terça-feira, outubro 31, 2006

A Luz (parte 6)

O sol, já baixo e filtrado pela densa copa das árvores, pouco penetrava no jardim, dando à parte central do Largo da Luz um aspecto algo lúgubre.
O ruído da feira era, ali, abafado, como se viesse de um local distante. Dominavam os gritos das crianças, que por ali brincavam.
Um casal de namorados desocupou um banco de jardim, ao vê-los aproximar.

- Foram simpáticos. – Disse o velhote, a quem já começavam a doer as pernas e as costas. – Estou mesmo a precisar de me sentar.

Estavam mesmo atrás de um dos restaurantes amovíveis que alimentam os visitantes da feira. Sentados à roda duma mesa de plástico, os empregados de mesa faziam tempo até à hora do jantar jogando às cartas.
Um deles, rapaz para não mais de 18 anos, levantou-se ao ver passar duas raparigas – mais novas que ele.

- Cátia, dá-me lá o teu número. – Diz ele, aproximando-se.
- Outra vez, pá? Não dou!
- Vá lá…
- Não sejas chato. – Respondeu a Cátia, com um desdém mal disfarçado, afastando-se, de braço dado, com a amiga. Riam baixinho e falavam uma com a outra substituindo as palavras por olhares cúmplices, forjados em muitas conversas sobre rapazes.

- Ganda caramelo! – Gritou um dos colegas. Todos riram. – És um engatatão, és és.

O rapaz riu também.

Estranhamente, era ali, atrás da feira, que existiam algumas filas. No recinto da feira havia imensas pessoas, mas comprar o que quer que fosse não era tarefa demorada, enquanto que no jardim, com menos gente, beber água no repuxo ou utilizar as casas de banho, era algo bem mais complicado de se conseguir.
Estendendo-se a partir de uma espécie de pré-fabricado, ali colocado com o propósito de servir de casa de banho, uma fila de mulheres aguardava a vez. Eram várias as que protestavam pela demora.

- Não tarda nada, vou à dos homens… mas é que não tarda nada! – Exclamou uma.
- E o cheiro, já viram o cheiro?
- E ainda nem entrámos. – Respondeu outra.

Cátia e a amiga surgiram de novo, pelo mesmo caminho de há pouco. Nenhum dos jogadores de sueca as viu, entretidos que estavam com o jogo. Um contratempo para as raparigas, que foram obrigadas a se demorar por ali, até que alguém reparasse nelas.

- Cátia! - O rapaz apressou-se para perto das raparigas.
- Se quiseres, eu dou-te o meu número…

No banco de jardim, ambos sorriram.

- Estes miúdos são levados da breca, está a ver aquilo? – O velhote apontava com o cajado, interrompendo o silêncio com que tinham observado o movimento no jardim.

Um grupo de jovens, todos ciganos, escondia-se nuns arbustos, perto de um banco de jardim desocupado. Assim que um casal de idosos se sentou para comer cada um o seu gelado em sossego, logo eles vieram também sentar-se no banco. Dispararam mil perguntas ao casal: como se chamavam, como se tinham conhecido, se eram casados, de que sabor era o gelado, se moravam perto. As respostas não lhes interessavam, nem esperavam por elas, só lhes interessava a paródia, a aflição das suas vitimas.
O casal depressa se foi embora, para regojizo do grupo, que rebentou numa grande galhofa, para logo se esconderem de novo no arbusto, à espera de novas presas.

- Vir aqui fez-me recordar a minha mulher e o meu filho. – Disse ele pausadamente, olhando para a ponta do cajado. – A minha mulher deixou de viver quando o nosso filho morreu em Angola. Acho que nunca lhe perdoei isso… depois ela ficou doente e morreu uma morte desgraçada, sem forças até para se queixar. Eu fiz o mesmo, sabe? Morri com ela também, acompanhei-a, deixei de viver… passei a sobreviver… e só percebi isso hoje, à conta de uma gulodice de que até já me tinha esquecido que tinha. Foi uma rasteira, não esperava nada disto, mas a vida é assim, não é?

Não viu que a mulher comprimiu os lábios com força fazendo a boca rasgar-lhe a face num esgar.

