua, Leonor fez-lhe sinal e abriu a porta.
- Desde o início que isto sempre foi a tua busca, não a minha. Eu nunca acreditei que encontrássemos a minha mãe. Não acho que haja alguém para encontrar.
- O livro de que te falei há pouco, lembras-te? Os miúdos tinham a vida mais difícil que possas imaginar, mas uma coisa nunca lhes conseguiram tirar. – Olhava-me intensamente. – A capacidade de sonhar. – Entrou no táxi e partiu.

Desta vez eu tinha conseguido magoá-la a sério. Um enorme vazio abriu-se dentro de mim.
O telemóvel tocou, era do jornal. Não atendi, com quanta força tinha, atirei-o à parede. Mil pedaços saltaram.
À porta, Evaristo Cordeiro e uma mulher segurando um enorme ramo de flores, olhavam para mim. Havia pena no seu olhar.

terça-feira, maio 23, 2006

Uma Vida Demorada (11)

O nome alterado pelos meus pais adoptivos! O João Carlos Saraiva Vicente tinha dado lugar ao João Vicente Medeiros Antunes. Isso quereria dizer alguma coisa ou revelava apenas o desejo dos meus pais, quando me adoptaram, em me dar o seu nome? A lei permite-o. A verdade é que, pensando agora nisso, nunca fui por eles habituado a usar o meu nome completo.
O balanço que eu conseguia fazer da visita à Fuzeta não era brilhante: neto do Corneta, filho do Pirola, ambos comunistas empedernidos, o nome mudado. Mais uma vez, foi Leonor quem colocou as coisas em perspectiva para mim.

- Começa a fazer sentido aquela mensagem da tua mãe. Quando falava do tempo estava a avisar o teu pai, ela deve ter sabido de alguma coisa. E essa história do nome, hmmm, não sei. - Estávamos no carro, à porta de minha casa, acabados de chegar do Algarve. Sem qualquer interesse em continuar aquela conversa, tentei despedir-me, o cansaço pedia-me um banho demorado, sozinho, mas Leonor insistiu em subir.

Não me saía da cabeça o facto de descender de uma família de arruaceiros inconformados, de uns revolucionários de meia-tijela que sempre se tinham oposto à lei e à ordem. A minha mãe incluída.
Um pensamento recorrente apoderou-se de mim: teria valido a pena ter-me metido nisto? Sentia-me confuso, a minha origem parecia em tudo contradizer a educação que tive e aquilo em que me tornei. A consciência de que, caso tivesse continuado a viver com a minha mãe biológica, me teria tornado, certamente, numa outra pessoa, muito diferente do que era hoje, perturbava-me seriamente.
É que uma das poucas certezas que eu tinha até há bem pouco tempo, era daquilo que eu era, das coisas em que acreditava; e ser revolucionário, contra a ordem estabelecida e instigador de conflitos, não era, definitivamente, uma dessas coisas.
Estaria eu a trair a minha génese? Estaria aí a origem para o meu comportamento conflituoso, a minha dificuldade de adaptação a outras pessoas? Ou, antes pelo contrário, era o meu passado que me atraiçoava agora, depois de tantos anos?
Fosse o que fosse, todas estas dúvidas, o conflito interno, era derivado das minhas atitudes, da procura de respostas. Concluí que há coisas nas quais não se deve mexer.

- … abri a caixa de Pandora, Leonor. Agora pago as consequências disso. Não fiquei a saber nada que contribua para a minha felicidade, antes pelo contrário.
- Que disparate, João. Não sejas tão dramático. Sempre a lamentares-te. Não consegues ver o mais óbvio? – Continuou sem esperar por uma resposta. – Não percebeste ainda o mais importante, algo que pode fazer com que tudo isto valha a pena.
- Confesso que não…
- Que a tua mãe pode estar viva!?

De facto, podia. Tudo o que se soubemos apontava nesse sentido, ou melhor, nada descobrimos que validasse a morte dela.

- Aposto que tens alguma ideia sobre o que fazer a seguir. – Disse eu sem grande convicção, prostrado no sofá da sala. – Mas digo-te já que não sei se quero avançar, tenho receio de que possamos ter sucesso.
- Não viemos até aqui para parar agora. – A expressão dela não deixava dúvidas, parecia estar a apresentar um caso complicado a um júri colectivo, em tribunal. – É algo que vamos fazer juntos. O que houver para enfrentar será enfrentado pelos dois.

Acenei que sim com a cabeça, tinha cada poro do meu corpo a pedir água, deixando-me sem forças para a contrariar.
Ela explicou-me o que iríamos fazer: a) procurar o nome da minha mãe na lista telefónica; b) usar um contacto dela na Direcção Geral de Viação; c) em último caso, ela falaria com alguém que, por sua vez, tem um contacto na Policia Judiciária - Arquivo de Identificação. Simples.

- Eu procuro no Google. – Disse eu, estupidamente. Leonor não gostou e saiu sem se despedir.

Os dias passaram e as “buscas” revelaram-se infrutíferas, nenhuma Alda das Dores Saraiva tinha telefone em seu nome, ou carta de condução – ainda telefonámos para algumas senhoras com nomes parecidos, uma delas a viver em Olhão, mas nenhuma era a minha mãe.
O contacto na PJ revelou-se um daqueles casos em que o amigo bem colocado, que está sempre a disponibilizar ajuda quando ela não é necessária, afinal se vem a saber não ser assim tão amigo, na hora da verdade. Pelos vistos o contacto, era um inspector que tinha sido transferido.
Mais duas semanas passaram e outros assuntos foram ocupando as nossas vidas. Perdi a pouca esperança que tinha e desmotivei.
Continuava a sonhar todas as noites com o naufrágio, com aquela luz que aparecia. Dormia pouco e a cada dia sentia-me mais cansado, agoniado e oprimido. As horas pareciam dias e o apelo do álcool voltou a fazer-se sentir.
Este período coincidiu com a paragem dos campeonatos desportivos e o consequente decréscimo de trabalho. Fiquei com mais tempo para mim, o que foi péssimo.

