sexta-feira, abril 28, 2006

Uma Vida Demorada (4)

Play.

Espero que estejas bem. Temos todos muitas saudades. Tenho o João ao colo, ele vai falar… diz olá ao pai… farta-se de falar, mas agora nada, é sempre assim. Todos os dias lhe mostro a tua foto e falo-lhe de ti. O tempo tem estado bom, dias de sol, sem vento. Aceita um beijo de quem mais te quer.
Parei a gravação e deixei-me ficar. Olhava em frente mas não via nada. Estava longe dali, sem saber bem onde. Não tinha raízes! Tal como o meu olhar não tinha onde pousar, também eu senti naquele momento que não pertencia a lugar algum. Nem a ninguém.
Mais do que nunca, apeteceu-me uma bebida. Tinha que sair dali e depressa.

- Whisky? Na Cantina não temos whisky. – O empregado olhava-me com espanto.
- O que é que têm com álcool?
- Cerveja, só isso.

Cerveja ia levar muito tempo a produzir o efeito que eu pretendia. Precisava de uma bebida destilada, mais forte. Lembrei-me que o Alberto podia ter alguma coisa guardada no gabinete e dirigi-me para lá.
Saí do edifício e o sol acertou-me em cheio, com violência. Fechei os olhos e senti uma tontura. Tive que parar. Sentei-me num banco, à sombra de uma pequena árvore. Sentia-me prestes a desmaiar.
O movimento era escasso, alguns alunos dirigiam-se para o edifício da Cantina. Olhei para o relógio, eram quase 13h00 e eu não comia nada há muitas horas. Tinha bebido um café e comido metade de um queque ainda em Lisboa, antes das 8h00. Pagava o preço das emoções fortes e de um estômago vazio.

- Então é aqui que você está. – Uma voz atrás de mim trouxe-me à realidade. Era Alberto Cosme.
- Ah, sim… precisava apanhar ar.
- Fui lá ter consigo para virmos almoçar, mas não estava. Andei à sua procura.
- Ouça, você por acaso… er… não tem… er… nada, deixe, vamos lá almoçar, sim.
- Você está bem? Está branco, homem.
- Dor de cabeça, isto passa.
- Então venha daí, não é nenhuma especialidade o que aqui se come, mas é barato.

Sentámo-nos, cada um com o seu tabuleiro e, enquanto tentava comer uma espécie de carne de porco à alentejana (sem amêijoas), o Alberto perguntou-me: - Então, teve sucesso? - Contei-lhe da minha descoberta.

- Mas isso é fantástico! Os meus parabéns. Que coisa extraordinária. Fantástico, mesmo. – Os olhos de Alberto brilhavam atrás das lentes redondas, estava visivelmente entusiasmado. Muito mais que eu. – Você vai ter que nos deixar juntar a sua história à nossa investigação. Ainda não sei bem como, mas é fantástico demais para se perder.
Eu disse-lhe que sim, na altura quase nem o ouvia com atenção.

- E só encontrou uma gravação da sua mãe?
- Desculpe, como disse?
- Se só encontrou uma gravação da sua mãe.
- Há mais que uma? – A minha surpresa era grande.
- Como deve calcular, não faço ideia, mas era frequente voltar às mesmas localidades, algum tempo depois, noutra campanha, ou seja, pode haver mais mensagens da sua mãe… ou de outro familiar seu. – Alberto falava com a boca cheia de omeleta, agitando as mãos no ar, segurando os talheres.
- De facto, eu não ouvi mais nada, pensava que só havia uma gravação.
- Então vai ter que procurar mais um pouco. Nós, no estudo que fizemos, ouvimos as gravações e encontrámos várias pessoas com mais que uma mensagem. E olhe que a Fuzeta era das terras mais visitadas pela RDP.

Fuzeta, Branca Noiva do Mar.
Veio-me à memória a reportagem da TSF. Tinha sido lá que os técnicos do Museu Marítimo tinham realizado as primeiras entrevistas fora de Ílhavo, reagindo assim à extraordinária manifestação de disponibilidade de muitos pescadores da Fuzeta para a partilha das suas memórias, ainda em 2005, no âmbito da itinerância da Exposição de fotografia A Campanha do Argus, em Olhão.
Meu local de nascimento, ao qual nunca tinha dado importância.