- Gostava de lhe poder trazer o dia em que não se arrependesse de nada, o dia da tranquilidade da sua consciência. Gostava de ser eu a dar-lhe a certeza de que não há nada por que estar amargurado…. muitos de nós carregamos um peso cá dentro. – Apontou para o peito. - Algo que muitas vezes nem sabemos de onde veio, que não deixámos entrar, algo que, um dia, descobrimos instalado e que nos surpreende… eu sei o que é isso. - Pausa. - Não lhe consigo explicar isto mas, não o conhecendo há mais do que uns minutos, sinto que é um homem bom, que sempre o foi, e isso é que importa.

Estavam os dois calados, quando uma súbita rajada de vento levantou do chão as folhas secas e amarelecidas das árvores - as primeiras vitimas de um Outono há pouco chegado - e com elas as cartas do jogo da sueca, que rodopiaram no ar. Os empregados de mesa levantaram-se de um pulo e correram em todas as direcções, tentando apanhá-las.
O valete de paus veio cair no colo do homem.

- Sir Lancelot. – Disse-lhe ela.
- Como disse?
- Essa carta representa Sir Lancelot.
- Não sei quem é.
- O baralho de cartas foi inventado em França - não assim, como o conhecemos agora, um primeiro, do qual este deriva - e os quatro naipes pretendiam representar as divisões sociais da altura: copas para representar o clero, ouro para a burguesia, espadas para os militares e paus para os camponeses. Mais tarde, atribuiu-se significados específicos às cartas com figuras e o valete de paus era Lancelot. – Perante o ar algo confuso do seu interlocutor, sentiu necessidade de acrescentar: - Eu sou de História, interesso-me pela simbologia.
- E quem era esse tal do laçarote?

A mulher riu-se. Colocou a sua mão em cima da dele e disse-lhe: - Conto-lhe tudo, mas antes vou comprar uma fartura para cada um.
Após um segundo de hesitação, ele respondeu: - Aceito, obrigado.

* * *

Abriu o postigo. A noite começava a instalar-se e com ela chegavam os primeiros clientes do restaurante vizinho. Instalou-se no seu ponto de observação.
Uma ideia assaltou-lhe o espírito: durante muito tempo, tinha-se esquecido de olhar para dentro de si.


FIM


Encontram algumas fotos da feira, aqui.

quarta-feira, outubro 25, 2006

A Luz (parte 5)

- Posso oferecer-lhe uma fartura?

A música já tinha terminado há algum tempo, mas os versos continuavam a ecoar-lhe na cabeça. A pergunta fê-lo recuperar o tempo presente.

Em frente a si, uma mulher cujo rosto denunciava já ter passado a meia-idade, sorria-lhe. Os olhos dela, dois grandes círculos azuis-escuros, lembraram-lhe alguém.

- Desculpe, mas não a percebi.
- Perguntei se lhe podia oferecer uma fartura. - Não obteve resposta. O homem continuava preso nos olhos dela. – Ai, desculpe-me, já disse o que não devia… ofendi-o… - A mulher estava agora visivelmente atrapalhada. – Não me leve a mal, por favor… mas vi-o aí, encostado, tão triste, com esse olhar, e pensei que…

O homem olhou em redor. Estava quase encostado a uma roulotte de farturas, em frente ao palco.

- Não levo a mal. – Disse, sorrindo. – Imagino a figura que eu estava a fazer, para a ter levado a oferecer-me uma fartura.
- Pareceu-me muito triste, confesso… e depois, eu sou muito impulsiva, vi-o aí e… - procurou as palavras.
- Teve pena do velhote.
- Não me leve a mal, eu não queria… é que faço as coisas sem pensar… achei-o… abandonado, acho que foi isso, e com vontade de comer uma fartura, sem o poder fazer. Estão tão caras, acho isto uma vergonha, num país destes, um euro, onde é que isto irá parar… - Calou-se subitamente.

O velhote continuava a sorrir-lhe e ela corou, colocando os olhos no chão. Depois acrescentou: - É outro defeito meu, falo demais.

- Não se preocupe.
- Só me tem trazido dissabores, sou uma desastrada.
- Só estava a ser simpática. Sabe, na verdade eu estava era a ouvir uma música do Tony de Matos e distrai-me. Já não o ouvia há muito tempo. – Fez uma pausa. – Hoje não é fácil ouvir estas músicas de antigamente… quem é que quer saber disso?! As pessoas esquecem.
- Às vezes, somos nós que deixamos que se esqueçam de nós.

A mulher ia pedir mais uma vez desculpa e despedir-se, mas o velhote interrompeu-a com uma pergunta.