- Tiramos a primeira quinzena de férias, vamos para o Algarve. – Leonor tentava animar-me. – Vai ser bom, vais ver.
- O Algarve é caríssimo nesta altura do ano, sabes isso, eu não tenho hipótese…
- Não te preocupes, o Afonso já me ofereceu o apartamento dele em Vilamoura, ele vai estar nos Estados Unidos.
- Não sei como é que foste encalhar num tipo como eu, merecias melhor.
- Recuso-me a ter esta conversa contigo. Ultimamente, fazes-me lembrar o João de há uns meses. Ficas a saber que não tenho saudades nenhumas dele. Liga-me quando mudares de atitude.

Estivemos dois dias sem falarmos. Acabou por ser ela a ligar-me.
Comi um caldo verde e uma bifana no Beira-Gare, junto ao Rossio, tendo regado tudo com três imperiais pretas e tomei a direcção do Largo da Anunciada, objectivo, fotografar o Elevador do Lavra, o mais antigo de Lisboa, e sentar-me a uma sombra no Jardim do Torel.
Dobrei a esquina junto ao Solar dos Presuntos, um miúdo correu para o Elevador que estava prestes a partir. Tirei a câmera da mochila e fiz várias fotos. A luz daquele início de tarde não era a melhor. Preparava-me para entrar na carruagem quando o telemóvel tocou, era Leonor.

- João… - Estava ofegante, parou para recuperar o fôlego. – Nem sei como não me lembrei disto antes…
- Calma miúda, fala mais devagar.
- Acabei de subir ao quinto andar do Tribunal Criminal… pelas escadas… os elevadores estão avariados… - Nova pausa. – Mas valeu a pena, foi agora mesmo que me lembrei de uma coisa…
- Estou com medo.
- A tua mãe… já sei como a vamos encontrar.

Uma campainha fez-se ouvir. O Elevador chiou nos carris e deu um pequeno solavanco para a frente.
Fiquei imóvel, de telemóvel colado ao ouvido, vi-o iniciar mais uma lenta subida da colina. Sem mim.

domingo, maio 21, 2006

Uma Vida Demorada (10)

Senti uma gota de suor formar-se na têmpora direita; desceu alguns milímetros e depois, maior, escorregou pela face, suspendendo-se no maxilar. Quis limpá-la mas não fui capaz de me mexer.
O tempo parecia ter parado para mim. Percebia que Maria, a velhota, protestava com o marido, certamente dizia-lhe que não devia dizer disparates. Leonor falava comigo, olhava na minha direcção e vi-a mexer os lábios, talvez me perguntasse se eu estava bem. Mas eu não os ouvia, dentro da minha cabeça, mil pensamentos entrechocavam-se, como se todos quisessem fazer sentido ao mesmo tempo. Os primeiros indícios de uma dor de cabeça fizeram-se sentir.

- Como é que o senhor pode dizer uma coisa dessas? – Leonor tinha-se virado para o homem e interrogava-o. Foi a pergunta dela que me devolveu aquela sala.
- Vocês não lhe liguem. – Maria, sentada num banco que trouxera da cozinha, implorava-me com o olhar que acreditasse nela.
- Cala-te, mulher! – Manuel fez um gesto de desprezo com a mão. – És pior que eles todos, cambada de cobardes.
- Eles quem? – Era Leonor quem continuava a fazer perguntas. Estava visivelmente interessada no que o homem tinha para dizer. Pela minha parte, continuava a tentar ordenar as ideias.
- Eles todos! Vocês não sabem mas eu vou contar-vos: o teu pai era muito comunista, a tua mãe não sei, mas o teu pai era. Aliás, aqui nesta zona, era ele o maioral, o chefe, quem decidia o que se fazia. E o teu avô também foi. Um dos primeiros. – Manuel despejou mais um copo de água. – Era assunto de que não se falava, mas toda a gente daqui o sabia. Era ele que mobilizava a malta contra o Grémio e que passava uns papéis entre quem sabia ler, que eram poucos, mas esses liam aos outros e era assim que se fazia naquela altura. Esteve algumas vezes preso, levavam-no para Faro e voltava uns dias depois um bocado amassado. É mentira, Maria? – Ela nada disse, limitou-se a baixar a cabeça. – Mais nada. Oiça amigo, a PIDE andava aí em força quando ele ficou no mar, dizia-se que o vinham buscar e que desta vez ia para Lisboa… um incêndio uns meses antes num barco que furou uma greve…
- Mas e a minha mãe, não percebo o que isto tem a ver com o facto de ela poder estar viva. – Por fim, consegui falar.
- O meu filho. – Fez uma pausa. – Foi há uns anos para a América, um dia chegou a casa e disse que se ia embora, que estava farto da vida do mar, fez a mala e só deixou esses livros que aí vêem. Nunca mais soubemos nada dele… eu já quis fazer uma fogueira com eles, mas não me deixam. – Olhou para a mulher, que se levantou e desapareceu na cozinha. – Bom, era ele mocito pequeno, uns anos mais velho que tu, entrou por essa porta todo esbaforido, a gritar por mim, dizia ele que uns homens que vieram de carro te tinham levado a ti e à tua mãe.
- Quem eram eles?
- E como vou eu saber? Cá para mim eram uns capangas da PIDE, ou da GNR, mas e se o miúdo estava a mentir? O que é certo é que depois desse dia, nunca mais ninguém os viu, a ela ou a ti. – Leonor olhava para mim com os olhos muito abertos. – Uns dias depois, um desses reles do Grémio apareceu aí com a noticia de que tinham encontrado a tua mãe pendurada numa árvore, num monte qualquer, e tu numa alcofa. – Maria apareceu com outro copo de água que entregou ao marido. – O médico diz-me que tenho que beber muita água… e eu bebo, é mais barata que a botica.
- O senhor não acreditou em nada disso.
- Eu conhecia muito bem a tua mãe, a tua mãe lá era pessoa de se matar, alguma vez… e deixar-te numa alcofa… - O homem abanava a cabeça. - Ainda fiz umas perguntas, mas ninguém quis saber, tinham todos medo. Fui avisado muitas vezes para não mexer no assunto… os cobardes…. Agora diz-me tu: dá para acreditar numa história destas?

Eu não sabia responder à pergunta. Tinha vindo à procura de respostas e ia regressar a casa com mais perguntas.
Manuel “Gato” não tinha nada de concreto que nos pudesse ajudar, apenas uma desconfiança de quase quarenta anos.

