(o texto que se segue, começou por ser um comentário ao post de dia 27 de Maio, do Eyes Wide Open)
Apetecia tanto a Carmelinda ir dar mais uma aula de Química, como lhe apetecia partir uma perna em três lados e estar seis meses sem se mexer. Encostada ao umbral da porta das traseiras da sala de professores, atirou a beata para longe e exalou o produto da combustão do SG Gigante. O terceiro período estava próximo do fim e ainda chovia com frequência. Isso aborrecia-a verdadeiramente. Isso e ter de ir dar mais uma aula de Química.
Pegou numa pilha de livros e folhas soltas, na mala e olhou-se no reflexo que o vidro da porta de um móvel lhe ofereceu. Estava a precisar de ir ao cabeleireiro. E de uma massagem facial. E de arranjar paciência e tempo para se maquilhar, por pouco que fosse – um nadinha, só mesmo para realçar... qualquer coisa. E estava a precisar de deixar de fumar. E de dormir mais. E de comer melhor, que ninguém se alimenta apenas de iogurtes e queijo fresco e sopas de pacote. E estava também a precisar de férias. Muitas férias. Férias longe dali. Onde houvesse muito sol. Onde ninguém a conhecesse. Onde lhe fossem levar bebidas exóticas e fruta e marisco à espreguiçadeira, onde ela, estendida à beira de um mar azul-turquesa, se curaria de todos os seus padecimentos.
Entrou na sala de aula, atirou os papéis para cima da secretária e sentou-se. Ainda tinha cinco minutos para queimar. Tomou duas notas mentais: nunca chegar à sala antes dos alunos; nunca ter minutos só para si – não mais que aqueles que já tem em casa.
Levantou-se. Com um pequeno pau de giz azul, desenhou uma flor no quadro. Um malmequer. Bateu com a ponta do giz dentro de uma pétala, “mal me quer”, depois noutra pétala, “bem me quer”, “mal me quer”, “bem me quer”… Não precisou chegar ao fim para saber o veredicto. Pegou na mala. Precisava de um cigarro. Sujou a mala de giz e disse uma asneira, bem alto. Reparou que a saia, originalmente preta, estava agora coberta por uma fina camada de pó branco. Ia repetir a asneira, mas interrompeu a palavra a meio. Com os braços afastados para não sujar mais nada, sem saber o que fazer às mãos, andou de um lado para o outro, passos pequenos e desajeitados. Só parou quando deu um pontapé na parte lateral da secretária. Aleijou o pé e a dor acalmou-a.
Sacudiu as mãos e tirou um cigarro. Fumou na janela, encostada ao vidro. Continuava a cair uma chuva fina, irritante. E o verão quase a chegar. Atirou a beata para longe, quando ouviu os alunos à porta. Voltou à secretária e uma aluna chamou-lhe a atenção para a saia suja. Encolheu os ombros e apagou a flor, lentamente, deixando que o ruído se dissipasse por si. Não tinha pressa.
– Quem é que me sabe dizer como se chamam as substâncias que não se dissolvem em água? – gostava de começar as suas aulas assim, não revelando algo mas, ao invés, suscitando uma dúvida; partir da ignorância e, através da discussão, do pensamento lógico, do raciocínio, chegar a uma resposta – ou a uma hipótese de solução, que em ciência há ainda muita coisa a carecer de definitividade. Aquele dia estava longe de ser o seu, mas fez um esforço.
Tinha-se tornado professora por vocação. Desde sempre que o queria ser. Nos primeiros anos, o que mais tinha era paciência para os miúdos. Divertia-se com as aulas, com a sua preparação e nunca se cansava, tal era o gosto com que ensinava. Mas há já vários anos que não era assim. Algures no tempo, tinha-se cansado. Primeiro da escola, depois de tudo o resto. Parecia-lhe que a única coisa que conseguia sentir, era fastio.
– Hidrofóbicas – a palavra pareceu ter sido proferida a medo, numa voz desprovida de timbre e calor. Era apenas som e nada mais. Henrique era, de longe, o melhor aluno, mas também o mais apagado – no inicio do ano lectivo, ela tinha-se interrogado sobre se ambas as coisas estariam relacionadas, mas depois, desinteressou-se.
– Por sua vez, as substâncias que se dissolvem, são… Henrique…
– Hidrofílicas.
– Pois são. Hoje vamos falar delas e vamos ver uns casos práticos – sentou-se no tampo da mesa e começou a dar aos pés. – Mas antes, queria que me dessem exemplos de substâncias hidrofílicas.
– O cloreto de só…
– Sem ser o Henrique – interrompeu ela. Ninguém sabia. – Quando a vossa mãe está a fazer sopa, por exemplo, e coloca sal na água, o que é que acontece ao sal?
– A minha mãe não sabe fazer sopa – ouviu-se. Todos se riram.
– O sal desaparece – respondeu uma rapariga com um aparelho azul nos dentes.
– E que outro nome tem o sal?... Alguém?... Cloreto de sódio…
Dispôs na mesa vários recipientes e um jarro com água.
– Vamos fazer algumas experiências com soluções aquosas – alguns alunos levantaram-se. – Depois de apontarem as regras simples que permitem determinar a solubilidade em água, que vou escrever no quadro, calma.
Perante o olhar curioso da maioria dos alunos, misturou algo na água e agitou ligeiramente. Escreveu depois, apressadamente, várias frases e símbolos químicos no quadro.
Enquanto a turma se demorava a tentar decifrar a sua letra, dirigiu-se à janela. Lá fora, as sombras tinham-se alongado um pouco mais. Reconheceu na agitação das folhas das árvores o vento frio que tinha chegado no ano passado e teimava em não se ir embora. Sentiu que estava à sua espera.
Deu um passo atrás e voltou a encontrar-se no reflexo do vidro. Os olhos pareciam não estarem lá, de tão afundados na cara macilenta e pálida.
– Sôtora, aquilo ali é sulfeto ou sulfato?
– Sulfato. E, já agora, podes explicar aos teus colegas o que é um sulfato.
– Assim, não vale… – queixou-se a aluna.
– Está bem?
– Eu? – demorou a perceber a pergunta. Olhou de novo para o vidro. – Estou óptima. Nunca estive melhor… Vá, senta-te. – Sacudiu as mãos e depois a saia, sujando-a ainda mais. – Que horas são?
– Não são as que deviam ser – todos riram.
– E agora, sôtora, o que fazemos a seguir?
– Vamos à procura da resposta! O primeiro passo já o demos, que foi colocar a questão – falava depressa, com ânimo, virada para a janela. – Agora, temos de optar, por muito que nos custe. Temos que nos convencer que não conseguimos ter tudo, não é? – toda a turma olhava para a rua, à procura de algo ou de alguém; uns encolhiam os ombros, outros esticavam o pescoço. – Temos que ser lógicos, raciocinar. Encontrar uma hipótese a que nos agarremos com unhas e dentes, a algo que nos impeça de ir ao fundo – fez-se silêncio. Depois, disse: – Acho que sim…
– A sôtora passou-se…
– Meninos, meninos, está quase na hora da saída e ainda não fizemos nada – bateu as palmas e uma pequena nuvem branca ergueu-se no ar. – Vamos lá falar das soluções aquosas – de volta à secretária, por entre os papéis e recipientes, procurou a mistura que tinha feito. – Esta agora! Onde é que está a solução?
– Mesmo debaixo do seu nariz – respondeu a turma em coro.