quarta-feira, julho 01, 2009

Os Coreógrafos

"Lento para quarteto de cordas", disse Laureano Penetra, num suspiro. Sentado no banco corrido, na sombra delgada da Casa do Povo, sentia-se encalmado em pleno Inverno. Passou a boina para o alto da cabeça e encostou as costas da mão à testa. Não tinha febre e isso deixou-o ainda mais abatido – detestava não saber de onde lhe vinham aqueles calores ("se ao menos estivesse doente..."); e detestava também não saber de onde lhe vinham aqueles pensamentos vagos e longínquos, que lhe perturbavam o sossego. Nas noites mais compridas, quando tudo se tornava ainda mais sossegado, quase se convencia que era de ser alentejano, que a culpa era da planície, essa plenitude feita de nada, que os pensamentos que implicavam consigo eram eles uma planície dentro de si, cheia de tudo e, no fim de contas, de coisa nenhuma. Acabava por adormecer, vencido pelo cansaço, e logo acordar, em sobressalto, ainda de noite, banhado em suor, cercado pela neblina das ideias, que o não deixavam, por momentos, saber onde estava.

A sombra era agora ainda mais estreita e empurrava os homens, sem saudades do sol, para outra parede – onde não havia banco que aceitasse o depósito a prazo das suas ossadas. Resistiram todos o mais que conseguiram.

Passavam as tardes quase sem uma palavra. Eram velhos o suficiente para já terem falado tudo – e no Alentejo parece haver menos o que dizer. Foi por isso que todos olharam para Laureano quando ele suspirou aquelas palavras inauditas. Semi-cerraram o olhar em forma de interrogação, por baixo das palas das boinas. Ele sacudiu o panfleto colorido, que falava da Companhia Nacional de Bailado, na direcção dos outros. "Tirei isto quando fui à Junta. Tem aqui escrito ‘lento para quarteto de cordas’”. Ninguém falou, nem sequer pestanejou, e ele achou-se na obrigação de olhar para o papel e tentar perceber o que aquilo significava. Trouxe a folha até aos olhos e demorou-se na leitura. "Parece que são uns moços e umas moças que vêm a Évora dançar". Foi a voz nasalada de Crispim Batata que se fez ouvir. "Espertos esses moços, compadre". E, depois de um breve silêncio, rematou. "Virem ao Alentejo dançar devagar". Já com o sol a moer-lhes as pernas, todos riram. Para dentro.