- Porque é que veio hoje à feira?
- Vivo aqui perto, é domingo, não tenho planos. – Respondeu ela, após uns breves segundos de hesitação. – Ainda telefonei à minha filha, desafiei-a a vestir o fato de treino que tem igual ao meu e a virmos as duas ao Centro Comercial Pimba, que é como ela chama a isto. – Acompanhou as palavras Centro Comercial com um gesto simultâneo dos dedos indicador e médio de cada mão. – Gosto de vir aqui ver as pessoas, ver o que elas compram, de observar o que aqui se passa. Sim, acho que venho cá pelas pessoas… mas ela queria dormir, sabe como é. – Concluiu com um encolher de ombros resignado.
- Eu vim cá de propósito para comer uma fartura. – Respondeu o homem, como se tivesse feito a pergunta anterior para que fosse ele a dar a resposta. – Estava em casa, com muita pena de mim… ao domingo é sempre pior, vá lá perceber-se isto… e vim cá comer a fartura para me animar. – Depois, como que adivinhando o que ela estaria a pensar, acrescentou: - Você tinha a sua razão…
- E chegou a comê-la?
- Não, não consegui… o preço… só serviu para ficar ainda com mais pena de mim.
- A felicidade numa fartura… - Deixou ela escapar num murmúrio.
- Não, não se trata disso.
- Eu não queria…
- Sabe de onde se vê bem a feira?
- Não faço ideia.
- É das traseiras.
- Das traseiras?
- Confia em mim, tem tempo para me acompanhar?
- Estou como o outro: tenho todo o tempo do mundo.

quinta-feira, outubro 19, 2006

A Luz (parte 4)

Uma miúda pequena, com o cabelo loiro apanhado em dois grandes totós, deu uma dentada numa grande nuvem de algodão doce, ficando com as bochechas cheias de açúcar. Riu-se, denunciando a falta de dois dentes.
Uma senhora de idade olhava com uma expressão interrogativa para um telemóvel, enquanto coçava a cabeça. Ajeitou os óculos no nariz, como se o problema fosse não estar a ver bem.
Um bebé começou a chorar quando o balão que segurava se soltou, partindo na direcção das nuvens, que corriam céleres.
Uma cigana ofereceu uma blusa cheia de palmeiras a uma senhora que não a queria comprar.
Dois rapazes de bicicleta, faziam uma gincana, tentando furar por entre a multidão.
Carregadas com imensos sacos, muitas eram as pessoas que pareciam caminhar sem sentido, como se estivessem perdidas num local que desconheciam.

À sua volta tudo parecia continuar como se nada de estranho se estivesse a passar. Cada qual indiferente à pessoa do lado, aos acontecimentos
Até que, a pouco e pouco, o ruído deu lugar a rumor, depois a um sussurro.
As pessoas deixaram de ter pressa e pararam.
As nuvens perderam velocidade.
Os pássaros pousaram.
As ciganas sentaram-se.
O óleo que fritava farturas deixou de borbulhar.
Os pregões, até então berrados em alta voz, cessaram.

Uma mulher, com um boné velho e gasto, onde ainda se podia ler “queremos mentiras novas”, retirou um lenço branco da mala que trazia ao ombro e começou a acenar com ele.
A atenção de todos concentrou-se no mesmo local.
A Santa entrou no Largo da Luz pela Rua da Fonte, lentamente, mas sem conseguir evitar alguns solavancos. A certa altura, pareceu que ia cair.
Com imensas pessoas à sua frente, o velhote não conseguia ver bem. Pareceu-lhe uma coroa, aquilo que ela trazia na cabeça. Segurava no braço esquerdo uma criança pequena. O Menino Jesus, por certo. Tinha uma expressão serena.
A mulher à sua frente continuava a acenar o lenço mas já não olhava a Santa, tinha até os olhos fechados. Com o corpo curvado e a cabeça baixa, parecia rezar. Naquela posição, parecia que era ela que suportava o peso da imagem que passava.
O velhote conseguiu então ver o cortejo que participava na procissão da Nossa Senhora da Luz.