Despedimo-nos, já na rua, com alguma emoção. O céu estava limpo e o sol tinha já desaparecido atrás das casas. Uma brisa fresca vinda do mar, fazia-se sentir.
Os velhotes tinham ficado muito emocionados com o meu inesperado regresso. Prometemos voltar ainda nesse verão para os visitar.

- O senhor desculpe, mas queria fazer-lhe ainda uma pergunta. - Disse Leonor.
- Diga lá menina.
- Afinal, como é que se dobram os fósforos?
O homem esboçou um sorriso, a única vez que tal aconteceu: - Ora, é fácil, basta deixá-los uns tempos dentro de água, assim ficam moles e podemos dobrá-los, depois secam na posição que queremos.
- Eu também tenho uma pergunta para lhe fazer. – Tinha-me lembrado de algo. - De onde lhe vem essa alcunha de “Gato”?
- Porque dizem que tenho sete vidas, como os gatos. Aos dezasseis anos já tinha partido as duas pernas, os dois braços, a cabeça e umas costelas. Tudo a trabalhar. Outro teria morrido, mas eu só parti ossos.

Acenámos e preparávamo-nos para regressar à pensão, quando o homem acrescentou: - Tu ainda eras muito novo para ter uma alcunha, eras só o João Carlos do Pirola.

Foi como se tivesse batido numa parede. A custo, virei-me para o casal.

- Mas eu não me chamo João Carlos.

quinta-feira, maio 18, 2006

Uma Vida Demorada (9)

Entrámos para uma sala escassamente mobilada; dois sofás individuais, uma estante com livros amarelecidos e uma televisão em cima de uma pequena mesa redonda, era tudo o que havia. Nas paredes, dois quadros com reproduções de barcos antigos, uma moldura enquadrando vários pequenos nós de marinheiro e, numa prateleira pregada à parede, um veleiro feito com fósforos.
Os dois velhotes foram para a cozinha preparar um chá quem nem eu nem Leonor queríamos. Enquanto eu admirava o barco de fósforos, Leonor mirava os livros existentes.

- Já viste isto? – Disse ela em voz baixa, aproximando-se de mim. – Têm ali pelo menos três livros da Anais Nin. Um deles é uma versão ilustrada.
- Que tarados. – Respondi eu. Ficámos a rir baixinho.

- Fui eu que o construí, há muitos anos. – O velhote tinha entrado na sala sem que tivéssemos percebido. Por um momento receei que ele tivesse ouvido o nosso comentário. – Quando tinha paciência e as mãos não me tremiam. Agora nem acender um consigo.
- Está muito bonito, parabéns.
- Sabe como é que se dobram os fósforos? – Perguntou o homem, enquanto se sentava a custo. Era notória a dificuldade em se mexer.

Voltei a olhar para o barco. De facto, havia várias dezenas de fósforos dobrados. Como diabo faria ele aquilo?
A mulher entrou com uma bandeja nas mãos.

- Aqui está o chá, é de camomila, espero que gostem.
- Chá… com um calor destes a quem é que apetece chá?
- Ora, cala-te, um chá cai sempre bem.
- Claro que sim, vai-me saber bem um chá. – Disse Leonor, tirando a bandeja das mãos da mulher para ela colocar uma pequena mesa articulada que retirou detrás de um dos sofás.
- O senhor desculpe-me… não sei o seu nome.
- Manel “Gato”.
- Senhor Gat… Manuel, eu…
- Gato não é apelido, é alcunha. Aqui, os pescadores têm todos alcunhas. Ninguém usa os nomes, ou os apelidos. Se tu vieres à Fuzeta e perguntares pelo Manuel Muchacho, poucos te podem ajudar, mas se perguntares pelo Manel “Gato”, não tarda nada estás a bater-me à porta. – O velhote recusou o chá. Eu e Leonor trocámos um olhar: alcunhas…
- Deixe-me adivinhar, o nome que me chamou…
- Uma alcunha. – O homem olhou para a rua através do postigo da porta. – De um rapaz que eu conheci, morreu novo, no mar. – E virando-se para mim: - Tu tens o olhar dele, mais mortiço, mas são os mesmos olhos, reconhecia-os em qualquer lugar.

Aquelas palavras secaram-me a boca. Quis falar mas os lábios estavam colados. A chávena que tinha na mão chocou com o pires e entornei algum do chá.

- O meu pai era daqui, chamava-se Celso João Vicente. Eu não o conheci, quer dizer, ele morreu novo e depois a minha mãe… eu fui adoptado. Ando à procura de algo sobre eles.

A mulher posou a chávena e colocou uma mão no peito e outra na boca. Abanou a cabeça várias vezes enquanto me olhava. Manuel “Gato” baixou os olhos, segurando a bengala, bateu com ela suavemente no soalho, como se estivesse a calcar algo.

- Eu sempre te disse Maria, não disse? – A mulher não respondeu. – Fazes-me falar de coisas que estão caladas há muito tempo, recordar tempos de tristeza, de sofrimento. O tempo mais difícil da nossa terra. Muita miséria. – Após limpar a testa a um lenço que tirou do bolso das calças, Manuel prosseguiu. – Traz-me um copo de água, mulher, que me seca a boca, lembra-me o sal… você tem ideia do que é ir daqui para a Terra Nova, enfrentar aquele mar, num veleiro? Eram temporadas de seis meses em que se trabalhava como um escravo. Eram vidas demoradas, se havia vento, andava-se, mas se não havia…
- Imagino. – Não consegui dizer mais nada.
- Eu só fiz uma campanha com o teu pai, era bom pescador, um primeira linha, havias de um ver num dóri, a pescar… - Bebeu um gole de água. – Mas aquele sangue dele, fervia-lhe nas veias, ia contra tudo e contra todos e depois, claro, o Grémio passava-o logo para a lista de dispensas.
- Como assim?
- O Grémio era uma cambada de filhos da mãe, o que julgas? Eram todos do partido do regime, tinham o poder e mantinham-no pela repressão. O teu pai revoltava-se contra eles, barafustava, batia-lhes o pé e sofria por isso. Funcionava assim, se te portavas bem, tinhas navio onde trabalhar, mas se te portasses mal ias logo para a lista de dispensas. Podias estar uns meses sem trabalhar e não te subiam de categoria. O teu pai foi muitos anos partidor de cabeças, não o deixavam passar dali.
- Partidor de cabeças? – Perguntei eu.
- Já viste algum bacalhau à venda com a cabeça? Então, alguém tinha que lha tirar… e o fígado também. Era das categorias mais baixas. Saía ao teu avô.
- Esse conheci eu bem, éramos muito amigos. A alcunha dele era o Corneta.

