quarta-feira, dezembro 28, 2005

Final de Ano

Fique desde já o(a) leitor(a) ciente que este post está crivado de apartes.

Esta manhã alguém me disse: “mais um ano, hein”? referindo-se ao facto de mais um ano estar a terminar.
Sorri e, encolhendo os ombros, disse que sim. Não fui capaz de dizer mais nada mas fiquei a pensar para comigo que, fosse ele pessimista como eu, teria dito de outra forma: “menos um ano, hein”?
É como a história da garrafa estar meio cheia ou meio vazia. Se é verdade que mais um ano passou, também o é que menos um ano falta para ser desfrutado.

Mas descanse o(a) amável leitor(a) que este post não é para o(a) deixar melancólico ou triste. Para stress e sentimento de angústia, já chegou o Natal – sim, que há quem ache o Natal stressante e angustiante.
Nada disso, este post serve para manifestar alguma incompreensão para com a celebração da passagem de ano – descansem que não é para fazer nenhum balanço do meu ano… se bem que lá para o final, desconfio que não resista a um ligeiro abano.

Se pensarmos bem, esta ocasião que se aproxima – a passagem de ano -, é das poucas celebrações verdadeiramente universais, que todo o planeta celebra. Cada qual à sua hora, é certo, mas todos a festejamos (bem sei que outras religiões têm o seu calendário próprio e que o dia de passagem de ano não coincide mas, aproveitando o balanço da maioria e o facto de não ser uma celebração religiosa, todos acabam por festejar esta passagem de ano, ainda que de uma maneira mais comedida).
Ora, sendo uma celebração universal, é a única (?) em que não se celebra nada de concreto: não nasceu ninguém, não morreu ninguém, não houve nenhum acontecimento naquele dia em anos passados, nada! Celebra-se uma convenção que algumas pessoas estabeleceram para melhor orientarmos as nossas vidas.
Alguém, um dia, decidiu estabelecer um calendário que, por força das circunstâncias, determinou um momento aproximado em que mais uma órbita do planeta é completada à volta do sol – e, quando em 1582 se percebeu que as contas estavam mal feitas e o ano não tinha 365 dias + 6 horas, não custou nada obliterar 10 dias (salvo erro) aquele ano… afinal, tratava-se apenas de uma convenção.
Mais, as zero horas de dia 31 de Dezembro nem correspondem ao mesmo local da órbita, ou seja, o planeta não está exactamente no mesmo local do ano anterior – é que o ano não são os 365 dias exactos.
Já agora, só mais uma coisinha: 2005 vai ter mais um segundo, o último minuto do ano vai ter 61 segundos, não se deixem enganar pelas contagens decrescentes que por aí andam, façam saltar a rolha do espumante à hora certa (podem ficar a saber porquê, aqui).

Isto tudo para propor uma troca, a celebração da passagem de ano às 0h00 do dia 31 de Dezembro de cada ano, por duas: a celebração dos solstícios e dos equinócios.
Sempre era a celebração de algo concreto: do dia mais longo e mais curto do ano. Ou seja, trocava uma festa por duas. Ficávamos a ganhar, ora pensem lá bem: mais umas pontes e tal… em Junho, então, ia ser um festival de feriados… (e também sei que há muitas pessoas a celebrar estas datas, mas não se pode comparar os seguidores de crenças e cultos pagãos com a generalidade da população mundial).
Acho que havia aqui grandes benefícios.

Agora o tão temido balanço, ou abano, que foi como lhe chamei: quanto à minha vida pessoal vou poupá-los a isso, descansem; quanto aqui ao Blog, só quero dizer que tem sido uma descoberta… de mim mesmo e de muitas pessoas a escrever muito bem. Queria ainda agradecer a todos as palavras amáveis.

Que 2006 seja o melhor ano das nossas vidas.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Taxi - O Regresso a Casa (conclusão)

Quando parei à porta do número 29 da Rua dos Condes, o taxímetro marcava 5,70€. Mordi o lábio inferior e saí para ir tocar à campainha.
Do outro lado da rua, à porta do “Mini-Mercado Barrocal”, estava uma senhora já de idade. Abanava a cabeça e tinha um dos olhares mais tristes que me lembro de ver.
Uma sensação de desconforto invadiu-me. Tinha que sair dali e depressa. Toquei novamente.
Nada.
Como a rua só tem um sentido e, com o estacionamento, uma faixa de rodagem, tinha já vários carros a apitar. Estacionei em frente a uma garagem que por sorte existia perto.
À porta do Mini-Mercado estavam já cinco idosas que falavam baixo entre elas.
- Então você não tem ninguém em casa, Sr. Albino? – perguntei.
O homem tentava disfarçar as lágrimas que começavam a cair pela face.
- Tenho sim, não devem ter ouvido.
Toquei de novo, mas sem sorte. Não estava ninguém em casa. E agora? Deixava ali o homem, ao frio? Ia entregá-lo às velhotas à porta do “Barrocal”? Chamava a policia? Toquei de novo.

- As senhoras sabem se está alguém no segundo esquerdo?
As velhotas pareceram surpreendidas com a minha pergunta e agitaram-se. Nenhuma respondeu. Atravessei a estrada e fui ter com elas.
- As senhoras desculpem lá, mas expliquem-me lá o que se passa.
Uma delas acabou por falar. Percebeu-se que teve que ganhar coragem: - Está sim. A filha do Albino. Mas é uma velhaca, quer se ver livre dele, não lhe vai abrir a porta.
- Espere lá! Você está a dizer-me que a filha está em casa e não quer abrir a porta ao pai?
- Foi o que ouviu. Já não é a primeira vez que o faz. Quer é vê-lo morto para lhe ficar com a casa e com o pouco dinheiro que deve ter – retorquiu uma outra velhota.
- Mas as senhoras têm a certeza que ela está em casa?
- Está, eu vi-a a espreitar à janela quando você tocou. Percebeu que era o pai e agora não lhe abre a porta. Aquela cobra – afirmou a senhora do olhar triste.
Agora falavam todas ao mesmo tempo. Uma delas empurrava-me com o indicador enfiado no meu peito. A que devia ser a dona do Mini-Mercado foi ter com o velhote ao táxi.
- … oh dona Beatriz e daquela vez em que a velhaca lhe bateu?
- aquela malvada, que não tem outro nome…
- tem, tem… vaca, é o que ela é. Fornica com uns e com outros, mete-os a todos em casa e só quer ver o pobre do pai morto.
- e ele que lhe deu tudo.
- Deixem-me falar… calma. Isto não pode ficar assim. Eu vou subir aquele segundo andar e, nem que tenha que deitar a porta abaixo, ela vai ter que receber o pai!
- Isso, faça isso. E aproveite e dê uns tabefes naquela cabra.
- Eu vou, mas as senhoras vão comigo também. Vamos todos e vamos armar uma tal cagaçal que ela vai ter que abrir a porta.
O estado de excitação das velhotas acalmou, subitamente fez-se silêncio. Entreolharam-se. Uma réstea de adrenalina que conservavam impulsionou-as, disseram que sim.
- Sr. Albino, volto já. Não se preocupe que na rua não fica.

A vizinha do rés-do-chão abriu a porta da rua e o grupo de justiceiras geriátricas avançou, comigo à frente. Quando cheguei ao segundo andar ia para fazer um último apelo de motivação ao grupo, quando reparei que estava sozinho. Devagar, devagarinho, agarradas ao corrimão em fila indiana, lá vinham elas subindo as escadas, ofegantes.
Dei por mim sem saber se havia de chorar ou de rir.
- Recuperem lá o fôlego que vamos ter que fazer barulho.
Fechei a mão e bati na porta com quanta força tinha.
- Abra a porta. Está aqui o seu pai – gritei eu a plenos pulmões.
Nada. Bati de novo e, desta vez, dei também uns pontapés na porta para mostrar que não estava a brincar.
- Sabemos que está aí, se você não abrir a porta vou chamar a policia, não duvide.
Uns segundos depois ouviu-se um barulho de chaves no interior de casa e um ferrolho a ser corrido. A porta rangeu.
- Eu vou lá a baixo chamar o Sr. Albino – disse umas das mulheres. Foram todas.
Uma figura muito magra e de cara chupada apareceu numa pequena fresta que se entreabriu. Tinha os olhos raiados de sangue e o cabelo em desalinho. Não disse nada.
- Eu trouxe o seu pai do Hospital e você vai deixá-lo entrar, ouviu?
- Estava a dormir, não ouvi – respondeu numa voz rouca de tabaco.
- Não estou minimamente interessado em falar consigo. A sua atitude é inqualificável. Digo-lhe só isto: o seu pai vai entrar e você vai tratá-lo bem; eu que saiba de alguma coisa, percebeu?

Ao passar por mim no patamar mal iluminado daquele segundo andar, o Sr. Albino olhou para mim sem dizer palavra. Senti que me queria pedir algo, mas que não teve coragem.
Entrou em casa e a porta fechou-se. Fiquei ali, na escuridão alguns minutos. Não se ouviu nenhum som.
Quando, por fim, me fui embora, as velhotas continuavam em conversa à porta do Mini-Mercado, por certo sentiam que pela primeira vez tinham feito algo em relação aquela situação.
Tinham feito pouco, pensei eu. Aliás, também eu tinha feito pouco. Decidi voltar ao Hospital, iria falar com a assistente social, contar-lhe o que se passou, algo teria de ser feito.