A última vez que ali tinha estado tinha sido precisamente no dia da procissão. Tentou recordar-se há quantos anos isso tinha sido. Muitos.
Tinha ido acompanhar a mulher, devota da Senhora da Luz, que já estava muito doente nessa altura. Sabiam ambos que já pouco tempo tinha de vida, apesar de nunca terem falado sobre isso.
Ainda hoje achava que todo o esforço que ela fez para estar na procissão, foi para poder encomendar a sua alma, para pedir à Santa que intercedesse por ela junto de Deus.
Depois da morte do único filho no Ultramar, ela nunca mais tinha sido a mesma pessoa. Juntamente com o filho, tinha morrido a sua vontade de viver, a luz que lhe iluminava o rosto a toda a hora, em qualquer situação.
Ele tinha conseguido sentir raiva pela morte do filho, tinha gritado, chorado, dado murros na parede, mas ela não, nunca chorou, nunca desesperou; apenas se deixou ficar, enquanto a vida se escapava de dentro de si.
Nos anos após a morte dela, culpou-se por nunca ter falado com ela, por se ter limitado a assistir, por ter fingido que era assim que as coisas eram…

Foi então que percebeu algo. Sentiu um grande aperto no peito. Quis sair dali imediatamente mas não conseguiu, eram muitas as pessoas à sua volta e ninguém estava interessado nele.

- Por favor, por favor… - ia ele dizendo, tentando que o deixassem passar.

Por fim, a Santa recolheu à igreja e a multidão dispersou rapidamente, voltando à azáfama de há poucos minutos atrás. Dir-se-ia que aquela pausa nunca tinha acontecido, tal era o afã com que compradores e vendedores regressaram às suas tarefas.
O velhote deambulava pelo largo. Parecia perdido, sem atinar com o caminho de volta.
De um pequeno palco improvisado, onde apenas estava um microfone e uma grande coluna, saiu um ronco grave, seguido de um guincho ensurdecedor. Depois estática e, quando o velhote já se afastava, uma música que o fez parar. As palavras eram-lhe familiares.

O destino marca a hora
Pela vida fora
Que havemos de fazer
O que rege a sorte agora
Foi escrito outrora
Logo ao nascer

O relógio marca o tempo de viver
Todos nós somos iguais
Se o destino nos condena
Não vale a pena
Lutarmos mais

E depois conseguiu cantar o resto da letra, para dentro, para si.

O passado nunca volta,
podes crer
O futuro não tem dono
Toda a flor por mais
bonita há-de morrer
Quando chega o seu Outono
Temos hoje p’ra viver toda uma vida
O amanhã, que longe vem!
A saudade está escondida
Num destino por medida
P’ra nós dois e mais ninguém

O relógio marca o tempo de viver...

quinta-feira, outubro 12, 2006

A Luz (parte 3)

Era o último domingo de Setembro e estava muita gente no Largo da Luz. Os feirantes, conscientes de que era o derradeiro dia forte de vendas, apelavam a toda a sua experiência e sabedoria para escoar a mercadoria.

- Oh dona, escolha! Olhe’ma cólidade do material. Isto é tal qual o da loja.
- Aproveitem agora, qu’é tudo a 5 éros!
- Vá lá minha gente, qu’eu na quero levar a mercadoria pra trás…

A Policia Municipal observava com candura a venda de material contrafeito, que a missão deles ali era apenas a de zelar pelos comportamentos.
O velhote olhava para uns balões de várias formas e feitios que, de tantos serem, pareciam a copa de uma árvore multicolorida. Agitavam-se indolentemente, empurrados pela brisa ligeira. Esperavam a criança que não aparecia. Os fios que os prendiam a uma grande botija de hélio eram os ramos e a botija o tronco.
O homem olhava mas nada via. Antes, pensava nos duzentos escudos que custava a fartura. Era essa a medida da sua desadequação ao mundo em que vivia. Tinha pensado em comprar meia dúzia delas e afinal… Há quanto tempo não saía do seu bairro? Há quanto tempo não comprava algo pura e simplesmente para o seu prazer?
Não raras vezes, esse dinheiro dava-lhe para comer durante mais de um dia; comia uma sopa e um bocado de pão com o que calhasse. Não que tivesse forçosamente de ser assim, não vivia em tão grande aperto, apenas aconteceu que à medida que foi envelhecendo, foi sentindo cada vez menos necessidade de comer, o que, juntando à escassa reforma, o tinha habituado a um regime muito frugal. Decididamente, não seria capaz de gastar duzentos escudos numa fartura.
Há quanto tempo não era feliz?