Leonor não conseguiu evitar uma gargalhada. Depois ficou muito vermelha e quase se afundou no sofá.

- Em 37 houve aqui uma grande revolta contra o Grémio, com o teu avô à cabeça. A malta recusou-se a inscrever. Sabes o que eles faziam? Enquanto um homem estava no mar iam adiantando dinheiro às mulheres… pudera, ganhava-se uma miséria e os tostões não davam para nada. Passava-se fome. Bom, quando a gente chegava e ia receber, eles descontavam logo o dinheiro adiantado… ficávamos logo sem nada. Era assim que nos controlavam, percebes? – O homem transpirava abundantemente, era visível a perturbação em que estava. – Um dia a malta fez-lhes frente. Foi o bom e o bonito aqui, veio para aí GNR a montes, de cavalo, cercaram isto. Muitos tiveram que fugir para a serra. Um deles, a cavalo, devia ser o chefe… tinha uma corneta e andava sempre a soprar naquilo enquanto os outros nos davam porrada. O teu avô foi-se a ele e quase o matava de porrada com a dita da corneta. Está bem de ver que a partir daquele dia ficou o corneta.
- Mas ele morreu no mar, não foi?
- Desgraçado… foi torpedeado em 42 por um submarino, no tempo da guerra. Estava a bordo do Maria da Glória. Perderam-se 36 homens, 12 aqui da Fuzeta. – O homem acabou com a água. – Traz-me mais Maria. Sabe, eu devia de estar a bordo daquele barco… mas tinha partido uma perna a descarregar peixe uns tempos antes… coisas da vida… o teu pai saía a ele…
- Então conheceu a minha mãe, a Alda. – Interrompi eu, sentando-me na ponta do sofá.
- Esteve nesta sala muitas vezes. – Quem respondeu foi a velhota. Olhava para mim com os olhos húmidos.

A minha mãe, ali, naquela sala onde eu agora estava. Finalmente, algo de palpável em relação a ela, uma espécie de prova física que a tornava real. Talvez fosse disso que eu andava à procura, algo que me convencesse definitivamente de que tinha tido uma mãe biológica – a minha existência nunca me tinha chegado (não sabia explicar melhor esta sensação na altura dos acontecimentos, e continuo sem saber explicar hoje).
Naquele momento, tendo diante de mim duas pessoas que a tinham conhecido, estando num sítio onde ela estivera, senti que a minha busca tinha chegado ao fim.

– E tu também estiveste, segurei-te muitas vezes nestes braços. – A mulher estendeu-os para mim.
- E se queres que te diga, nunca acreditei que ela tivesse morrido. – Manuel “Gato” tinha a bengala apontada à minha cara. Eu senti um grande enjoo.

segunda-feira, maio 15, 2006

Uma Vida Demorada (8)

Fiz um esforço para não levantar a cabeça, não queria enfrentar aquele olhar.
Acabei por ceder e a imagem que me foi devolvida era a de um homem cansado. Com o rosto macilento, o cabelo em total desalinho e os olhos raiados de vermelho, não havia dúvidas: aquela tinha sido mais uma noite mal dormida.
Reparei como, em poucas semanas, tinha muitos mais cabelos brancos. A pele estava amarelada, fosse por causa da luz da casa de banho me chegar filtrada por um plástico opaco, fosse por estar a ficar doente.
Lavei a cara com força, como que tentando apagar esses traços do meu rosto e fiz a barba o mais rapidamente que pude.

Tinha, mais uma vez, acordado em sobressalto, a ser puxado para o fundo por aquela mão grande e forte.
Na banheira, debaixo de água tépida que caía sem força, recordava pela enésima aquela sensação de afogamento. E foi então que me lembrei de algo: na noite passada o sonho não tinha terminado aí, a última imagem já não era a da mão agarrada ao meu tornozelo desaparecendo nas profundezas do oceano, desta vez eu levantava a cabeça e olhava para a superfície. Conseguia ver uma luz forte, como se o sol, entretanto, tivesse conseguido vencer a tempestade e brilhasse no céu. Parecia mostrar-me o caminho mas eu continuava a ser levado para o fundo. Algo que entra na água, vejo uma sombra à superfície… mas mais nada.
Saí do banho, no quarto a primeira luz do dia rompia por entre o cortinado mal fechado. Um fio de luz foi pousar no rosto adormecido de Leonor.
Peguei na câmera fotográfica, precisava ver se tinha alguma fotografia da noite passada ou se tudo também não teria passado de um sonho. Liguei-a e ali estavam, fotos do fogo, sombras, vultos escuros que pareciam pairar sobre as chamas. Tudo aquilo tinha acontecido. Ainda bem, precisava de alguma realidade, por estranha que fosse. No meio de tanto sonho, de tantas suposições, de tantas dúvidas, necessitava de algo concreto.

- Bom dia, lindinho. – Leonor tinha acordado mas apenas conseguia manter um olho aberto.
- Olá jeitosa.
- Dormiste bem?
- Não e tu?
- Sonhei bastante…

Tomámos o pequeno-almoço numa pastelaria junto à Ria Formosa, o dia prometia ser quente. Leonor tinha vestida uma blusa azul, sem mangas. Peguei na câmera e tirei-lhe uma foto ao ombro. Gostava dos ombros dela, dos pequenos sinais que o povoavam, era uma espécie de território a ser conquistado.
Ela observava distraidamente as duas fichas de inscrição de pescadores que Alberto me tinha enviado. Tinha conseguido identificar dois homens que tinham feito parte da mesma tripulação que o meu pai. Caso fossem vivos, teriam hoje mais de 80 anos. Eram a nossa única pista.

