terça-feira, setembro 28, 2010

O Títere 3

a vida é pouca.

Disse ele, sumido, sem que o tivessem escutado.

o que foi que ele te disse?

Cassilda estava visivelmente divertida com o ar apreensivo com que Avelino entrara na loja, agora transformada em local de festa.

disse-me que aqui não entram complexos nem mágoas, que se quer divertimento em carne viva.

Ela riu-se.

não te conhece, foi a maneira de te desejar as boas vindas.

pois não, não conhece.

Acenando a alguém, Cassilda olhava já noutra direcção.

A loja não parecia uma loja. Cheia de uma luz amarela que tudo uniformizava num tom torrado, lembrava o décor de um filme antigo, cuja acção decorria em casa de uma família que vivia para lá da sanidade. A vertigem acentuou-se e fez ricochete na cabeça de Avelino. Havia em tudo aquilo, uma familiaridade que o deixou ainda mais inquieto.

Ocupando o espaço de uma forma aparentemente caótica, mobiliário de escritório confundia-se com móveis de casa; havia roupa pendurada em suportes horizontais, com rodas, que iam sendo mudados de lugar pelos convivas; televisores a preto e branco; marionetas, bonecas de porcelana e de pano vigiavam um pouco por todo o lado o decorrer dos acontecimentos; rendas de muitos tamanhos e formas serviam de base a telefones de disco – alguns ainda com o número da habitação de onde tinham vindo –, a despertadores, candelabros, molduras com gente antiga dentro e, pelo chão, sapatos de todas as formas e feitios ameaçavam rasteirar os mais incautos. Todo aquele ajuntamento de coisas passadas, rodopiava e se derramava em torrente sobre Avelino, que era agora um adolescente encolhido a um canto do seu quarto, enquanto no exterior se acendia furiosamente uma discussão. Tapou os ouvidos com as mãos e apertou com força.

Cassilda interrogava-o – mais com o olhar que com o sorriso – e ele deixou cair os braços.

aqui é tudo retro. Anos cinquenta, sessenta e setenta. Mesmo a roupa e os adereços. A música também, claro. Parece-te um bocado alta? Por acaso, eles até costumam ter o cuidado de não por o som muito elevado, para se conseguir ter uma conversa. É a tal preocupação de ser diferente, acho. O tema das festas, por exemplo. Hoje, celebra-se o facto de ninguém fazer anos, lembras-te? Estavam ali a dizer que em vez de bolo, vai haver pão.

Deu uma gargalhada.

parte-se um pão aos pedaços e partilha-se.

e se eu te disser que faço anos hoje?

a sério? Isso é o máximo! Vai ser uma galhofa. Deixa-me…

não faço. Estava só a… não sei, não percebo nada disto.

fazer anos está por demais valorizado. Tudo isto não passa de uma brincadeira, uma desculpa para nos juntarmos mas, se pensares bem, o que mereceria realmente uma celebração era o desfazer os anos.

é indiferente.

não é! Nunca caias nesse erro. Os anos só nos trazem velhice, decadência. Começa-se com as festas quando se é novo e depressa se tornam um hábito. Celebra-se sem se pensar no que se está a fazer. O estarmos mais perto do fim? Bah! Mas que digo eu?! Estou a dar-te cabo da noite. Anda, vamos beber alguma coisa.

Encontrando um tema de conversa, Avelino ia identificar a palhinha pela qual Cassilda sorvia a sua bebida, quando foi interrompido pelo grito estridente que uma rapariga, com uma cabeça muito redonda e protuberantes maçãs do rosto, soltou. Usava um vestido antigo, a rigor com o cenário.

cás!

cát! Estás linda, como sempre. Deixa-me apresentar-te o meu amigo. Avelino, Catarina, Catarina, Avelino.

Ela aproximou o rosto rechonchudo e ele estendeu a mão. Depois, ela estendeu a mão e ele o rosto.

Cassilda ria.

prazer, Lino. Não vos cheira aqui a…

Catarina inalou profundamente algumas vezes.

não é naftalina, mas ao mesmo tempo…

O olfacto guiou-a até Avelino. Sentiu o sangue subir-lhe à face, como se tivesse sido apanhada a fazer algo que não devia e a voz saiu-lhe um nada esganiçada quando perguntou,

como te sentes, já estás melhor?

sim, já passou.

Cassilda deu um grande gole, como que para não ter de dizer mais nada. Olhou para Avelino que, à tangente da conversa, hesitava entre o alívio de ter agora com quem dividir a atenção de Cassilda, ou a aflição de se ver envolvido numa conversa. Tudo isto misturado com o perturbador facto de ter sido tratado por Lino.

cada vez que penso nisso. Meus deuses!