Os balões tinham-se transformado num frondoso Plátano e ele estava agora em plena Avenida da Liberdade, era jovem e sentia-se nervoso. Suavam-lhe as palmas das mãos.
Tinha vestido a sua melhor roupa, comprada de propósito para a ocasião: umas calças de fazenda cinzenta e um casaco também de fazenda mas num tom ligeiramente mais escuro - tinha a comprado a amigo seu que, por sua vez, a tinha herdado de um primo que morrera tísico -, a camisa, branca, tinha-a comprado nova, nos Armazéns Pinheiros, local de prestigio na Rua Augusta, dois dias antes.
Tinha empatado no traje boa parte do pé-de-meia que possuía, mas não fazia essas contas, a razão porque o tinha feito era a melhor: uma rapariga.
A moça trabalhava numa retrosaria, no número 120 da Rua Tomás Ribeiro, a pouco mais de 50 metros da Garagem Militar, onde ele cumpria o serviço militar. Desde a primeira vez que a viu que soube que tinha de a convidar para sair – coisa que alguma confusão lhe fazia, visto não ser capaz de explicar isso a ninguém, nem mesmo a ele próprio; tal coisa nunca antes lhe tinha acontecido.
E agora ali estava, junto ao Parque Mayer, à espera dela. Nervoso. Mais ainda do que quando, finalmente, ganhou coragem para a abordar, e logo com um convite para ir à Revista. Se a menina me fizesse o favor…, tinha-lhe ele pedido desajeitadamente.
Instruído pelo seu camarada Abílio, moço mais expedito no que a raparigas dizia respeito, aguardava-a com um ramo de malmequeres e com um convite para cear: conhecia uma cervejaria onde se comia um bom prego.
Ei-la que chega, mais linda do que nunca aos seus olhos. Diz adorar os malmequeres. Olha-lhe nos olhos, deixando-o sem saber o que fazer ou dizer.

- Então o que vamos ver?
- A Revista chama-se “Saias Curtas”, entra o Tony de Matos.
- Adoro ouvi-lo cantar. Sempre que posso, ligo a Emissora Nacional.
- Achei que sim… - respondeu ele, sentindo-se descontrair.

SLB… SLB… SLB… GLORIOSO SLB… GLORIOSO SLB…

Berrada a muitas vozes, aquela frase fê-lo estremecer. Estava de volta.
Percebeu que tinha caminhado até à Estrada da Luz, junto à Igreja. À sua frente, um muro de pessoas impedia a passagem. Toda aquela gente parecia aguardar algo ou alguém.
O grupo de rapazes aproximava-se, continuando numa gritaria infernal. Vestiam todos de igual: uma camisola vermelha, cachecol e boné. Um deles desfraldava uma grande bandeira. Riam muito, divertidos consigo próprios.

- Oh minha senhora, qu’é isto aqui? – perguntou um deles, apontando.
- Ora, é a Igreja da Luz.
- Igreja?? Pffffffffff… venha antes ca malta à Catedral que daqui a pouco há jogo. – o grupo soltou uma gargalhada.
- Esta gente… - disse a mulher, afastando-se.
- Como é qué malta? – incitou um outro. – Quem nós somos, todos querem saber…

Todos gritavam agora, enquanto furavam o corredor humano que ladeava a Estrada da Luz.


QUEM NÓS SOMOS
TODOS QUEREM SABER
QUEM NÓS SOMOS
NO NAME… NO NAME


SL BENFICA VAIS VENCER
ESTAMOS CONTIGO ATÉ MORRER
SOMOS RAPAZES SEM NOME
NOSSA VOZ É O TEU PODER

Todos estavam distraídos com o grupo. Uns riam, outros desaprovavam abanado a cabeça. O velhote parecia ser o único que olhava na direcção oposta. Queria dizer algo mas não era capaz. Seria ele o único a ver? Estaria a ver bem?
Ao fundo, por cima da multidão e iluminada pela luz de início de Outono, a imagem de uma santa apareceu.

quarta-feira, outubro 04, 2006

A Luz (parte 2)