- Tens algum plano? – Perguntei eu.
- Tenho. – Levantou-se e dirigiu-se ao balcão, onde uma rapariga ainda nova e com aparelho nos dentes ajeitava uns croissants num tabuleiro.
- Conhece estas pessoas, os nomes? – Leonor estendeu as fichas à rapariga.
- Uh… não… não conheço. Quem são?
- Antigos pescadores aqui da Fuzeta. Estamos à procura deles.
- Ah, então deviam perguntar no porto de pesca.

O olhar que troquei com Leonor dizia tudo: claro!

A meio da manhã, o porto de pesca tinha já pouco movimento. Os barcos tinham chegado bem cedo, o peixe descarregado e vendido na lota.
Dirigimo-nos a um homem de meia-idade, cigarro ao canto dos lábios, que lavava o chão com uma mangueira.

- Não conheço ninguém, mas eu não sou de cá. Vocês têm de cá vir ao fim da tarde, quando a malta estiver aí a preparar as artes, antes de embarcarem. Agora está tudo a dormir. Mas olhe, até lá, o que podem fazer é ir aos cafés, no bairro dos pescadores, há sempre por lá uns velhotes sentados, esses é que lhe podem valer.

Agradecemos-lhe a informação e o refresco: com a mangueira sempre a deitar água, tinha-nos salpicado as pernas todas.

- Isto faz-me lembrar uma qualquer aldeia alentejana. – Leonor referia-se à parte mais antiga da Fuzeta, habitada predominantemente por pescadores. Era um vasto conjunto de casas pintadas de branco, de piso único ou, quando muito com dois pisos.
Percorremos vários cafés, mas sem sucesso, ninguém conhecia aqueles homens. Um velhote ainda nos disse que um dos nomes lhe era familiar, mas que nada sabia que nos pudesse ajudar.
Acabamos por almoçar no Café Sport Lisboa e Fuzeta. O nome fez-me pensar no trabalho, nas oportunidades que estaria a perder, mas o Arroz de Marisco foi o consolo de que precisava.

- Acabou de entrar alguém que o pode ajudar. – O empregado de mesa falava-me quase ao ouvido, como se me estivesse a dizer um segredo. – É um antigo pescador, se alguém conhece essas pessoas, é ele. Está sentado na outra sala, à entrada.
Agradeci e dirigi-me ao velhote, que estava sentado numa mesa junto à porta do café. De cabeça baixa e boina enterrada na cabeça, parecia dormir.

- O senhor desculpe, posso dar-lhe uma palavra? – O homem não se mexeu. Voltei a insistir, mas nada.
- Vai ter que falar alto, ele está muito surdo e… – O empregado, no balcão, girou o indicador direito várias vezes junto à têmpora.

Ofereci-lhe uma bebida, gritei e mostrei-lhe as fichas de inscrição. Falava a custo e muitas vezes sem nexo; claramente, a saúde mental do homem já não era a melhor.
Falou-me da pesca, do mar, das dificuldades da vida de pescador. Por fim, disse-me que conhecia os dois muito bem, que tinham sido bons pescadores, bons homens, que tinham morrido há uns anos.

- E o Celso Vicente, conheceu-o? – Estive quase a agarrar no velhote para lhe sacudir a resposta.
- As ondas… grandes, aquilo metia medo a qualquer pessoa, digo-lhe eu…
- Sim, eu sei, mas e o Celso Vicente?
- Também morreu, esse.
- Sabe alguma coisa da mulher dele, da Alda?
- Era teso, ele… vidas muito tristes as nossas, digo-lhe eu… muito mar, era mar a mais…
- A Alda, sabe alguma coisa dela?
- Morreu, não morreu? Não vou à beira mar há anos, farto do mar…

Acabei por desistir. No dia seguinte iríamos embora e não tínhamos conseguido nada. Tinha sido uma má ideia ter ido à Fuzeta, aliás, todo aquele projecto de recuperação do passado revelava-se uma má ideia.
Saímos do café e o tempo tinha mudado abruptamente. Continuava abafado mas o céu estava coberto por aquilo que parecia ser uma única nuvem. Não se lhe via principio nem fim. Havia algum vento.
Uma estranha luminosidade emprestava um ar algo surreal às ruas do bairro.

- Para onde fica o mar, sabes? – Leonor olhava em redor, com o cabelo esvoaçando levado pelo vento. – Estamos perdidos?!
- Isto é pequeno demais para nos perdermos, anda, é por aqui. Não tinha a certeza, mas sentia que o caminho era naquela direcção.

Ao dobrar a esquina, vimos uma senhora de idade sentada à soleira da porta. Tinha o que pareceu ser uma colcha por cima das pernas.
Leonor aproximou-se, eu fiquei a fotografar algumas portas e janelas que achei curiosas.

- … chama-se renda de gancho. – A mulher explicava o que fazia a Leonor que, de cócoras, apreciava o trabalho. – É um tipo de renda aqui da região, mas em desuso, a mocidade não lhe pega, não tem paciência.

Eu tirava algumas fotos às duas, que pareciam não dar pela minha presença. A porta entreabriu-se e um velho apareceu. Estava vestido com uma camisa de xadrez, típico dos pescadores. Apoiava-se numa bengala.
Desceu vagarosamente os dois degraus e aproximou-se de mim.

- Esses olhos são do Pirola. – Disse-me ele.

quinta-feira, maio 11, 2006

Uma Vida Demorada (7)

Levantei-me de um pulo. Estava a dormir profundamente mas, quando os meus pés tocaram na alcatifa, sentia-me totalmente desperto.
Peguei na mochila onde transportava o material fotográfico, na carteira e preparava-me para juntar a roupa, que estava espalhada pelo chão, para fugir quando reparei em Leonor, parada em frente à porta envidraçada que dava acesso a uma pequena varanda. Estava estranhamente calma.

- Ali em cima, anda ver, parece ser no adro da igreja. – Vestida com o negligé cinzento que trouxera para me impressionar (sem que tenha sido necessário) e banhada pela luz artificial vinda do exterior, tinha uma aparência algo fantasmagórica. – Um incêndio, João!

Estaria eu a sonhar?

- Pensei que o incêndio era aqui, na Pensão. Assustaste-me.
- Não tonto, na rua.