O segundo e derradeiro cd já só tinha mais três gravações quando voltei a ouvir a voz da minha mãe. A qualidade do som era igualmente má, havia muito daquele ruído característico dos discos de vinyl riscados.
O início da mensagem era idêntico ao anterior, o meu pai estava de novo na Terra Nova, mas pude perceber facilmente que a voz da minha mãe estava alterada, não parecia sequer a mesma. Ao contrário da calma anterior, do sorriso na voz, havia agora algum temor nas palavras ditas.
Parei a gravação e procurei a data na caixa do cd. 1970, dois anos depois da primeira mensagem, o ano em que tudo tinha acontecido. Aquela seria a derradeira campanha do meu pai. Poucos meses depois daquela gravação a minha mãe iria suicidar-se. Teria isso alguma coisa a ver com aquele tom de voz alterado, com toda aquela emoção?
Não era possível, a minha mãe não podia adivinhar o que iria suceder. Teria tido um sonho, uma premonição? A minha cabeça fervilhava, começava a doer imenso. Sentia alguma desorientação. Respirei fundo várias vezes e ouvi a mensagem de início:

- João, por aqui o tempo tem estado mau, nuvens negras rondam a Fuzeta, o vento faz-se sentir cada vez mais, parece que a tempestade se vai abater. Quando chegares, ao largo, atenta na corrente, não desembarques sem teres a certeza da maré. Leva o tempo que for preciso. Sabes como te quero, hoje e sempre.

A mensagem era, no mínimo, estranha. O que significava aquilo? Falar do tempo, dizer a um pescador experiente como e quando devia atracar? Não fazia muito sentido. Havia ali algo nas entrelinhas.
Não havia terceira mensagem. Fiz cópias das duas gravações e regressei a Lisboa.
A Leonor concordou comigo, era muito estranha aquela segunda mensagem, nada tinha a ver com a primeira, quase nem parecia a mesma pessoa.

- O que é que eu posso fazer? Não há mais nada nos arquivos que me possa ajudar. Ainda perguntei ao Dr. Alberto, mas vagamente, não quis dizer-lhe o conteúdo da segunda mensagem. Eles não têm mais nada relacionado com as gravações.
- Só vejo uma coisa que possa ser feita, João. – Leonor fitava-me com um olhar muito particular dela, o mesmo que lhe bailava nos olhos quando ela descobria uma saída para um caso difícil em que trabalhasse.

- O quê? – Perguntei eu, receando a resposta.
- Temos de ir à Fuzeta perguntar pelos teus pais.

quarta-feira, abril 26, 2006

Uma Vida Demorada (3)

Uma semana depois continuava a não dormir mais do que quatro horas. Sonhava o mesmo sonho e, nas horas que me sobravam até ter mesmo que sair da cama, pensava na possível existência de uma gravação da minha mãe.

- Que se passa João, andas muito estranho ultimamente. – Leonor olhava-me por cima da Ementa plastificada do nosso restaurante favorito, o 1º de Maio, no Bairro Alto.
- Nada, miúda – respondi sem grande convicção. – Já escolheste?
- Se não me contas o que se passa, peço as Pataniscas. – Disse ela, sorrindo.

Acabei por lhe contar, na verdade, era o que mais queria, apenas não tinha conseguido ainda a coragem de ser eu a abordar o assunto. Não queria que lhe parecesse fraqueza minha ao demonstrar aqueles sentimentos.

- Claro que fazes bem em querer saber mais sobre os teus pais.
- Mas agora, ao fim de tantos anos? Não achas isso mais próprio de um adolescente?
- Disparate, João! Nunca é tarde para sabermos mais sobre nós próprios.
- Sobre nós próprios?
- Não te parece que se ficares a saber mais sobre os teus pais biológicos, com quem viveste até aos cinco anos, que isso é importante para te conheceres melhor? Aquilo que eu sou hoje, por exemplo, devo-o, também, ao facto de os meus pais terem sido como foram para comigo: um casal que sempre me protegeu excessivamente.
Sabes, eu acho que, em grande medida, esses teus problemas de comportamento têm a ver a falta de um passado sólido, de raízes. A tua infância foi mais traumática do que tu julgas e talvez isso se projecte agora na idade adulta… e depois, há esse grande medo da perda.
- E eu que pensava que andava a sair com uma advogada, afinal…
- Nem te passa pela cabeça as vezes que temos de fazer de psicólogos.