Tinha conseguido tornar-se auto-suficiente na “sua aldeia” e já pouco saía da zona histórica. A osteoporose dificultava-lhe os movimentos, tornando os seus passeios pelas redondezas cada vez mais raros. Não lamentava isso, fora dali tudo era confusão, ruído, tudo coisas que lhe faziam mal. E mesmo assim, já ali não tinha a calma de outros tempos, longe disso. Mas naquela tarde, dissolvido na brisa, o doce aroma de farturas tinha vindo buscá-lo.
No quarto, que com a sala e uma pequena casa de banho constituía a sua habitação, sentado na cama, desenrolou um par de meias. Era lá dentro que guardava algum do dinheiro que tinha em casa – guardava-o em três locais distintos: dentro de um plástico enfiado num pacote de arroz e dentro de um dos cinco livros que tinha na sala; nas meias guardava as moedas. Pegou numa moeda de 50 cêntimos; hesitou. Após alguns segundos, acabou por retirar uma segunda moeda. Merecia uma pequena loucura, afinal, há já bastante tempo que não se permitia uma extravagância. Iria comprar meia dúzia de farturas. Certamente aguentariam até ao dia seguinte e ele gostava delas mesmo frias.
Segurou o cajado com um aperto bem forte, aquilo a que se propunha era uma verdadeira aventura.

Percorreu lentamente a Travessa do Pregoeiro e a apertada Azinhaga das Carmelitas. Sabia para onde se dirigir, tinha-se recordado de que Setembro era o mês da Feira da Luz.
Longas filas de carros ocupavam os passeios, obrigando-o a caminhar na estrada. Por mais de uma vez pensou em desistir, tal era a proximidade com que os carros passavam por si. Procuravam um lugar para estacionar que não existia.
A Azinhaga era o limite norte da zona antiga, fazendo fronteira com alguns prédios antigos e com o que restava de uma antiga quinta. Futuro local de construção, pensou.
A custo, chegou ao Largo da Luz. Todos os ossos lhe pareciam doer, cobrando-lhe um elevado preço pela audácia. Parou para recuperar a respiração.
O cheiro a farturas era agora intenso. Estava próximo de concretizar o seu objectivo, mas antes seria preciso vencer aquela multidão irrequieta que se acotovelava à sua frente, criando uma barreira que lhe parecia intransponível. Perto de si, uma cigana gritou a plenos pulmões, assustando-o: - Olhó cd da Floribeeeella!
Firme do seu apoio, atravessou a estrada. Ali estavam elas, farturas! Numa roulotte cuja decoração eram dezenas de pacotes de farinha Branca de Neve e garrafas de óleo Frigi, um individuo anafado, possuidor de uma farfalhudo bigode que lhe escondia a boca, virava uma espiral de massa frita dentro do que lhe pareceu um grande alguidar metálico. Guardou alguma distância, encostado a um poste de electricidade, onde se sentiu mais seguro. Ficou a observar, a admirar cada gesto do homem que, manejando dois longos espetos com movimentos rápidos, passou a massa já frita a uma rapariga. Por sua vez, esta, demonstrando longa prática no uso da tesoura, cortou a massa em pedaços de igual tamanho e rebolou-os numa mistura de açúcar e canela.
As farturas pareciam-lhe iguais às de sempre, mas tudo o resto o fez sentir deslocado. No seu tempo não havia roulottes daquelas, com luzes em forma de letras que acendiam e apagavam mesmo de dia, não eram raparigas que vendiam farturas, não havia farturas recheadas. Que diabo, parecia-lhe até que no seu tempo as farturas não levavam canela, apenas açúcar.
Tentava decidir se gostaria mais delas com ou sem canela quando uma voz rouca o fez regressar à feira.

- Oh avozinho, não tenha medo que aqui ninguém lhe faz mal. Compre destas que estão quentes. – Disse-lhe o homem das farturas, sem que se visse qualquer movimento da sua boca. Parecia usar os olhos para falar.

Aproximou-se, retirando as duas moedas do bolso.

- Quantas são? – Perguntou-lhe a rapariga, apressada.
- Quantas compro com isto?
- 1 Euro? Ora, compra uma.

Sentiu um grande calor vindo do alguidar onde mais farturas fritavam. O cheiro delas, que antes lhe tinha chegado doce e suave, parecia-lhe agora estar queimado, saturando-lhe as vias respiratórias. O barulho que o envolvia aumentou subitamente dentro da sua cabeça. Um rapaz muito alto, com o cabelo cortado à escovinha e com uns óculos de lentes grossíssimas, deu-lhe um encontrão, quase fazendo com que deixasse cair as moedas. Alguém gritou por um megafone que era tudo a 5 Euros.

- Como é que é, quer a fartura ou não? – Não havia clientes para atender, mas a rapariga continuava com pressa.
- Não… afinal não quero. – Respondeu num murmúrio o velhote.