De facto, não muito longe, no cimo da colina, bem junto à igreja, viam-se clarões de um incêndio.
O jornalista que há em mim assumiu o comando.

- Vou lá ver. Pode ser uma notícia e notícia com imagens vale mais.
- Vou contigo.

Argumentar com Leonor sobre os perigos de um incêndio seria inútil. Vestimo-nos rapidamente e, com a mochila ao ombro, saímos. Eram 23h00.
O caminho foi feito em passo estugado. Sentia-me cheio de energia, entusiasmado. De mão dada, quase corríamos.
Aproximamo-nos da igreja pelas traseiras; o incêndio era mesmo no adro, do outro lado do edifício. As sombras e os reflexos das chamas reflectiam-se nas casas vizinhas. Detivemo-nos.

- João, não se ouvem sirenes, os bombeiros ainda não chegaram. – Disse Leonor, algo ofegante. Tinha razão, tudo estava calmo, não se via ninguém na rua, não se via nenhuma da agitação que seria de esperar junto de um incêndio.

Dobrámos a esquina da igreja e elas ali estavam. Eram algumas dezenas. Estavam em silêncio, formando um círculo largo que ocupava todo o adro da igreja. As suas sombras tremeluzentes alongavam-se pelo chão de pedra gasta, formando uma espécie de cerca alta.
As pessoas – na maioria mulheres idosas que, em silêncio, pareciam rezar - contemplavam uma enorme fogueira que ardia com alguma violência, projectando altas labaredas na direcção do céu onde, em quarto crescente, a lua parecia apreciar a cena.
Troquei um olhar com Leonor, também ela não compreendia o que estava perante nós.
Instintivamente, tirei a câmera fotográfica da mochila, ajustei a exposição, a velocidade de obturação, encostei-a à cara e pousei o dedo indicador direito no botão de disparo. Não consegui, não tinha força no dedo. Senti estar a invadir algo a que eu não pertencia, algo que não compreendia. Não fui capaz de fotografar.
Leonor pegou-me na mão e levou-me até junto de uma idosa, toda vestida de preto que, mais afastada do círculo de pessoas, observava as chamas. Estas, reflectidas no seu rosto, davam vida às rugas profundas de uma vida vivida. Havia dor naquela expressão de pedra. Os olhos pareciam deitar fogo e não absorvê-lo.

- A senhora desculpe, mas pode explicar-nos o que se passa aqui? – Leonor apertava-me a mão com força, num misto de medo e atracção por aquela figura.
- Não sabem que dia é hoje? – Respondeu ela num tom de voz calmo, sem tirar os olhos do fogo.
- Hoje… não… quer dizer, para além de ser 16 de Junho?
- Não sabem da lenda da Nossa Senhora do Carmo…
- Não.
- Eu conto-vos, é importante ficarem a conhecê-la. – Eu sentia dificuldade em me concentrar, sentia o calor da fogueira queimar-me o rosto. A mulher contou-nos então a lenda.

Diz o povo que, muitos anos atrás, se levantou um forte temporal quando os pescadores se encontravam na sua labuta, no alto mar; em terra, as mulheres, desesperadas, fizeram uma enorme fogueira no adro da igreja, ponto mais alto da povoação, procurando orientar os seus homens no caminho certo de regresso.
Dos barcos no mar alto, os pescadores viram a luz distante e a imagem de Nossa Senhora do Carmo, que os acompanhou até chegarem sãos e salvos a terra firme. Tudo isto se terá passado num dia 16 de Junho, e até hoje faz-se anualmente a fogueira no adro da igreja, honrando a sua padroeira. É também o ponto mais alto dos festejos da Fuzeta, que decorrem de 1 a 17 de Junho.

- É uma lenda bonita. – Afirmou Leonor.
- É mais do que isso. – A mulher mantinha o olhar fixo no fogo. Nós nada dissemos, ambos olhávamos na mesma direcção que ela, tentando perceber o que via. – Não é para o fogo que olho, é para o mar, ao fundo. Perdi para ele o meu homem há muito tempo e todos os anos, neste dia, venho aqui na esperança que ele, onde quer que esteja, veja o lume. Me veja a mim, que nunca o esqueci.

Após um breve silêncio, apenas interrompido pelo som do crepitar da lenha na fogueira, continuou: - Viste à procura de respostas, mas não é tempo delas ainda. Antes disso vais ter que te encontrar a ti próprio.
- Posso tirar-lhe uma fotografia? – Disse-lhe eu, não dando importância ao que ela dizia.
- Não adianta. De mim nada ficará.

Voltei a ter a sensação de que, a qualquer momento, iria acordar, que tudo aquilo era um sonho. Agora, já não sonhava com o meu afogamento no mar alto, em vez disso, ardia naquela fogueira.
Peguei de novo na câmera. Olhei para o lado mas a velhota já lá não estava, tinha desaparecido.


Retirei o texto da lenda daqui - de tão bem resumido, não consegui resumir mais.

segunda-feira, maio 08, 2006

Uma Vida Demorada (6)

Antes da partida para o Algarve, contactei Alberto Cosme, tinha um favor para lhe pedir.
Foi entregue ao Museu Marítimo de Ílhavo valiosa documentação referente a seis décadas de actividade de dois organismos criados pelo Estado Novo e que controlavam o negócio da pesca do bacalhau: a Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau e, mais tarde, o Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau. São 140 dossiers com 21.000 declarações para fins de inscrição no Grémio, fotografias, bibliografia variada, listas de navios com apuramento das pescas, recortes de jornais e 60 cartazes de grandes dimensões.
Alberto tinha-me mostrado a ficha de inscrição do meu pai. Dela consta o percurso de cada homem: os navios, as datas, as categorias que cada um ia ocupando na embarcação (moço de convés, verde, pescador, imediato, capitão), os dados pessoais e uma foto. Nela, o meu pai vestia o que seria o seu único fato; estava muito bem penteado e olhava directamente para quem o observasse, nos lábios, um ligeiro sorriso.
Comentei com Alberto que aquele homem, com aquele olhar, devia impor respeito. Teria sido, no seu tempo, um líder.