- Mas eu sei disso tudo. Já não é a primeira vez que aquela criatura finge que não está em casa para não receber o pai. Eu já lá fui, já falei com ela e fiz um relatório para a Segurança Social – afirmou a M. dos Anjos enquanto bebia um chá na cafetaria do Hospital de S. José.
- Então não há nada que se possa fazer?
- Fazer o quê? Ele nunca apareceu aqui com sinais de maus-tratos, nunca se queixou disso. Que ele não está bem lá, é um facto, ela não tem com o pai os cuidados que devia ter com uma pessoa daquela idade, com problemas cardíacos. Olhe, eu faço o que posso e até mais do que devo. De quem é que você julga que eram os 5,00€ que eu lhe dei?
- Sabe o que lhe digo? É triste ser-se velho – afirmei, enquanto me levantava. Tirei 5,00€ do bolso e deixei-os na mesa. – Esta fica por minha conta.

A caminho de casa, percebi o que queria dizer aquele olhar do velhote no patamar, antes de entrar em casa: que não era ali que queria estar.

Continuo sem saber se há quem goste de estar nos Hospitais, mas agora sei que, mesmo sem precisar, há quem se sinta melhor num Hospital.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Taxi - O Regresso a Casa (parte 1)

Não gosto de hospitais, nunca gostei. Nem sei se alguém gosta. Tive a minha conta de visitas forçadas e estadias e, por isso, evito ao máximo lá entrar: as recordações não são as melhores.
Não gosto de lá entrar nem que seja por dois minutos para deixar um cliente, o que, sendo taxista, é impossível evitar. Não há semana que não tenha que ir a um hospital duas ou três vezes.
Ontem à tarde não foi excepção. Eu era o primeiro na paragem de táxis de Entrecampos quando um senhor com ar executivo se aproximou; tive um feeling que aquela ia ser uma boa corrida, mas toca-lhe o telemóvel e ele atrapalhado com a pasta que tinha numa mão e um dossier na outra, parou… foi o suficiente para ser ultrapassado por uma senhora: “Hospital de S. José, se faz favor”. Pouca sorte a minha!
E logo S. José, o Hospital de que tenho piores recordações.
Muitas horas lá passei eu sentado naqueles corredores vazios de calor, vazios de sentimento, de bem estar… cheios de dor, de falta de esperança, de vontade de fuga.
Lado a lado num banco corrido, encostados ao azulejo monocromático e frio ou deitados em macas a olhar para o tempo a escoar-se por entre os buracos no tecto falso, fazíamos companhia silenciosa e sofrida uns aos outros.
Manifestávamos a nossa solidariedade com o parceiro de infortúnio no silêncio a que nos entregávamos, na resignação dos conformados que já não protestavam pelo tempo de espera com as enfermeiras que passavam, apressadas e que nem sequer para nós olhavam. Se olhassem teriam de admitir que ninguém merecia nada daquilo.
Dizem-me que está diferente, mais humano. Que se continua a esperar as mesmas horas infinitas mas com mais humanidade. Talvez. Espero não ter que constatar pessoalmente.

Deixei a senhora nas consultas externas e passei pela Urgência. Uma assistente social fez-me sinal e desapareceu no interior do edifício.
Qualquer taxista minimamente experiente sabe que isto não é bom sinal. Confesso que estive quase a ir-me embora, cheguei a meter a primeira. Não fosse a imagem do passado daqueles corredores, das pessoas à espera da ajuda que não chegava, tinha-me ido embora.
Eu não podia fazer o mesmo, mas sabia que aquele desaparecimento da assistente social não era bom sinal.
Voltou pouco depois empurrando uma cadeira de rodas. Nela, um velhote aparentando uns oitenta anos, curvado sobre si, de pijama e roupão. Saí para ajudar – já estava a ter trabalho extra…
Na cadeira, o velho parecia pouco mais que um monte de ossos dentro da roupa mas, ao levantar-se, percebi que era muito mais que isso. Impressionou-me o seu porte, apesar de continuar curvado e seco.
A idade avançada e a doença tinham-no feito pagar uma factura pesada. Apresentava os olhos saídos das órbitas, a pele pendia-lhe em bocados da face, a barba era rala e estava por fazer há dias, estava muito amarelecido.
Ainda assim, o porte era evidente. Na juventude teria tido perto de um metro e noventa, tinha com certeza sido um homem elegante, garboso. Agora metia pena, que é dos piores sentimentos que podemos ter por alguém.
Julgo que ele percebeu isso. Quando o meu olhar cruzou o dele, vi reprovação e mágoa. Sem que me tivesse dirigido a palavra, pedi-lhe desculpa entre dentes.

- Entre lá Sr. Albino. Não tarda nada está em casa… não diga nada, eu sei, eu sei… mas tem mesmo que ser.
- Deixe-me ajudá-lo a por o cinto – disse eu.
- Vai levar este Sr. à Rua dos Condes, 29, 2º esquerdo, às Janelas Verdes, conhece?
- Conheço muito bem. Foi para essa rua o meu primeiro serviço como taxista.
- Coincidências… está bem sentado, Sr. Albino?
O velhote não disse nada.
- 5,00€ chegam, não chegam? – perguntou-me a assistente social M. dos Anjos, ajeitando a placa com o nome que quase lhe caia da bata.
- Vão ter que chegar, não é verdade? – respondi-lhe.

Ao sentar-me ajeitei o espelho retrovisor de maneira a poder ver melhor aquele saco de ossos embrulhado num roupão. Dizer que ele estava triste não é faltar à verdade, mas também não é dizer a verdade toda, havia na expressão do homem algo que me escapava. Afinal, ele estava a sair do Hospital para ir para casa.
Preparei-me para não abrir a boca o caminho todo.
Na Rua dos Fanqueiros o Sr. Albino falou. Num tom de voz surpreendentemente perceptível, disse-me: - É triste ser-se velho.
- É triste é estar doente – respondi-lhe.
- Ser velho e estar doente…
Reparei que olhava pela janela e não lhe respondi.

Parado atrás de um autocarro turístico, daqueles de dois andares, descapotáveis, reparava nos turistas que, de pé, fotografavam a metálica árvore de Natal que domina por estes dias a Praça do Comércio. A maior árvore de Natal da Europa… quando fazemos, fazemos em grande.
Dois pensamentos me assaltaram: um foi que não sabia se o instrutor de Spinning da Quinta da Marinha tinha conseguido entrar para o Guiness por pedalar oitenta horas seguidas sem sair do mesmo sítio (se é para se fazer, que se faça em grande); o outro pensamento, foi que se o autocarro arrancasse naquele momento, o camone ia desequilibrar-se, cair e, bati três vezes numa madeira imaginária, aterrar-me no colo.
Estava eu a tentar recordar quanto tinha custado o último pára-brisas que me partiram e se o seguro cobriria quebra de vidros por queda de turista, quando o Sr. Albino falou novamente: - Hoje não é o seu dia de sorte.
Continuava a olhar pela janela.
- Porque diz isso?
- Ter-me apanhado, você vai ter chatices…espero eu.
- Como é que é, espera que eu tenha chatices?
- Você não me ligue, eu não sei o que digo, é da medicação, da idade.
Decididamente, devia ter-me ido embora quando tive a oportunidade de o fazer.
Calei-me. Achei que se o tentasse fazer falar ia ser pior.
O velhote sabia que algo ainda estava para acontecer.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Um Passeio no Jardim

Lembro-me que naquela altura pensava com frequência nos meus pais. Recordava a toda a hora episódios da minha vida com eles, de todos tentando retirar uma lição, um ensinamento.
Tentava também avaliar se tinha sido um bom filho, se eles tinham sido bons pais; onde é que cada um de nós tinha falhado e onde é que a sabedoria deles me tinha auxiliado.
Fazia isto automaticamente, sem dar por isso, não era nenhuma decisão consciente. Até que um dia a razão para o fazer se tornou evidente. De tão óbvia, não sei porque nunca tinha tomado consciência dela: eu ia ser pai pela primeira vez em breve.
Esta iminência da paternidade assustava-me um pouco. Queria ser um bom pai - o melhor pai -, e não fazia a menor ideia de como o podia ser. Por vezes, ficava algo angustiado com a ideia, com a dúvida se seria eu capaz. Estaria preparado para tão grande mudança na minha vida?
Esta preocupação só era superada pelo fascínio que sentia com a ideia de gerar vida, de eu estar na origem desse processo fantástico.
Se as mães o sentem de uma forma especial, única, nós, os pais (alguns, pelo menos), sentimos as coisas de maneira diferente, claro, mas também intensamente. Eu era dos que sentia assim.
A ideia de gerar uma vida fascinava-me, enchia-me de um sentimento maior que eu.