No dia seguinte enviei um mail, explicando sucintamente a situação, para o endereço geral da RDP sem grande esperança de uma resposta. Fi-lo porque assim evitava um eventual remorso de nunca ter tentado.
Mas três dias depois recebi uma resposta: que a RDP não tinha os arquivos áudio referentes à chamada Hora da Saudade devidamente organizados, que não havia procedimentos que permitissem o acesso do público a esse tipo de material, mas que tinham disponibilizado esse material aos investigadores do Museu Marítimo de Ílhavo e que eles tinham feito cópias das gravações existentes. Seriam eles as pessoas indicadas a contactar.
Tiveram ainda a gentileza de enviar o contacto da pessoa a quem me deveria dirigir: Dr. Alberto Cosme.
Reenviada a correspondência trocada com a RDP para o Dr. Alberto Cosme, no mesmo dia recebo resposta: que a minha história o tinha interessado muito e que teria todo o gosto em me facultar acesso às gravações, que era apenas uma questão de compatibilizar agendas.

- Vês, eu não te disse? Se não tentarmos é que nunca conseguimos. – Leonor estava visivelmente entusiasmada. Mais do que eu, confesso. – Se puder, vou contigo.
- Até parece que consegui alguma coisa. Apenas vou poder ouvir umas quantas gravações, mais nada, dificilmente existirá uma gravação da minha mãe.
- Vais quando? – Pergunto-me ela, ignorando o meu pessimismo.

Isto de ser trabalhador por conta própria tem que se lhe diga. Para além das evidentes vantagens de não se ter um patrão a quem responder, não deixa de comportar riscos acrescidos, como a falta de segurança no trabalho e a necessidade de estar sempre disponível para aceitar tudo o que possa aparecer. Se recusamos um trabalho, corremos o risco de que quem o fizer no nosso lugar apresente melhores condições e, assim, fique com outros trabalhos.
Como não posso correr esse tipo de riscos, não foi fácil encontrar disponibilidade para me ausentar, ainda que por um dia.
Felizmente, no dia em que me dava jeito ir a Leonor tinha um julgamento. Antes assim, eu preferia ir sozinho e fazer as coisas à minha maneira. Se, no último momento me arrependesse, podia sempre dizer que não tinha encontrado nada sem outras explicações.

- Prometes que me vais mantendo informada de tudo?
- Prometo. Até te telefono para ouvires as gravações, se quiseres.
- Palerma!

No dia combinado, uma quinta-feira, às 10h00 em ponto, entrei na Biblioteca do Museu Marítimo de Ílhavo. Constituído por cerca 8000 monografias e cerca de 2000 publicações periódicas, o espólio da Biblioteca foi, em grande medida, doado e está relacionado sobretudo com temas relacionados com o mar e a pesca, em especial a do bacalhau.
Um rapaz com uma cabeça muito redonda, completamente calvo, óculos redondos e um sorriso genuinamente simpático, veio ter comigo.

- Deixe-me adivinhar, João Vicente!?
- Correcto. É o Dr. Cosme, presumo.
- Presume bem. Seja bem-vindo. – Fez-me sinal para que o acompanhasse. – Sabe uma coisa? Fiquei muito interessado na sua história. Não conhecer os pais que eram da Fuzeta e ouvir a reportagem… fantástico, hein, fantástico.
- Pois eu…
- Bem sei que não quer dizer que vá encontrar o que quer, mas não deixa de ser fantástico. – Falava muito rapidamente e gesticulava com movimentos rápidos.
Estivemos largos minutos à conversa – na verdade, foi mais um monólogo que outra coisa -, tendo o Dr. Alberto Cosme explicado o alcance do trabalho que estava na origem da reportagem da TSF. Eu estava impaciente e quase não me segurava na cadeira, por pouco não o mandava calar.

- Bom, bom, e agora vamos ao que interessa, não o massacro mais com a conversa. Eu entusiasmo-me, e depois… uma tragédia.
Levou-me para uma pequena sala na zona de Arquivo do Museu. Em cima de uma mesa, uma garrafa de água, um copo de plástico, um bloco de apontamentos, um lápis e um leitor de cd’s.