Catarina rolou os olhos e fez uma careta. Continuou,

se fosse comigo, caramba, nem sei, mas acho que ficava a bater mal para o resto de todo o sempre.

não vamos falar disso. Olha, sabes alguma coisa de um pão que vão partilhar?

Outras conversas foram colocadas em dia e Avelino veio a revelar-se um excelente ouvinte. Muito antes do fim da festa, Cassilda convidou Avelino para sua casa. A voz dela estava fria como a noite, quando já na rua, e depois de acender um cigarro, lhe disse,

deves ter ficado a pensar naquela conversa de há pouco.

Ele não tinha.

A Cát, ela diz as coisas sem… Lembras-te de eu te ter falado naquela rapariga que morreu há umas semanas… que foi morta…

Avelino começou a suar abundantemente das mãos, enquanto um misto de excitação e pânico tomava conta dele. Não conseguiu pronunciar palavra.

fui eu quem encontrou o corpo.

Uma ténue expressão de pena aflorou o rosto dele. E só ao limpar as mãos nas calças se apercebeu da erecção.

quarta-feira, setembro 15, 2010

O Títere 2

Às dez da noite, aquela é mais uma das muitas partes da cidade em que toda a gente está apenas de passagem. Projectada a partir da entrada revestida a alumínio da “Pensão da Concha”, uma luminosidade torrada e cheia de dedadas, deixava a nu a falta de umas quantas pedras na calçada. A iluminação pública não chegava ao solo – de tão frágil, não conseguia cair; ficava, por um momento, a pairar junto às lâmpadas para depois ser levada pela aragem que soprava do rio. De mãos nos bolsos e o olhar cingido às crateras do passeio, reflectia sobre a necessidade ou não de ter trazido algo para oferecer a Cassilda; flores, ou…

Nada mais lhe ocorreu.

Apesar do desconcerto emocional, decorreram ainda duas horas, após o inusitado convite, sem que o sangue lhe tivesse dado tréguas. Aos poucos, e conseguindo encontrar algum aconchego no desconforto, acabou por serenar.

temos que te arranjar um nome,

Disse para o boneco. Sentado na cama, em frente ao reflexo de um homem nu e de uma criatura extraída à madeira, tentava ganhar algum tempo, para não ter de relatar o encontro, não fosse o convite apenas o produto da sua imaginação.

porque falas no plural?

Rodando a cabeça, a figura sentada ao seu colo fitava-o através de duas órbitas lascadas e já sem cor definida, de tão baças. Ao mesmo tempo, o queixo descaiu um pouco, revelando o que parecia ser uma cavidade sem fundo, ressequida e gretada. Talvez, em tempos, tenha estado vestido de marinheiro, ou com a farda de um colégio imaginado – a roupa que lhe haviam esculpido tinha-se tornado vaga e, sem cor, prestava-se agora a diversas interpretações. Talvez tivesse sido um palhaço.

eu respondo por ti,

Continuou o boneco,

tudo se resume à maneira como tentas escapar à solidão através de obsessões e de vícios e de como essas mesmas obsessões e vícios te deixam ainda mais só.

Deixou-o escorregar do seu colo. Na superfície polida à sua frente, viu com rara nitidez a imagem que a defrontava; não a reconheceu. Na sua cabeça, uma voz familiar fez ecoar a palavra salvação.

Era em redenção que pensava quando percebeu a presença de Cassilda, a seu lado.

deste bem com isto?

Caminharam em silêncio, embrenhando-se na neblina que subia do rio, até se deterem junto de uma loja onde, na montra, um casal de manequins pedia silêncio a quem passava. De perna cruzada e dedo indicador nos lábios, estavam sentados num sofá escarlate de aspecto antigo e usado, que lembrou a Avelino a casa onde crescera. Então, uma súbita neblina, mais espessa e mais da cor da cinza que a do rio, envolveu-o, deixando-lhe ficar uma vertigem quando se dispersou com a mesma furtividade com que chegara. Aquela era uma montra para um passado a que não havia absolutamente qualquer razão para regressar.

esta é a zona da cidade em que o abandono vive, sabias?

Cassilda sorria, por entre o fumo do cigarro que acabara de acender.

eu moro aqui perto.

Apontou sem direcção definida, com o queixo. O sorriso desfez-se e a sua tornou-se dura.

desculpa, estou a ser muito dramática. Dá-me para isto, às vezes. Digo umas coisas, assim muito… não sei… ponho um certo ar e… o que eu queria dizer é que esta parte da cidade, antes de o ser, era tudo areias movediças.