Até que um dia…

Não sei se as pessoas que andam de comboio alguma vez pensam em quem os vai a conduzir. Num autocarro, num táxi, é fácil perceber quem vai os comandos, damos pelos condutores (mesmo nos aviões, sem o vermos, o piloto está mais presente que no comboio, quanto mais não seja porque no inicio da viagem o seu nome é referido e durante o trajecto ele faz uma pequena comunicação aos passageiros), num comboio não, aquilo pára, arranca, abre portas e quase nunca se dá pela pessoa que o vai a conduzir.
Eu sou maquinista da CP e gosto muito do que faço. O anonimato da função permite-me pensar em coisas como a paternidade mesmo enquanto estou a trabalhar.
Sendo uma função de grande responsabilidade, está de tal maneira automatizada, que acaba por ser relativamente calma e livre de stress, afinal, não temos horas de ponta e basta alguma atenção à sinalização que aquilo até as curvas faz sozinho.

Há três anos atrás, estava eu absorvido nos pensamentos de que vos falava, quando, ao sair de uma curva antes da estação de Barcarena, algo me arrancou ao torpor em que me encontrava.
A princípio não consegui apreender o que era, foi o inconsciente que me alertou para algo de errado; o cérebro demorou uns segundos a processar a informação mas, quando tomei consciência dela, não podia ser pior: estava uma pessoa na linha a tentar subir para a plataforma da estação.
Freio em emergência mas, tal como um petroleiro em mar alto, várias dezenas de toneladas de comboio a uma velocidade razoável, não param em poucos metros.
Aflição, muita aflição. De um momento para o outro, vemo-nos numa situação surreal, é como se fossemos transportados para um filme, algo de terrível está prestes para acontecer e nós não pudemos fazer nada. Só que neste caso não estamos sentados na plateia ou no sofá de casa, estamos no meio da acção, somos intervenientes directos. Pânico, muito pânico.
São breves segundos que demoram muitos minutos, muitas horas a passar, ao serem recordados vezes sem conta. É algo que nunca mais me vai abandonar. Terror, muito terror.

Uma rapariga com a sua filha pequena ao colo decidiu atravessar a linha, achou que conseguia subir a plataforma em segurança e assim poupar duzentos metros de caminho e cinco minutos de tempo.
Colocou a filha no apeadeiro e, quando se preparava para tentar subir, ouviu o comboio aproximar-se. Ao vê-lo sair da curva, também o seu cérebro demorou a processar a informação, também ela deve ter pensado que algo de terrível estava para acontecer. E, depois, tomou a decisão errada, fatal: em vez de, num último esforço, ter tentado subir, optou por se encolher e ficar imóvel. Apesar de a velocidade ser já reduzida, o comboio entrou na estação e o degrau da primeira porta apanhou-a, depois outro, e outro…
Aflição, pânico, terror? Seria isso que eu sentia? Com uma tremenda descarga de adrenalina a correr-me no corpo, o ritmo cardíaco descontrolado e o cérebro em desatino, consegui realizar os procedimentos habituais nestas situações, mas em piloto automático: não me lembro de ter contactado o posto de comando da Refer/CP e de ter chamado o Revisor, mas sei que o fiz. Lembro-me de “voltar a mim” quando, ao olhar para o espelho retrovisor, vi a criança, ali, parada, perdida. Parecia olhar para mim. Em que pensaria ela?

Quando fui para esta profissão sabia que era praticamente inevitável passar por esta situação. São raros os maquinistas que não tenham passado por isto e os mais velhos fazem questão de lembrar isso a quem começa – o monitor do meu curso tinha 16 casos no curriculum.
Se noutros países quando algo semelhante ocorre, a empresa não deixa o maquinista conduzir mais nesse dia e coloca ajuda psicológica à disposição, cá, pergunta-se via rádio se o corpo está a obstruir a via; caso não esteja, depois da polícia tomar conta da ocorrência, somos mandados seguir viagem - tenho um colega a quem isto aconteceu num sentido e, ao fazer o trajecto de volta, voltou a acontecer.

Como numa fracção de segundo, sem qualquer aviso, sem um sinal, a nossa vida pode mudar. Absorvido pela ideia de ser responsável por gerar vida, eu acabava de estar envolvido na perda de uma.
Este conflito – há falta de melhor termo -, abalou-me profundamente. Durante muito tempo as coisas deixaram de fazer sentido, pelo menos o sentido que faziam habitualmente. Questionei tudo. As certezas que tinha desapareceram. Tudo era transitório, efémero.
Se pensava na minha filha que ia nascer, logo pensava naquela figura no espelho retrovisor. Porquê? Tinha sido apenas uma decisão errada da sua mãe. Como é que um acto irreflectido, mas simples, banal, podia ter consequências tão dramáticas, sem possibilidade de segunda chance, sem direito a arrependimento?
E no centro de tudo, estava eu.
Conseguiria amar a minha filha? Seria eu digno de uma filha? Haveria o destino de, um dia, procurar vingança?
Com o tempo, as duvidas foram sendo menos, a compreensão do que aconteceu maior. Tenho hoje a consciência exacta do meu papel em tudo o que aconteceu, mas continua a custar. Lembro-me ainda muitas vezes de tudo. Revejo os detalhes da cena com frequência.

No outro dia, parado na mesma estação em sentido contrário, reparei numa mulher que estava parada junto à linha, fora da plataforma. Percebi que aguardava que eu passasse para atravessar pelos carris. O local era exactamente o mesmo do acidente, atravessar ali na altura em que um comboio está a chegar, é tragédia pela certa.
Apitei-lhe. Por gestos perguntei-lhe se sabia o perigo que corria. A resposta foi insultar-me; chamou-me todos os nomes que sabia.
A vontade que tive foi sair e dar-lhe uma carga de porrada. Juro, foi por pouco que não o fiz!
Não têm noção. Não querem saber.

Agora vou terminar, tenho que ir buscar a minha filha à escola, prometi-lhe que íamos passear ao jardim.


Ao amigo Quim, aquele abraço.

domingo, dezembro 11, 2005

É Natal

- Estou?

- Sim, quem fala?

- Sou eu, pá, o Pai Natal.

- Ah, olá Pai Natal. Deixe-me aqui tirar o som ao televisor…

- Estavas a ver o quê?

- Nada de especial, estava a ver a Arlinda a abandonar a Base.

- Também vês essas merdas, pá?

- Naaa, estava a fazer zapping quando vi a Arlinda a bater continência a um gajo de microfone na mão. Fiquei a ver. Mas deixe lá isso, conte-me como vão as coisas por aí.

- Mal, pá. Vão mal.

- Então, que se passa?

- Ora, o que é que se havia de passar, estamos no Natal!

- Pois, imagino que deva estar caótico.

- Caótico é em Agosto quando chego da praia, nesta altura nem há palavras para descrever isto, pá.

- Maldita invenção esta do natal.

- Podes crer, se eu soubesse que ia dar nisto, nunca tinha aceite esta brincadeira.

- Mas você não tem aí muita ajuda?

- Sabes lá o que é ser ajudado por Duendes, Elfos e Gnomos… estes gajos não se gramam uns aos outros, é só chatices, só queixas, só lamentações, pá. Os Elfos não podem ver os Gnomos, estes boicotam o trabalho dos Duendes, e estes só sabem é chatear as Renas. É de dar em doido, pá.

- E você não dá um murro na mesa?

- Eu atirei foi com a mesa ao ar! Ameacei-os com despedimento colectivo. Eles que vão trabalhar para Holywood, que fiquem lá à espera de mais filmes em que os da raça deles entrem. Mas que esperem sentados! Lá porque houve uns filmes em que entraram, devem pensar que todos os anos há mais. Eu bem lhes disse que aqui, pelo menos, era garantido: Natal há todos os anos, já filmes…

- E eles?

- Os sacanas na altura não disseram nada, meteram as orelhongas nos barretes e deram meia volta. No dia seguinte aparecem-me aqui uns quantos, auto-intitulados “comissão de trabalhadores” e ameaçaram que iam criar um sindicato! Tu já viste isto, pá?

- Um sindicato?

- Um sindicato, pá. Já tinham nome e tudo. Esta malta das criaturas dos contos de fadas não bate bem, tu repara nisto: Sindicato dos Técnicos Operadores de Natal E Diversos. Nem dá para acreditar.

- Você tem que ter calma, olhe a sua tensão. Você já não é novo.

- Qual tensão, pá. Esta cambada dá é cabo da cabeça de um santo.

(em fundo, ouve-se uma música: “eu sou e serei, coração, coração sem dono… não me quero prender a ninguém, ainda é cedo para me entregar, quero viver o que a vida tem, um dia mais tarde se verá… quero o peito livre pra voar e a mente solta pra curtir, o meu coração a palpitar, durante muitos anos sempre assim… porque eu sou e serei, coração, coração sem dono…”)

- Que música é essa, pá?

- É a TVI, a Ruth Marlene está a cantar.

- A Ruth… no outro dia via-a a fazer flexões. Deixa cá ver se ela já pediu alguma coisa ao Pai Natal…

- Veja lá.

- Não tenho cá nada em nome de Ruth… ou de Rute Marlene.

- Ainda não teve tempo, anda muito ocupada na guerra.

- Mas olha que os portugueses são quase sempre os primeiros a pedir. Logo em Outubro recebi daí os primeiros pedidos.

- Gente ansiosa, por certo.

- Pareciam, sim. Bom, os quatro primeiros, pelo menos.