- Não imagina o trabalho que foi passar estas gravações em vinyl de 78 rotações para cd. A qualidade de som é má, mas isso você já sabe.

Não estando catalogadas, a única maneira de encontrar o que queria, era ouvir todas as gravações. No início de cada uma, uma voz masculina anunciava o nome de quem iria falar, para quem se dirigia a mensagem e o navio a bordo do qual o homem navegava.
Após duas horas pensei em desistir. Era, com certeza, um esforço inglório. E depois, o que me adiantaria tudo aquilo?
As mensagens não variavam muito de conteúdo, eram principalmente mulheres que, em breves segundos, diziam a saudade que sentiam dos maridos. Ocasionalmente, uma ou outra novidade familiar: um filho que nasceu, um primeiro dente ou primeiras palavras das crianças, a saúde de todos mas, acima de tudo, a saudade.
A partir de certa altura comecei a divagar, tudo aquilo me transportava para a infância. Tentava encontrar algo a que me agarrar, uma ponta que me permitisse desenrolar a meada das minhas recordações, mas sem sucesso. Tudo o que sabia tinha sido contado pelos meus pais adoptivos: nasci em casa, na Fuzeta, filho de uma família de pescadores; o meu avô paterno morreu no mar durante a II Guerra Mundial, ao que consta afundado por um submarino alemão, a minha avó paterna pouco tempo lhe sobreviveu, com tuberculose. Dos meus avós maternos pouco ou nada se sabia, apenas que viviam na serra algarvia e por lá viveram sempre. Do meu pai e da minha mãe, apenas o seu destino. Era pouco, mas sempre tinha chegado.

A princípio nem liguei, tentava perceber se realmente me lembrava de algo em concreto em relação aquele período da minha vida ou se seria tudo imaginação, estava distraído, era apenas mais um nome de mulher. Subitamente, algo me chamou a atenção e voltei atrás na gravação.

- Alda das Dores Saraiva, para o marido, Celso João Vicente, a bordo do Aliseo, na Terra Nova. – Pausa. Era o nome da minha mãe e do meu pai! Fiquei a olhar para o leitor de cd’s, sem reacção. Teria conseguido?
Hesitei quanto a voltar a ouvir a gravação. Precisava mesmo daquilo?

quinta-feira, abril 20, 2006

Uma Vida Demorada (2)

Nem sempre fui uma pessoa mal-humorada e de trato difícil, mais novo, era apenas um miúdo triste. À medida que cresci, cresceu comigo uma revolta, algo que me fazia estar de mal com o mundo, estar de mal comigo. E assim, tornei-me numa pessoa amarga. À minha volta, apenas terra queimada. Nunca deixei ninguém aproximar-se, nunca fui capaz de uma verdadeira relação, fosse ela de amizade, ou mais sentimental.
A Leonor foi a primeira pessoa a, verdadeiramente, conseguir aproximar-se de mim, a ver algo mais, algo que, confesso, nem eu próprio consigo descortinar muito bem.
Ela diz que eu me expresso bem pelas fotos que tiro – não tanto as de trabalho, que essas são mais formatadas por obedecerem a um critério -, mas nas outras, nas que faço por prazer; essas, revelam de mim o que mil palavras não conseguiriam dizer.
Tem mesmo uma teoria para o meu comportamento: perdi os meus pais era muito novo, o meu pai num acidente de trabalho e a minha mãe, com o desgosto, suicidou-se pouco tempo depois. Fui então adoptado por um casal, em 1969, ligado ao regime político da altura – o meu pai adoptivo era director-geral de um organismo público, a minha mãe adoptiva, doméstica. Com o 25 de Abril o meu pai é saneado, perseguido e chega a estar preso durante alguns meses. Perderam quase tudo o que tinham, inclusivamente o prazer de viver. Ele entra em depressão profunda e arrasta a minha mãe. Em poucos anos definham e, em 1983, tinha eu dezoito anos, morreram com poucos meses de intervalo. Eram ainda pessoas novas.
A Leonor diz que eu, com o receio de voltar a perder pessoas de quem gosto, não deixei mais ninguém aproximar de mim.
Nunca tinha pensado nisso assim, nunca procurei razões para o meu comportamento e, inclusivamente, disse-lhe que a teoria dela era um disparate. A verdade é que fiquei a pensar naquilo. Talvez ela tivesse alguma razão, talvez eu não consiga suportar novamente o voltar a ficar sozinho.