- Veja aqui na ficha, ele tinha a categoria de pescador. Com a idade e experiência de mar dele, se fosse um líder nato já teria ascendido a imediato. – Respondeu-me Alberto, ficando um pouco atrapalhado com o comentário. Ainda tentou justificar-se mas eu descansei-o, não me tinha melindrado, ele teria, por certo, razão. Erro meu, que tenho a mania de interpretar as fotografias.

- Dr. Alberto, fala João Vicente, como vai?
- Olá, estou óptimo, e você, descobriu mais alguma coisa?
- Não, nada, mas decidi ir até à Fuzeta fazer umas perguntas.
- Óptimo, óptimo, isso é fantástico, fico a torcer por si.
- Estou a ligar-lhe porque preciso de um favor seu.
- Diga lá.
- Bom, queria pedir-lhe se, através das fichas de inscrição no Grémio, você me podia dar uns quantos nomes de pescadores que possam ter trabalhado com o meu pai, estado nos mesmos navios… não sei se é viável.
- Vou ver isso, mas não sei se teremos sucesso. O seu pai já estava há uns anos no Aliseo e, como as tripulações tinham tendência a não mudar muito, tiveram todos o mesmo destino. Mas eu vou procurar e envio-lhe por mail cópias das fichas, já as temos digitalizadas.
- Isso seria excelente. Nem sei como lhe agradecer este trabalho todo.
- Não se preocupe com isso, de alguma coisa eu me hei-de lembrar. –Soltou uma sonora gargalhada. – Para já faça-me também um favor.
- Só se não puder.
- Pare de me chamar doutor.

Antes de ir, quis também ficar a conhecer um pouco melhor a Fuzeta. À falta de melhor ideia, procurei na Internet.
Fiquei a saber que o nome deriva de Fozeta, diminutivo de foz, o que teria tido origem no facto de ali, em tempos idos, ali desaguar um ribeiro. Desconhece-se a data em que ali se terá começado a constituir um aglomerado populacional mas, na época das Descobertas, é conhecida a participação dos seus pescadores nas caravelas dos irmãos Corte-Real, participando assim na descoberta da Terra Nova. Talvez por isso, foram dos primeiros portugueses a aventurarem-se nesses mares para a difícil pesca do bacalhau.
Fiz um brilharete com estas e outras informações durante a viagem. A Leonor estava espantada, via-me interessado. Não o disse, mas sei que estava a adorar cada minuto daquela aventura. Não por ela em si, que não era grande aventura, mas pelas diferenças que ia notando no meu comportamento e que ela atribuía a toda aquela situação.

Parámos à entrada da Fuzeta, no snack-bar pastelaria Moby Dick, para café, água e indicações para o cemitério. Não nos demorámos, o cemitério ia fechar em breve.

- Alda das Dores Saraiva? Esse nome não me diz nada. – O responsável pelo cemitério coçava a grande cabeça, cheia de cabelos brancos. Tinha um sotaque algo carregado. – Tem a certeza que ela aqui está sepultada?
- Bom, na verdade, não tenho, julgo que sim, era aqui que ela vivia, foi aqui que morreu.
- Isso foi quando?
- 1969.
- Deixe-me ver no arquivo. – O homem dirigiu-se a um móvel metálico com várias gavetas e abriu a de baixo. De cócoras, ia revolvendo papéis e soltando exclamações imperceptíveis. Após alguns minutos, ergueu-se. – É como lhe digo, não temos cá ninguém sepultado com esse nome.
- Nenhuma Alda?
- Nenhuma Alda!

Leonor ainda sugeriu que fossemos procurar campa a campa, mas era tarefa inútil. Ali não havia nada que nos pudesse ajudar.

- Vamos procurar as pessoas das fichas que o Alberto te enviou, João. Vais ver que alguém sabe de alguma coisa.
- Mas não hoje. Estou cansado, vamos procurar um sítio onde passar a noite, só me apetece tomar um longo banho.

Não há muito alojamento na Fuzeta, não é terra de turismo, apesar de estar junto ao mar. É, ainda hoje, terra de pescadores.
Indicaram-nos a Pensão Liberdade. Rejeitei a ideia, pensões e Leonor não combinavam, iríamos ficar a Olhão, mas ela não gostou da minha observação e fez questão de que ficássemos lá instalados. “Só precisa de ter uma casa de banho no quarto e estar asseada”. E estava, o asseio era irrepreensível.
A minha ideia de um banho demorado a dois é que teve que ser abandonada, não cabíamos os dois na banheira, nem com toda a boa vontade do mundo.

Jantámos cedo, junto ao mar, cada um o seu bife: eu de atum, ela de espadarte. Quase não falámos durante a refeição, eu porque sou calado por natureza, ela porque sabe disso. O restaurante apenas tinha mais três mesas ocupadas, havia uma certa calma, uma paz que se foi instalando naquele final de noite de Junho e que me foi embalando para um estado de tranquilidade que há muito não sentia.

- Gosto tanto desta música. – Eu ainda não tinha prestado atenção à música ambiente. Leonor tinha um brilho muito especial nos olhos.
- É Bruce Springsteen, não é? – Perguntei.
- Should I Fall Behind… é uma bonita canção de amor, não achas?
- Sim, ele tem músicas óptimas.
- Queres dançar comigo?

E eu, contrariando cada impulso do meu corpo, aceitei. Pedi ao empregado que colocasse a música do início e ali ficámos, os dois, agarrados, quase sem nos mexermos, no meio das mesas, perante o sorriso de clientes e empregados.
Saímos do restaurante directos para o quarto. Havia em ambos uma necessidade que não podia esperar mais. Fizemos amor como se fosse a primeira vez… como se fosse a última vez, não sei bem. Sei apenas que foi de uma intensidade que eu desconhecia existir. Nunca tinha sentido tanto.
Na Pensão Liberdade, na Fuzeta.

Fui acordado pelos gritos de Leonor: - Fogo, João, fogo! Há um incêndio ali em cima.

terça-feira, maio 02, 2006

Uma Vida Demorada (5)

A minha primeira reacção foi rejeitar a ideia. Já começava a arrepender-me de ter ouvido as gravações, quanto mais ir para o Algarve à procura de algo que eu nem sabia o que era.