- Pediram o quê?

- O primeiro pedido a chegar foi do menino Mário, explicava-me que já não tinha idade para escrever ao Pai Natal, mas que o fazia porque não pedia só para ele, que o que queria era para o bem comum, etc. Enfim, uma ladainha para me pedir um Tacho. Achei muito estranho tanta coisa por causa de um simples Tacho.

- Não é um tacho qualquer, Pai Natal, é um Tacho muito apetecível.

- Percebi isso nos dias seguintes, pá. Então não é que o menino Manuel, logo no dia seguinte, me escreve a pedir desculpa por já não me escrever há muito tempo, mas que tem escrito outras coisas e que depois não tem tempo nem para uma carta. Pedia ainda que, caso eu já tivesse recebido um pedido igual do seu grande ex-amigo Mário, o ignorasse, porque era ele, menino Manuel que tinha direito a o Tacho, que o Mário já tinha tido o dele.

- São piores que as crianças…

- Depois foi o menino Chico a pedir-me o Tacho. Que me achava um bocado capitalista e ao serviço do grande capital e por isso não me tem escrito, mas que, este ano, excepcionalmente, contava comigo, com a minha reflexão ponderada de homem vivido para me passar para o lado dos oprimidos, dos que têm pouco, das vitimas dos barões que controlam esse tal capital. Que eu podia começar por lhe dar acesso ao Tacho.

- Não me diga que o menino Jerónimo também lhe escreveu.

- Escreveu, pá! Que era a primeira vez que o fazia, que antes os seus camaradas lhe confiscavam o selo e a carta para o Pai Natal e que por isso nunca tinha conseguido. Mas que sempre me achou piada, vestido assim de vermelho, a viver no meio da neve; que isso o lembrava da Sibéria, dos trabalhadores que para lá iam trabalhar para o bem dos outros camaradas. Que no fundo eu era um símbolo do operariado. Concluía dizendo que também ele queria ajudar os outros, mas que para isso precisava do tacho. Vou-te contar, pá, já mandei investigar que raio de Tacho é esse que eu também o quero oferecer à Mãe Natal.

- Não recebeu nenhum pedido do menino Aníbal?

- Aníbal? Não me recordo, mas deixa-me consultar a base de dados.

- Veja lá isso, agora estou curioso.

- De facto, há aqui uma carta do menino Aníbal, mas não pede nada ao Pai Natal. São só duas linhas, diz ele que não quer escrever muito para não se prejudicar, que o ano lhe correu bem e que vai acabar melhor, que não tem nada para me pedir, que o Tacho já é dele. Despede-se desejando-me um bom Natal.

- O menino Aníbal é muito sabido. Tem o Bolo Rei na barriga, é o que é.

- Parece que isso anda muito animado por aí neste Natal.

- Nem queira saber. É a corrida ao Tacho, às compras e foi também a abertura da época de transferências religiosas.

- Hã, que é isso, pá?

- É muito parecido com a reabertura do mercado futebolístico agora em Janeiro. É a altura em que se volta a poder negociar o passe dos jogadores entre clubes. Neste caso, tem a ver com a mudança de paróquia por parte de alguns padres. Há sempre polémica com a decisão de algum bispo iluminado que, quando percebe que a população local gosta do padre e até vai à missa, trata logo de o transferir. Cá para mim, os bispos são como os empresários de futebol, devem ganhar à comissão com as transferências que fazem.

- O que passará pela ideia dessa gente…

- É mistério insondável, mas este ano a transferência do padre Luís António de Ranhados para Sendim, deu mais que falar que a transferência do Figo do Barcelona para o Real Madrid.

- E como acabou isso?

- Ora, no fim-de-semana passado não houve missa nem em Ranhados nem em Sendim. Parece que ficaram todos a perder.

- É sempre o mesmo… pá, agora tenho de ir, a Mãe Natal está a chamar-me. Vai começar o AB… Sexo.

- Grandes malucos que vocês são.

- Curiosidade cientifica, apenas.

- Sim, claro. Pai Natal…

- Diz lá depressa.

- Cuidado com a distribuição de prendas este ano, não vá o trenó ser confundido com uma avião da CIA. E feliz Natal para si também.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Interrupção Forçada

Assaltaram-me o carro! Uma das poucas coisas que levaram foram vários textos, entre eles a continuação do que está a meio.
Vou ter que o voltar a escrever, mas já não vai ser o mesmo. Estou desanimado.

sexta-feira, novembro 18, 2005

As Tuas Mãos

Estás agora muito próximo

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Sinto a tua respiração, o teu bafo

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Subitamente, o ar ficou frio

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Não te senti aproximar, coisa que nunca tinha acontecido

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Nos teus olhos reconheço aquele olhar

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Não lhes vejo vida, estão cegos

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Tento falar mas não consigo

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Agarro-me a ti mas não tenho força, não me sentes

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quem és tu? Não te conheço

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Onde está o homem por quem me apaixonei?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando começaram as tuas palavras a ficarem ocas?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando começou a minha vida a ficar vazia?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando foi que te afastaste de mim?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Tentei falar contigo, não deixaste

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando foi que te perdi?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Em que pensas, o que sentes?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

O que fiz eu?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

O que não fiz eu?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Porquê?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Que loucura é essa que eu vejo no teu rosto?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Rosto que se desvanece

tenho as tuas mãos no meu pescoço

A luz que se turva

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Já só há sombras nas paredes

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Os sons tornam-se eco

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Abro mais os olhos mas vejo menos

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Estás agora longe

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Pairo por cima de ti

Já não tenho as tuas mãos no meu pescoço

segunda-feira, novembro 14, 2005

Luka

O meu nome é Luka. Vivia no segundo andar. Por cima de ti. Nunca soube se apenas me vias passar, ou se alguma vez reparaste em mim.

Certamente deves ter ouvido por mais de uma vez o barulho que vinha de minha casa. Aqueles apartamentos não eram famosos pelo isolamento sonoro, pois não?
Aquele som característico de discussão, os gritos impacientes, as palavras não ditas mas vociferadas, a ira, o ódio. Muitas vezes pensava em como seriam esses sons depois de filtrados pelas paredes, em como chegariam aos teus ouvidos; ao teu cérebro, que entendimento farias deles, se é que fazias algum.
Muitas vezes eram sons de luta. Devem ter-te feito pensar, por certo. Não imaginas as vezes que desejei que te fizessem actuar, subir aquelas escadas, arrombar a porta e salvar-me. Ingenuidade minha, eu sei, mas pouco mais tinha que a minha ingenuidade, na altura.

Numa das piores fases da minha vida, há muitos anos, escrevi-te. Era um misto de explicação e desabafo. Também era um lamento. Sempre escrevi muito porque sempre falei pouco. Guardava tudo para mim. O papel era (ainda é) o meu fiel confidente.
Nunca tive coragem de te fazer chegar o texto, claro, mas ajudou-me muito na altura. Era uma coisa simples, apenas os sentimentos de um jovem em relação à sua vida; um pouco também em relação a alguém que não conhecia mas de quem gostava. Tu.

Sim, gostava de ti. À minha maneira. Nunca falámos, nem sei se alguma vez nos cruzámos na escada. Não me lembro sequer de alguma vez o teu olhar ter cruzado o meu, mas eu gostava de ti. Observava-te ao longe e pensava em como eras bonita. (Se tivesse sentimentos dentro de mim para além de pena e tristeza, diria que te amava).
Na minha imaginação, a partir de certa altura, substitui o papel por ti como minha confidente. Passou a ser a ti que eu contava as minhas dúvidas, as minhas incapacidades, os meus medos, as minhas falhas… os problemas que tinha em casa.
A primeira vez que te escrevi, percebo-o agora, foi uma tentativa de explicação daquilo que tu ouvias, e da ideia que isso te poderia fazer ter em relação a mim. Não queria que tivesses má opinião sobre mim, sobre a minha família. É que tinha uma estúpida esperança de que pudéssemos vir a ser amigos, que pudesses passar de confidente imaginada a confidente materializada. Foi a última esperança que tive durante muitos anos.

Foi uma fase muito má da minha vida. Muitos problemas em casa, muitos problemas comigo próprio. Anulei-me, reduzi-me a pouco mais que o estritamente necessário para sobreviver. Fiz tudo isso inconscientemente. Pura e simplesmente convenci-me de que era assim que as coisas tinham que ser.
Esse convencimento da inevitabilidade dos maus-tratos, da falta de amor, do não ser desejado, fizeram com que interiorizasse que nada estava errado comigo ou com a minha vida e comecei a negar a evidência. Desde logo a mim próprio.
Hoje, quase me custa a crer tudo isto. Vê bem que desenvolvi um pensamento unidimensional e convergente em que nada era questionado, tudo era aceite porque sim. Convenci-me mesmo de que o melhor que me podia acontecer era ficar sozinho para o resto da vida, de que nunca ninguém ia querer saber de mim que não fosse para me magoar. Para sofrer, antes estar sozinho. Isolei-me, fechei-me dentro de mim.