Atirou a beata para o passeio, soltando uma derradeira baforada para o ar.

não achas fascinante a ideia de estarmos a caminhar em cima de um chão guloso, que a qualquer momento nos pode engolir?

O seu rosto iluminou-se.

lembrei-me agora, soubeste da rapariga que foi encontrada morta lá perto da minha loja, naquele terreno baldio? Tinha dado jeito ao assassino que fossem areias movediças.

Arregalando os olhos,

credo, que coisa horrorosa que eu acabei de dizer, não te parece? Coitada da rapariga.

Retido nos manequins, Avelino manteve o silêncio.



e mais umas de Istambul

terça-feira, setembro 07, 2010

O Títere 1

Cheira a tira nódoas e trabalha numa fábrica de palhinhas. Se até há pouco tempo estes dois factos eram o que de mais significativo se podia dizer da sua existência, há agora a acrescentar o interesse pelo ventriloquismo e pela nova empregada de uma loja por onde ele passa no caminho que faz entre o trabalho e casa.
Forjar os objectos que permitem a ingestão de alimentos através de sucção, não deve ser actividade menosprezada. Só ele, tem a seu cargo dez máquinas, que produzem vasta e versátil oferta: palhinhas de inúmeros tamanhos, cores, feitios e funcionalidades; desde clássicas a articuladas, telescópicas e, recentemente, umas que o marketing baptizou de sensory por, supostamente, activarem as papilas gustativas, acentuando assim o sabor dos alimentos.
O cheiro que exala não se explica. Quem com ele tem de conviver – os colegas de trabalho – nunca o viram sujar-se no refeitório, durante as refeições, muito menos utilizar tira nódoas, mas todos concordam que o fedor que dele se desprende é a limpeza a seco que faz lembrar.
A tudo isto ele é indiferente e jamais fala sobre o seu trabalho ou sobre cheiros, nas escassas ocasiões em que se faz escutar. Ultimamente, ocupava parte importante do tempo livre com o bonifrate que adquiriu em segundo braço, num sítio de quinquilharia e restos. Na diminuta e árida divisão de casa em que se entrega ao sono, sentado à beira do colchão, em frente a um espelho de corpo inteiro que encostou à, de resto nua, parede, treina a arte da manipulação da voz, a falar com o boneco. Mas, nas últimas duas semanas, começou a pôr de lado algum desse imenso tempo desimpedido, para se dedicar à observação disfarçada, através de um canto da montra, da nova agente comercial d’ “O Reino do Aço Inoxidável”, loja especializada, onde não entram óxidos, e que vende para toda a cidade e concelhos limítrofes.
Reparou nela por mero acaso, que não é sujeito para desviar o olhar para os lados quando é em frente que quer ir. A verdade é que algo o incitou para aquela figura esguia e sorridente, que se movimenta com elegância e destreza por entre o atravancado desânimo das bancadas, armários e estantes em exposição. Ainda deu meia dúzia de passos a caminho de casa, mas acabou por voltar atrás e, o mais desapercebido que se conseguiu tornar, deixou-se ficar a olhar para ela. Desde esse dia, ao regressar do emprego, estaciona-se no mesmo canto do vidro, a contemplá-la, atrapalhado consigo próprio, com tanta sensação nova, tentando fazer sentido de tão estranho mistério em que se acha.
Nos fins-de-semana, o encerramento da loja não lhe impede o voyeurismo: se fechar os olhos com força, consegue vê-la ainda com mais nitidez, e então, deitado no chão glacial de uma qualquer divisão de sua casa, todo nu e quase imóvel, entrega-se ao consternado prazer de um priapismo que chega súbito e poderoso, e que, durante trementes horas, se impõem a todas as outras faculdades.

Absolutamente convicto da sua invisibilidade, foi com terror que a viu sair da loja, lesta e decidida, dirigindo-se a si, sem lhe dar tempo para se afastar ou sequer mascarar volumes embaraçantes.
Queres ir a uma festa?
Assim, sem mais! Ele, com o olhar desorbitado, engasgou-se e foi acometido de um ataque de soluços. Continuou ela,
eu e uns amigos vamos a uma festa de não aniversário.
Ainda soluçoso, lá conseguiu fintar a atrapalhação o suficiente para perguntar,
festa de não aniversário?
A rapariga respondeu com outra pergunta,
não te parece uma boa ideia para uma festa?
Num instante ficou marcada hora e local de encontro.
Depois de ter regressado à loja, voltou a sair,
chamo-me Cassilda.
Com a queda livre das ideias a provocar-lhe a intermitência das pálpebras, sussurrou,
Avelino.


(é suposto isto ter seguimento)

entretanto, umas fotos de Istambul, enquanto se tenta esquecer o acabado de ler