- À procura de ti, João. Lembras-te? É disso que se trata, das tuas raízes, de encontrar algum descanso, alguma paz interior.
- Mas quem te disse que eu preciso disso? – Instintivamente, olhei para o armário onde guardava as garrafas. Tentei disfarçar, mas Leonor percebeu.
- Não te tentes enganar, pelo menos faz-me esse favor. Sabes bem o que eu quero dizer. Tu já não és uma criança e esta parece-me uma excelente oportunidade para fazeres algo por ti. – Veio sentar-se ao meu lado e agarrou-me na mão.
- Andas a ler muitos livros de psicologia.
- Ando é preocupada contigo há já algum tempo. Não sabes a alegria que me deste no outro fim-de-semana, com os meus amigos. Foi por esse João que eu me apaixonei e é dele que eu preciso.
- Estás a agarrar-te a algo muito ténue. Já reparaste que não temos absolutamente nada de concreto, que só existem suposições? Acho que estás a depositar demasiadas esperanças em algo que não está lá, numa espécie de pote de ouro no fim do arco-íris.
- Antes isso que nada. O que temos a perder, diz-me? Vamos passar um fim-de-semana ao Algarve e aproveitamos para fazer umas perguntas, se não der em nada, paciência, tiramos daí o sentido. Olha, eu não conheço a Fuzeta e gostava de conhecer o sítio onde nasceste.
- Eu próprio não conheço, não me lembro dos anos em que lá vivi. Há umas imagens na minha cabeça, mas nem sei se são recordações de algo real ou sonhado. E depois, vai ser difícil conseguir uns dias para lá ir.
- Desculpas, havemos de conseguir. João… eu vi como ficaste entusiasmado com a ida a Ílhavo e ouvi a emoção na tua voz quando me telefonaste a contar da gravação da tua mãe.

Leonor beijou-me na face e deitei a cabeça no colo dela. Ali fiquei, com ela a passar-me a mão pelos cabelos. Era algo de que sentia muita falta, Leonor tinha sido a primeira pessoa em cujo colo eu me lembrava de me ter deitado. É que, apesar de todo o carinho com que me tinha educado, a minha mãe adoptiva nunca me amara, sempre senti isso.
Sempre houve nela uma incapacidade de me fazer sentir seu filho, como se entre nós existisse uma barreira que ela não conseguia superar e que eu não conseguia entender. Pensando bem, eu nunca me tinha tentado aproximar verdadeiramente dos meus pais adoptivos. À medida que ia crescendo, fui-me remetendo para dentro de mim, sentia para dentro, desprovi-me de sentimentos. De alguma maneira, condenei-me à solidão, preparei-me para viver sozinho. E fiz um bom trabalho quanto a isso, só quando Leonor apareceu na minha vida, sem pedir licença, sem perguntar se podia, qual furacão, é que eu percebi duas coisas: o quanto eu me tinha tornado especialista em manter à distância quem me rodeava e como estava farto disso.
Mudar estava a ser difícil mas, ali no sofá, deitado no colo dela, a olhar para o céu através da janela, percebi que precisava de me esforçar. À minha maneira, eu amava aquela mulher.

Aquilo que eu mais gostava no Peugeot 407 SW da Leonor era o tecto panorâmico. De facto, era um carro “com estilo”.
Ela tinha conduzido em quase toda a auto-estrada e eu tinha aproveitado para, com o banco recostado no máximo, vir a apreciar as nuvens a passar a grande velocidade. Também a minha vida parecia estar a ganhar velocidade e isso assustava-me. Não conseguia deixar de pensar que havia algum propósito em tudo o que me estava a acontecer. Primeiro os sonhos e depois uma série de coincidências que me levavam agora para a Fuzeta.

- Acreditas em coincidências?
- Disparate João, isso lá existe.

Entre a Ponte Vasco da Gama e a área de serviço de Almodôvar, onde parámos, foram estas as únicas palavras que trocámos. Leonor sabia respeitar os meus silêncios e eu admirava-a por isso, não era com certeza tarefa fácil.
Pedi para ser eu a conduzir o resto do trajecto, não queria ver mais nuvens, não queria ver a minha vida a passar-me diante dos olhos. Essa ideia perturbava-me.
Entretive-me a procurar que razões válidas levam uma rapariga solteira, sem necessidade de fazer grandes viagens de automóvel, a comprar um carro daquele tamanho e preço. Por muito menos dinheiro, tinha comprado algo que satisfaria todas as suas necessidades de locomoção.
Subitamente, tive uma ideia: seria para compensar algo? Seria que; tal como certos homens, ela estaria a tentar compensar o tamanho de alguma parte da sua anatomia com o carro que comprou?
Um sorriso esboçou-se nos meus lábios e preparava-me para a provocar com uma pergunta quando ela se adiantou:

- Onde é que a tua mãe foi sepultada? – A pergunta apanhou-me desprevenido. Demorei uns segundos a responder.
- Perguntas bem mas não sei. Nunca me disseram e eu nunca quis saber.
- Lembrei-me disso. Provavelmente ela está na Fuzeta, devíamos ir ao cemitério, não achas? – Leonor falava num tom de voz descontraído, como se perguntasse o que haveríamos de jantar nessa noite. A ideia, a mim, incomodava-me.
- Nunca entrei num cemitério, sabes? Nem mesmo nos funerais dos meus pais adoptivos. Não fui capaz. Lido mal com a morte. – Passámos pela Via Verde da A2, em breve estaríamos na Via do Infante. – Deve ser outro trauma de infância, mas não fui mesmo capaz de ir aos funerais deles e sei que isso caiu muito mal junto da família. Acharam que fui muito ingrato, que não soube reconhecer tudo o que eles tinham feito por mim. Não foi nada disso, claro, mas fiquei com essa fama. A minha relação com eles, que já era pouca, passou a não existir, nunca mais vi ninguém.
- Nunca me tinhas contado isso.
- Não calhou e também não é assunto em que eu goste de tocar.
- Um dos muitos… mas fico contente por o fazeres agora, comigo. Contaste-me isso sem que eu te tivesse que arrancar tudo a ferros, como é costume.

Leonor tinha razão, sem dar por isso eu disse o que sentia… sem pensar no que dizia, sem medir as palavras. Fui sincero.
Estas últimas semanas estavam, de facto, cheias de novidades. O que faltaria ainda acontecer?