Demorei muitos anos a perceber o isolamento em que vivia, o automatismo, a rotina em que estava transformada a minha vida e, acima de tudo, a perceber que não tinha de ser assim, que havia mais vida para ser vivida, que não tinha que me limitar a sobreviver, a chegar ao dia seguinte. A perder o medo de voltar a sofrer, que em grande medida acho que era isso.
Quando percebi que conseguia voltar a lidar com o sofrimento, com a perda, acho que voltei a viver - sim, estou convencido que não se vive sem sofrimento e que temos que aprender a lidar com isso.
É claro que todos esses anos marcam uma pessoa. Eu hoje sou também quem fui nesses anos em que fomos vizinhos. Sendo diferente, tenho esses anos bem presentes, fazem parte de mim.

(Há uma descoberta minha que é muito recente e que me tem dado que pensar: se, apesar de tudo, não foi esse isolamento, esse fechar para o mundo que me salvou, que me permitiu chegar aqui, hoje. Mas isso fica para outra altura).

Entretanto, voltei a escrever muito. Nunca mais tinha era escrito para ti. Lembrei-me hoje de o fazer. Porquê, não sei, ou melhor, talvez por ter percebido que da última vez em que o fiz, terminava dizendo-te para não me perguntares como eu estava; hoje escrevo-te para te dizer que já não tenho medo dessa pergunta, nem da resposta… já não preciso mentir!
Hoje consigo falar do que ficou para trás, do que me aconteceu, de quem eu era. Mas também só se for preciso, só a ti. Interessa-me muito mais o futuro, o que falta viver, não o que foi (sobre)vivido.
Hoje já não quero estar sozinho. Apesar de não ter nenhuma relação de momento, sou relativamente feliz, acima de tudo, tenho esperança, sabes? Foi essa a minha maior conquista: recuperar a esperança. Agora tenho razões para sair da cama todas as manhãs, tenho uma ocupação, tenho vontade de ser feliz.

Espero que esteja tudo bem contigo. Let me ask you: how are you?

PS – Um óbvio agradecimento à Suzanne Vega pela música… por todas as músicas.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Das Relações Entre as Pessoas

Querido diário,

Tenho estado ausente, eu sei, mas nesta altura do ano é sempre assim, para mais com a minha relação com o Sérgio no estado em que está.
A última coisa que partilhei contigo foi a angustia que sentia por mais um aniversário que se aproximava. Todos os anos a mesma coisa: esta sensação de finitude que se aproxima. Agora que já fiz os malditos 60 anos, a angustia continua.

Tal como eu temia, o jantar de aniversário foi muito difícil para mim. Cada vez era mais complicado fingir que tudo estava bem. Nessa noite, depois de todos terem ido embora, reuni todas as minhas forças e coloquei a questão ao Sérgio.
Falámos por meias palavras, como tem sido habitual nos últimos anos, mas falámos. Decidimos que, entre nós, para já, vamos deixar de fingir que ainda temos uma relação. Vamos continuar a viver juntos, a partilhar a mesma casa, mas estamos já a ocupar quartos diferentes.
O divórcio está fora de questão. Para os amigos vamos manter uma aparência de normalidade, mas à Beatriz e à Ana já dissemos. O Sérgio ainda tentou convencer-me que não lhes devíamos contar, mas já me custa bastante fazer isto com as outras pessoas, não o conseguiria fazer com as minhas filhas.

Os primeiros dias foram difíceis, afinal, andamos os dois aqui por casa quase sem nos falarmos, como se fossemos estranhos. O Sérgio é como um fantasma que eu vejo mas com o qual não consigo comunicar (nem quero, bem vistas as coisas).
Tenho perguntado muitas vezes a mim mesma se havia necessidade desta tentativa desesperada (?) de manter as aparências, se não era melhor a separação, ponto final.
Chorei muito (ainda choro). Tem sido também por isso que não tenho escrito, não quero encher páginas e páginas só com angústias, dúvidas, tristezas, lágrimas.

Estive hoje com os meus netos e estou mais animada. Acho que vou conseguir fazer isto funcionar. A verdade, por muito que me custe admitir, é que ainda sinto algo por ele. Algo forte, mesmo depois de tudo o que ele me fez, de todas as traições, de todas as mentiras. A diferença é que enquanto nos últimos anos eu preferia enganar-me a mim própria, agora não, consegui encontrar algum amor próprio dentro de mim e não abdico dele. Não vou deixar que me magoe mais!
Pelo menos, não vou deixar que ele perceba que ainda sofro um pouco. Faz-me muita confusão como é que a minha mágoa nunca o afectou, nunca o fez ter uma palavra para comigo, lhe provocou uma alteração de comportamento, por pequena que fosse. Não quero crer que nunca o tenha percebido, como me disse no dia em que falámos. Isso seria bem pior, seria a confirmação das minhas piores suspeitas: que para ele, eu já não existo há muito tempo… há tempo demais.

Neste últimos dias tenho dado por mim a pensar várias vezes no porquê desta coisa das relações entre pessoas ser tão difícil, tão complicada. Se não seria melhor não haver sentimentos desse tipo por um parceiro.
Não seria preferível, querido diário, se tudo se resumisse a sexo, como em quase todo o reino animal? Sexo, só e apenas, sem qualquer tipo de ligação afectiva.
Não me interpretes mal, não estou a defender uma mudança de comportamento, estou apenas a divagar sobre como teria o mundo evoluído se, no inicio do desenvolvimento da espécie humana, não se tivesse gerado esta necessidade de estabelecer ligações que acabaram por originar a Família tal como a conhecemos hoje.
Se fosse como com quase todos os animais, haveria sexo para reprodução e algum por prazer (que não se trata de uma posição puritana). Amor, que é um sentimento importante, tinha-se pelos filhos, não pelos parceiros.
Os filhos ficariam ao encargo de um dos progenitores. Cresceriam sem o amor do casal, é certo, mas quantos não são os casos de sucesso em que isso acontece nos nossos dias? E depois, amizades continuaria a haver, continuaríamos a dar-nos com outras pessoas, a conviver em grupo. Apenas não haveria o Casal.

Este meu “protesto” é contra o casal, contra o potencial de sofrimento que o conceito encerra quando a coisa não corre bem – e que pode ser muito superior a tudo de bom que também contém -, não é contra a sociedade, contra o grupo, contra a amizade. Tudo isso seria fundamental.
E só mais uma coisa: a criança nunca sentiria falta do outro; isto porque nunca teria havido outro e nós só podemos sentir falta do que conhecemos, do que perdemos, se não sabemos que existe, não o poderemos lamentar (se nunca tivesse existido televisão, alguém ia sentir falta dela?).

Certamente isto teria originado uma sociedade muito diferente da que temos hoje, mas seria pior? Quero crer que a ideia tem algum mérito e merece alguma reflexão, que não é só alguém magoado pelo amor a desabafar.
Parece-me um exercício intelectual válido, apenas isso. Até porque não advogo esta mudança, agora seria impossível: todos sabemos o que é uma família feliz e devemos aspirar a ela; é nossa obrigação tentar consegui-la, devemos isso a nós próprios. Isso torna impossível o que disse antes.

Agora que já me libertei de algum deste peso no peito que me aflige, vou fazer uma canja (espero que o desgraçado do frango não tenha estado constipado, que esta estória da gripe das aves também me tem afligido).
Até à próxima.

PS – a canja é só para mim, se ele quiser que a vá fazer!

domingo, novembro 06, 2005

Voltaremos a ver-nos (final)

Menin, 19 Setembro 1917

Querida Lea,

Não imaginas a felicidade com que recebi a notícia da tua gravidez. Devolveu-me alguma da fé que tenho perdido a cada dia que aqui passo. As coisas de que o ser humano é capaz de fazer, não imaginas.

Preciso tanto de ti. Depois de amanhã nada vai voltar a ser como era. Amanhã vou entrar em combate.
Se há coisa que me assusta mais do que a ideia de não te voltar a ver, é recear que esta maldita guerra me torne um homem diferente daquele pelo qual te apaixonaste. Me torne numa pessoa pior.
Sinto-me muitas vezes possuído por sentimentos terríveis. Dou por mim a odiar tudo e todos. Sinto raiva e, por vezes, mesmo fúria. Tudo isto é novidade para mim, desconhecia-me capaz de tais coisas e assusto-me.

Por outro lado, sei que não me posso deixar dominar por sentimentos negativos e ideias pessimistas. Sei também que não é altura para filosofias. Chegou a hora da acção. Amanhã tenho que estar à altura do que me é exigido.
A tua gravidez deu-me a confiança de que necessitava.

Escrevo estas linhas e olho para o teu retrato no relógio que me ofereceste. Não me separei ainda dele e não vou separar nunca. É como se fosse uma parte de ti.
Meu Deus, como és linda. Amo-te muito.

Não vejo a hora de voltar para junto de ti.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 3)

Francisco Mata nunca tinha pensado muito no seu nome até ter sido incorporado no Corpo Expedicionário Português. Nos últimos meses era no que mais pensava.
Estava ali para matar, era para isso que o queriam. A espingarda e as munições que carregava não o deixavam esquecer.
Não sabia se já tinha morto alguém, gostava de pensar que não, que todos aqueles tiros disparados tivessem errado o alvo. Esperava nunca vir a ter resposta para dúvida.
Uma outra coisa em que Francisco pensava constantemente era em comida. Era disso que andava à procura quando me encontrou.
Por vezes conseguia-se obter algumas rações de combate alemãs no campo de batalha. Eram até mais apreciadas que as do exército britânico.
Nesse dia, Francisco e os seus camaradas tiveram sorte. Pouco depois de me encontrar, um seu companheiro encontrou um cavalo ferido. Há mais de um mês que não comiam carne.

Não me sabendo verdadeiramente apreciar, Francisco sempre teve todos os cuidados comigo. Ainda hoje não consigo perceber como conseguimos ambos sair ilesos dos confrontos em que nos vimos envolvidos – da batalha de La Lys guardarei sempre memória do extremo a que pode chegar o ser humano, do horror.
A verdade é que cheguei em razoável estado ao fim da guerra. E foi assim que me vi transportado para Portugal.
Francisco era alentejano, vivia numa pequena aldeia do Alto Alentejo, Alcáçovas. Trabalhava no campo, no arranque da cortiça quando era tempo dela e a guardar vacas e porcos para um grande proprietário local.
Ironia do destino, ali estava eu, peça suprema de relojoaria do início do século XX, passando os dias no meio dos animais.
Para Francisco, homem simples que tinha visto muita coisa que não tinha desejado, eu era apenas uma coisa bonita que tinha trazido de um sítio feio. “Muito feio, tenebroso, negro”, como dizia, quando contava histórias da guerra, à sombra das Azinheiras. E mostrava-me, para espanto e admiração dos seus companheiros de trabalho.

Antes regressar vindo de França, Francisco tinha retirado a foto de Frau Lea. Penso que para evitar problemas em casa. Nunca cheguei a saber o que fez com a foto, apenas achei estranho não ter colocado uma de Joaquina, sua mulher.
Teve 6 filhas. Quando deixou de trabalhar devido a idade avançada, um dos seus passatempos favoritos continuou a ser contar histórias da guerra, agora aos seus netos. Pegava em mim e falava sobre o “senhor importante” a quem me tinha retirado. Falava com respeito do capitão Maximilian, apesar de desconhecer tudo sobre ele. Dizia Francisco que eu preservava a memória de uma pessoa e que isso devia ser respeitado, afinal, eu tinha sido a última coisa a que aquele homem se tinha agarrado. Que eu devia ser importante para ele e isso era tudo o que importava.

De facto, Francisco nunca me tratou como dono, apenas como guardião. Penso que dessa memória que ele sentia encerrada em mim.
Dizia sempre a quem ouvia as suas histórias que não queria ser dono de nenhum relógio, porque eram, a seguir às armas, a mais terrível invenção do ser humano. Imaginem como fiquei a primeira vez que ouvi tal coisa.
Na sua sabedoria de homem do campo, afirmava que nós, os relógios, éramos terríveis porque lembrávamos constantemente ao Homem que o fim se aproximava. “Tic, tac, tic, tac… já falta menos para tudo acabar”, dizia.
Chamava-nos máquinas ditatoriais, que escravizava-mos as pessoas: “agora tudo tem hora marcada, sempre a correr… então nas cidades é do pior, olha-se para o relógio e entra-se em pânico; todos dizem que não têm tempo para nada… qualquer dia vai ser cá no campo assim também, vocês vão ver… tudo culpa dos relógios”.
Francisco chamava ignorantes às pessoas, viviam sem consciência da vida que levavam, do quanto estavam escravizadas por aquele pequeno objecto que carregavam.
A quem lhe perguntava porque andava então ele comigo, respondia que era porque precisava de saber a que horas tomar o xarope para a tosse. Depois ria muito.
Nunca percebi esta sua atitude, julgo que são coisas normais dos homens do campo em Portugal.

Era um homem bom, muito querido de todos. Teve uma vida longa. Em Março de 1990, com 96 anos, um princípio de pneumonia debilitou-o muito e ficou acamado.
Contou ainda muitas histórias às filhas e netos que estavam sempre por perto. Já todos as conheciam de cor, mas mostravam sempre grande interesse em as ouvir novamente.
Um dia pediu a atenção de todos, queria fazer um último pedido. Perante alguma incredulidade de todos, contou mais uma vez como me tinha encontrado, mas desta vez acrescentou alguns detalhes: que nos últimos dias estava a ter um sonho recorrente e que nele uma voz lhe dizia que era chegada a altura de devolver o relógio ao seu dono. Ao fim de tantos anos tinha-se esquecido de que eu não era dele, que apenas tinha ficado encarregue de o conservar até ao dia em que descobriria como o fazer regressar ao seu dono.
Quando lhe perguntaram como seria isso possível ao fim de 73 anos, Francisco chamou até si o neto João.
- João, escuta-me, vais ser tu a cumprir esta tarefa.
- Diga-me como avô.
- Tenho no banco, em Évora, uma caixa guardada no cofre. Lá dentro vais encontrar o que precisas para devolver o relógio ao seu dono.

Dois dias depois Francisco morreu durante o sono. Tratados os aspectos legais, João levou-me até ao banco. A curiosidade e ansiedade faziam-se sentir.
A caixa que lhe foi entregue não pesava quase nada, João pensou se não estaria vazia. Sentou-se a uma mesa e esteve vários minutos sem se mexer. Por fim, decidiu-se e abriu-a.
Continha duas coisas: uma foto muito antiga de uma jovem rapariga e um envelope fechado, amarelecido e algo amarrotado. Estava endereçado a Frau Lea Abendroth Ludendorff.
João pegou-lhe como se estivesse a pegar na coisa mais preciosa. Ali estava, agora tinha uma morada, uma ajuda para cumprir a tarefa a si atribuída por seu avô. A sua ultima vontade.

Após alguns telefonemas para um primo que tinha em Estugarda, conseguiu saber através dele que a morada já não existia, a rua tinha mudado de nome, mas que, naquele número lhe tinham dado a morada da família Abendroth.
Partiria para a Alemanha.

Frau Lea estava deitada, semi-erguida, encostada a duas grandes almofadas. Parecia dormir quando entrámos no seu quarto: eu, João, o seu primo Augusto e Anne, filha de Frau Lea.
Apesar dos seus quase 93 anos, conseguia perceber-se a beleza que eu recordava dela. Não fosse eu um simples relógio, ter-me-ia emocionado por certo.

- Mãe?
Frau Lea abriu os olhos e compôs-se na cama com a ajuda de Anne. A voz saiu-lhe sumida mas perceptível para quem estava próximo.
- Sim?
- São os senhores de que lhe falei.
Augusto traduzia para o seu primo.
Uma lágrima rolou pela face de Frau Lea.
João aproximou-se e falou. – Dá-me licença que lhe segure na mão?

Durante uma hora contou, pausadamente e com todos os detalhes, a minha história conforme a tinha ouvido contar centenas de vezes a seu avô. Falou-lhe sobre Francisco e em como este o tinha encarregue há algumas semanas de encontrar a pessoa a quem eu pertencia. Pediu desculpa, em nome do avô, por tantos anos de atraso.
- Onde está o relógio? – perguntou Frau Lea.
João pegou em mim e entregou-me. O seu toque era frágil. As saudades que eu tinha daquele toque. Frau Lea emocionou-se bastante. Pediu à filha que me abrisse. A sua foto lá estava.
- Custo a crer Anne, o relógio que ofereci ao teu pai. Foi a última vez que o vi… que os vi. Não sabia naquela altura que estava grávida de ti. Nunca soube se a noticia chegou a teu pai.
- Eu sei mãe.
- As saudades que tenho dele… mas tive-te a ti, não é verdade?

Após alguns minutos de silêncio em que mãe e filha ficaram de mão dada a contemplar-me, João interrompeu.
- Há ainda mais uma coisa. Este sobrescrito que meu avô conservou.
Frau Lea reconheceu a caligrafia do marido. Era a carta que ele lhe tinha escrito na noite anterior à sua morte.

Faz hoje um ano que regressei a casa. Aqui estou, junto a uma foto de Herr Maximilian Ludendorff e Frau Lea Abendroth Ludendorff, dentro de uma bonita caixa transparente, no jazigo da família.
Velo pelo corpo de Frau Lea e pela memória de Herr Maximilian.
Julgo que cumpri bem o meu dever. Agora é altura de também eu descansar. Não o queria fazer sem contar a minha história.
São 12h00.

domingo, outubro 30, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 2)

Região de Ypres, Flandres Belga. As piores chuvas dos últimos 30 anos tinham tornado a vida nas trincheiras quase insuportável. As condições de vida eram péssimas, havia falta de mantimentos, as instalações que serviam de aquartelamento deixavam entrar água por todo o lado. Tudo estava húmido e a apodrecer. À noite, o frio fazia-se já sentir, e deixava adivinhar um Inverno muito penoso.

A Companhia de Herr Maximilian L. estava colocada na ponte da estrada de Menin. Era este o acesso à localidade de Passchendaele, local estratégico para o controlo da região.
Estávamos em meados de Setembro. A tensão entre os militares aumentava a cada hora. Sabia-se que o exército Aliado se aproximava.
A ofensiva iniciada a 31 de Julho, a terceira Batalha de Ypres e primeira de iniciativa Aliada, tinha encontrado resistência feroz por parte das tropas alemãs, mas era agora inevitável o confronto. Seria o baptismo de fogo de Max.
Nunca lhe vi medo. Aos homens do pelotão que comandava aparecia sempre confiante e determinado, a mensagem que passava era a de que aquilo para que tinham sido chamados estava perante eles: a defesa da pátria. E isso passava pela conservação daquela ponte.

Desde a partida de Munique não mais o Capitão Ludendorff se separou de mim. Apesar das condições mais que adversas, da muita lama, da humidade constante, Max tinha todos os cuidados comigo. Conseguiu sempre preservar-me de qualquer dano.
Apenas nos separávamos fisicamente à noite. Colocava-me, aberto, em cima de uma pequena mesa junto ao beliche que ocupava. Ficava vários minutos a contemplar-me à luz da vela, na verdade, a foto de Frau Lea, a recordar momentos passados a dois.
Por vezes rezava. Por esta altura, mais que uma vez por dia. Pedia protecção para si e para a sua mulher. E escrevia-lhe também. Contava-lhe os vários aspectos da vida nas trincheiras, sempre de um ponto de vista optimista, omitindo tudo o que pudesse realmente preocupar Lea. Sentia-se algo ingénuo com o que escrevia, no fundo, sabia que Lea percebia isso, mas achava melhor assim.

A 19 de Setembro, ao amanhecer, os primeiros obuses do dia caíram bem mais perto das posições que ocupavam, do que nos dias anteriores. O exército alemão recuava e espalhava-se por uma enorme frente de batalha. Não poderiam contar com muita ajuda.
À tarde as ordens chegaram e não podiam ser mais simples: resistir a todo o custo, em último caso, dinamitar a ponte.
O pelotão que Herr Maximilian L. comandava foi colocado a 500 metros da ponte, numa segunda linha de defesa.
Era agora, iria combater. Teve medo. Nessa noite escreveu a Lea. Rezou muito. Beijou a foto, coisa que nunca tinha feito e dormiu agarrado a mim… pelo menos tentou, mas nunca conseguiu.
O dia 20 começou com a habitual alvorada de obuses. Às 9h00 a primeira linha de defesa caiu. Os (poucos) soldados que conseguiram chegar até nós não ficavam: “recuem, não temos qualquer hipótese… são muito mais que nós… temos que atravessar a ponte, dinamitá-la e suster o avanço inimigo na outra margem…”.
Max hesitou. O coração dizia-lhe que era a única coisa sensata a fazer, que devia recuar; mas a razão dizia-lhe que fixasse, não poderia recuar na primeira vez que entrava em combate, não poderia viver com a sua consciência se o fizesse. Ficaram.

Os morteiros massacravam as suas posições. Começaram a ser atingidos por tiros de metralhadora e espingarda. Responderam como puderam. Tiveram as primeiras baixas.
Quando os tiros de morteiro cessaram, Max percebeu que as tropas aliadas iriam avançar. Gritou ordens e incentivos aos seus homens sem sequer saber se estava a ser ouvido. Tinha agora a clara sensação de que cada homem estava por si, desorientado, perdido. Nada o havia preparado para aquilo. Pensou mais uma vez se seria desonra recuar.
Rudolf Schell, soldado encarregue do rádio e que sempre acompanhava o Capitão, caiu desamparado para o lado. Tinha sido atingido na cabeça. Granadas começaram a explodir bem perto, projectando terra por todo o lado.
“Retirar, retirar”- gritou Herr Maximilian L.

Confesso que não sei exactamente como aconteceu. O barulho era intenso, eu, ora era comprimido contra o chão, ora violentamente abanado enquanto Max corria. A certa altura ouviu-se um som diferente, seco, muito próximo de mim. Fui mais uma vez pressionado contra o chão. Desta vez não se seguiu o chocalhar violento.
Com dificuldade, Max conseguiu virar-se de barriga para cima. Um liquido espesso e quente começou a invadir o bolso onde eu me encontrava. Tinha sido atingido no estômago.
A primeira coisa que senti no jovem Capitão foi incredulidade, como se tudo aquilo não estivesse a acontecer. Tentou levantar-se, mas em vão. Não conseguiu sequer arrastar-se.
Gritou então mais uma vez, “retirar…”, mas as cordas vocais traíram-no e apenas um fio de voz que ninguém ouviu para além de mim lhe escapou por entre os lábios secos.
Quando finalmente Max percebeu, procurou-me. Com a mão ensanguentada e enlameada, apertou-me com quanta força lhe restava.
Ainda murmurou “Lea...” e, sem que tenha disparado um único tiro, morreu.

Seguramente, a coisa de que guardo uma memória mais intensa desta minha longa existência, é das horas ali passadas na mão de Max, de ver as nuvens passar, da chuva, do fumo negro, do barulho ensurdecedor, da correria louca dos soldados, dos seus gritos; e depois do silêncio… de como algo tão brutal tinha dado, aos poucos, lugar a um silêncio profundo.
Acima de tudo, guardo memória de como o calor daquela mão me foi abandonando, de como se foi esvaindo para a terra.
A força do aperto, essa nunca se perdeu. Max manteve-me sempre apertado, como se eu fizesse, agora, parte dele.

No dia seguinte, a meio da manhã, o sol rompeu por entre as nuvens. Senti os seus raios tocarem-me por entre os dedos de Max. Apesar de muito sujo, consegui reflectir parte desses raios.
Foi certamente isso que atraiu até mim um soldado. Parou e fitou o corpo de Max durante uns segundos. Retirou o capacete e benzeu-se. De cabeça baixa, fez uma breve oração.
Lembro-me de ter pensado no quão estranho era aquele comportamento, em como sentimentos daqueles pareciam deslocados num campo de batalha.
A custo, retirou-me da mão do capitão. Percebi então que era um soldado Aliado, do Corpo Expedicionário Português.
Preparava-se para seguir o seu caminho quando viu algo no corpo de Max que lhe chamou a atenção. Baixou-se, retirou o que quer que fosse e guardou no seu casaco.

A mim não ligou muito, abriu-me e fechou-me sem que a sua expressão se alterasse. Ou não percebia nada de relógios ou, por eu estar sujo, não reconheceu o valor que tinha em sua posse. Guardou-me no bolso e avançou.

NA – Obviamente, esta história é ficção. Apesar disso, tentei que o enquadramento histórico fosse o mais próximo possível da realidade.
Apesar disso, cometi um erro: nos apontamentos que tomei, troquei o ano da terceira batalha de Ypres, que ocorreu em 1917 e não em 1916. Assim, o ano da primeira parte teve que ser alterado.
Podem encontrar aqui informação sobre essa batalha e aqui sobre o Corpo Expedicionário Português.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 1)

Sirvo para uma coisa muito simples. Apesar disso, não sou simples, antes pelo contrário, sou o resultado de uma complicada mas harmoniosa conjugação de dezenas de peças, muitas delas móveis.
Sou fruto da inspiração de uma mulher apaixonada e da habilidade de um homem, também ele apaixonado.

Assinalo a passagem do tempo, sou um relógio.

Fui criado em Genebra, em 1917, resultado da habilidade – do génio – de Mr. Adrien Philippe, mestre relojoeiro de excepção, homem apaixonado pelo seu oficio.
A inspiração deu-a Frau Lea Abendroth que, por ser de uma família abastada de Munique com contactos em vários países, conseguiu chegar até ao sogro de Mr. Philippe, pedindo-lhe que intercedesse a seu favor junto do mestre relojoeiro, o mais conceituado do seu tempo.

Adrien Philippe hesitou, afinal, sempre tinha sido ele o criador das suas peças, sempre tinha feito questão disso, era a parte do processo que mais prazer lhe dava. De espírito criativo, procurava sempre inovar, introduzindo novidades a cada novo modelo produzido.
Ao ler as indicações de Frau Abendroth, considerou-as um desafio e aceitou a encomenda.
Eram muito simples de enumerar e difíceis de concretizar: seria um relógio de bolso em prata, com tampa, em que nesta fosse gravado uma runa simbolizando a boa sorte
e que, no seu interior fosse colocado o encaixe para uma foto; para além das horas, o relógio deveria ter cronómetro, regulação fina e bússola; deveria ter também um mostrador onde fosse indicado o nascer e o por do sol; por último, na parte detrás, deveria ser gravada a frase “Meine Traueme Mit Dir Traueme”.
Sem querer abusar demais da boa vontade do mestre, Frau Abendroth pedia alguma urgência. Dinheiro não seria problema.

Mr. Adrien Philippe saiu-se maravilhosamente. Utilizando os melhores materiais e os melhores artífices, produziu uma peça verdadeiramente magnífica. Um relógio único.
Sim, sou vaidoso. Mas tenho razões para isso, no meu tempo fui do melhor que a relojoaria Suiça produziu e, ainda hoje, continuo a ser admirado com reverência por conhecedores e olhado com espanto por leigos.

Com 19 anos feitos há pouco tempo e casada à menos de um ano, Lea Abendroth viu-se no início de 1917 na eminência de se separar do marido. Promovido a Capitão do exército imperial alemão antes dos 21 anos, Herr Maximilian Schenk Ludendorff partiria em breve. A Alemanha estava em guerra.
As boas relações quer da sua família, quer da do marido junto da corte tinham, até então, adiado a partida de Maximilian, mas a situação pouco favorável vivida pelas tropas alemãs na frente de batalha e o recente apelo do Kaiser para a união da pátria, tinham tornado inevitável a sua convocação dentro de pouco tempo.
Sabendo do gosto de Max, como o tratava carinhosamente mas apenas em privado, por relógios, Frau Abendroth tinha decidido há já algum tempo oferecer-lhe um modelo exclusivo pelo seu aniversário em Novembro. Quando a família foi avisada que Maximilian seria convocado em Março, não perdeu mais tempo, queria ter o relógio em sua posse quando o marido fosse chamado a cumprir o seu dever pela pátria.
A 3 de Março chegou o telegrama, partiria de Munique dia 28 próximo, iria ser colocado na Flandres.

É impossível esquecer uma cena daquelas. Pouco passava das 7h00, uma leve neblina levantava-se empurrada pelos primeiros raios de sol. A Marienplatz estava apinhada, uma multidão convergia à Hauptbahnof, a estação central de Munique.
Centenas de pessoas despediam-se dos seus filhos, netos, maridos, pais, tios… Os soldados partiriam às 8h00 para Berlim, primeira etapa do trajecto que os levaria até à frente de batalha.
A pátria esperava o melhor deles. Sentia-se orgulho nas suas expressões. Alguns conseguiam disfarçar menos bem o medo que sentiam.
Apesar de tanta gente concentrada num mesmo local, o ambiente era estranhamente calmo. A Lea, tinha-lhe parecido o ambiente de um funeral quando chegou. Estremeceu mas afastou imediatamente todos os pensamentos negativos do seu espírito.
Apenas ela tinha insistido em se vir despedir à estação. Maximilian tinha preferido despedir-se de todos em casa, algo sobre não querer parecer “muito humano” aos olhos dos homens que ia comandar. Lea tinha-o repreendido e impôs a sua presença.

- Max…
- Amor.
- Queria que aceitasse esta lembrança.
- Lea… mas… é magnifico… estou sem palavras. A assinatura, Adrien Philippe… não sei…
- Diga só que gostou.
- Lea, adorei, é lindo. O símbolo…
Meine Traueme Mit Dir Traueme…
- Lembra-se?
- Como poderia não lembrar. O seu poema… estou deveras tocado.
- No interior… coloquei uma foto minha, do dia do nosso casamento. Assim vai poder ver-me sempre. Tem também uma bússola, para que saiba encontrar o caminho de casa, até mim; tem um mostrador indicando o nascer e o por do sol, a esperança no dia que começa e a fé para o dia seguinte. As outras características poder-lhe-ão ser úteis na batalha, mas prefiro não pensar nisso.

Herr Ludendorff estava visivelmente emocionado. Ali ficaram os dois, de mão dada, em silêncio.
O comboio apitou com um silvo estridente e prolongado. O vapor libertado encheu a estação, dando-lhe um ar lúgubre e um pouco irreal. Maximilian beijou Lea nos lábios.


- Amo-o muito.
- Eu também a amo muito.
- Boa sorte.
- Voltaremos a ver-nos.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Nota do Autor

Apenas para dizer que completei um pouco melhor o “meu perfil” e que alterei a descrição do Blog, onde antes se podia ler “um blog a leste de sitio nenhum”, pode agora ler-se… bom, basta olharem para baixo do titulo.

Fiz isto porque tenho percebido pelos comentários (que muito me sensibilizam e agradeço) que, pelo menos quem cá vem pela primeira vez, tem tendência para tomar os textos um pouco literalmente demais. Sinto que posso estar, ainda que inadvertidamente, a induzir alguém em erro.
A este propósito, deixo AQUI o link para um texto recente onde falo sobre isso mesmo.

Mais uma vez, obrigado a todos.

terça-feira, outubro 25, 2005

O Frio de Sábado à Noite

As minhas noites de sábado sempre foram muito angustiantes. São as noites por excelência para se sair com os amigos em busca de diversão. Pelo menos, este é o objectivo declarado, porque o implícito, para quem tem 18 anos como eu e não namora, é encontrar uma relação.
Nunca ninguém me disse que é assim, nunca o li em lado nenhum mas, na minha cabeça, é assim. Coloco uma grande pressão sobre mim e isso angustia-me, deixa-me nervoso. E não é tanto pela parte da busca da relação, daquele jogo de sedução com uma rapariga, coisa para a qual eu nunca tive jeito, digo-o já, é por não ter muitos amigos. Chega sábado à noite e eu não tenho com quem sair.
Os poucos amigos que tenho estão noutra, andamos numa fase em que não partilhamos muito os mesmos interesses. É essa a razão porque eles não me convidam para sair com eles. Não por não me quererem no grupo, apenas sabem que eu estou noutra.
E é verdade, não estou na deles, mas também não estou na de outros, simplesmente não estou na de ninguém. Nem sequer na minha.
Se eles me convidassem eu até era capaz de aceitar. Não por convicção, apenas por não ter mais nada para fazer.

Eu também não me ajudo nada. Nunca dou parte fraca, nunca falo. Eu sou aquele para quem está sempre tudo bem, sei fingir uma vida social relativamente ocupada e sempre sem precisar de mentir – o que também não seria capaz de fazer -, basta-me falar de alguns sítios que estão a dar, de pessoas que eu conheço mas eles não e, nas suas cabeças a ligação é feita: “ele tem para onde ir e com quem ir, porreiro”. É assim tão fácil, acreditem.
A malta é jovem, não há grande preocupação em fazer muitas perguntas, vive-se depressa. Se o outro diz que está bem, se aparenta estar bem, é porque está bem.
Não me ajudo ao nunca me fazer convidado. Podia dizer que naquele sábado até ia com eles e tenho a certeza que, depois de ouvir duas ou três exclamações de espanto, ninguém mais ia pensar nisso e eu seria muito bem-vindo.
Não lhes digo nada porque se eu fosse com eles era para sítios que não têm nada a ver comigo, com aquilo que sou neste momento, e, para mais, como conheço bem apenas poucas pessoas do grupo e não as quero prender a mim, acabava por ficar por ali calado (com os outros não seria capaz de conversar sobre nada devido a uma enorme incapacidade minha de me relacionar, se querem saber), ou seja, iria passar a noite sozinho de qualquer maneira.
Mesmo assim não sei se faço bem. Será melhor passar a noite sozinho, ou sentindo-se sozinho no meio de muitas pessoas? Às vezes parece-me que no meio de um grupo é ainda pior. Ver de perto as pessoas a confraternizar, a relacionarem-se e eu ali, calado, a um canto. Acho que realça de uma maneira insuportável a tristeza de vida que tenho. Se passar a noite mesmo sozinho, parece que sinto menos pena de mim próprio.

E é assim que sábado se torna na noite mais solitária da semana.
É um drama sempre renovado. Apesar de todos os sábados serem iguais – pelo menos a esmagadora maioria -, em casa não consigo ficar, apesar de não ter para onde ir.
Não consigo ficar porque vejo nos olhos dos meus pais o que lhes vai no pensamento: “olhem só para este rapaz, com 18 anos e não sai num sábado à noite”. Nunca me o disseram nas vezes em que não saí, mas eu sinto-o. E por isso, saio. Não quero que eles pensem que não tenho para onde ir, com quem ir. Saio.
Tantas pessoas com o drama de os pais não os deixarem sair e eu com dramas destes…

Depois de algumas noites verdadeiramente complicadas, em que me vi aflito sem saber o que fazer, para onde ir, encontrei uma rotina que tem servido o propósito de queimar 3 a 4 horas: apanho o autocarro e depois o comboio, vou até à Baixa (por vezes ainda apanho o Metro e vou até outras partes da cidade). Levo o Walkman, claro, e ando por aí, sem destino, por zonas da cidade que aos sábados à noite estão quase desertas.
Ao escrever isto quase me senti bem, se eu soubesse o que era isso, diria que senti mesmo felicidade. Chegou a parecer-me um belo programa de sábado à noite. A verdade, porém, é que são 3 a 4 horas em que pouco mais faço do que sentir pena da minha existência.
Sei perfeitamente que não devia, mas é mais forte do que eu. O saber que podia ser bem pior, que há pessoas doentes e que lutam sem se queixarem, que têm vidas bem piores que a minha, não me ajuda em nada. Só damos valor às coisas quando as perdemos e, neste momento, não dou grande valor ao que tenho.

No meio de tudo isto, consigo vislumbrar algo positivo, é que tenho perfeita consciência de quem sou e de como sou. Sei que tenho que mudar, que assim não vou a lado nenhum, que isto não é vida para ninguém. Sei também que se pedir ajuda, se conseguir falar com alguém, tudo será mais fácil. Ainda não o consigo fazer, mas vou tentar, um dia. Até lá, resta-me andar por aí aos sábados à noite, sozinho, na triste esperança de que alguém meta conversa comigo, nem que seja para perguntar se aquele comboio pára em Algueirão. Até agora ainda não aconteceu.

Vai começar o Inverno. Os dias de chuva são os piores. O frio já se nota. Lá fora e cá dentro.