Mudei imediatamente de estação de rádio, já chegava de bacalhau por um dia. Procurei uma sintonia que tivesse música de que gostasse, mas sem sucesso. Vasculhei o porta-luvas em busca de algum CD, era o carro da Leonor, um Peugeot 407 SW – grande demais para as necessidades dela, mas “com estilo” – e acabei por encontrar dois: Jane Monheit e Madeleine Peyroux. Não conhecia tais nomes, mas percebi logo que não tinham nada a ver comigo. Lembro-me de ter ficado a pensar que, de facto, tinha tão pouco em comum com ela, que talvez a coisa entre nós pudesse dar certo.
Já com uma ponta de irritação a aflorar-me a pele, acabei por voltar à TSF. Se aquele dia estava a ser dedicado ao esforço de mudança, então que me esforçasse mais um pouco.

Decididamente, mais do que nunca, o meu passado perseguia-me. Havia uns meses que, quais fantasmas, memórias da infância que eu sempre mantive arrumadas bem fundo dentro de mim, coisas que me esforcei muito por esquecer, me assaltavam o espírito.
O meu pai biológico era pescador de bacalhau. Natural da Fuzeta, nascido numa família de pescadores, manteve a tradição. Ausentava-se por longos períodos de tempo, na Terra Nova. Morreu no mar quando, no regresso, porões carregados, o barco não suportou uma violenta tempestade e afundou. Já o meu avô paterno tinha morrido no mar.
Quando a minha mãe não suportou a perda do marido e se matou, deixando-me entregue à minha sorte, não fui capaz de perdoar ao peixe. Acho que, assim, foi mais fácil: perdoei o infortúnio do meu pai e o egoísmo da minha mãe; concentrei o ódio, a amargura e o remorso no elo mais fraco, na origem de tudo, no bacalhau.

No rádio, um ex-pescador explicava como o Estado tinha criado a chamada Tropa do Bacalhau, composta por homens que, a troco de umas quantas campanhas de pesca, se livravam da ida à tropa em tempo de guerra colonial. Dizia ele que a violência da actividade era tal, que muitos se arrependiam da troca.
A reportagem era sobre a recolha de testemunhos de ex-pescadores levada a cabo pelo Museu Marítimo de Ílhavo, no sentido de preservar uma memória do que, em tempos, tinha sido uma actividade importante da economia nacional.

Leonor, entretanto desperta sem que eu desse por isso, passou-me a mão pelo cabelo. – Que coisa, João, mais bacalhau. E tu a ouvires.

- Começo a achar que não é por acaso, sabes? – Ficámos a ouvir em silêncio. Ela cheia de vontade que eu me explicasse mas, conhecendo-me, sem nada dizer, dando-me tempo.

Nessa noite não fiquei com a Leonor, desculpei-me com uma dor de cabeça e cada um foi para sua casa. Queria, precisava, ficar sozinho. Havia algo que tinha ficado daquele dia que me perturbava.
Tirei a garrafa de Bushmills do armário e servi uma dose generosa. Sentado na escuridão da sala, fiquei com o copo na mão, a sentir o perfume da bebida… da tentação. Queria pensar em algo que não sabia muito bem o que era, mas não me conseguia concentrar. Ponderava se havia de beber ou não.
Havia um detalhe da reportagem que não me saía da ideia: naquela altura, a RDP tinha um serviço, conhecido como a Hora da Saudade, que permitia às famílias dos pescadores o envio de curtas mensagens para os familiares embarcados. Um pouco à semelhança do que a RTP veio a fazer, poucos anos depois no sentido inverso, que era o envio de mensagens dos soldados em África para as famílias - adeus, até ao meu regresso.
Não conseguia deixar de pensar na possibilidade de existir algum telegrama falado da minha mãe para o meu pai.
Na reportagem, tinha sido dado particular destaque à Fuzeta, minha terra natal, que deu muitos dos seus filhos ao mar. Era das principais localidades ligadas à pesca longínqua e muitas das gravações existentes tinham sido lá feitas. Deveria eu procurar? Afinal, eram apenas breves segundos de palavras ditas à pressa, com péssima qualidade de som.
Até esta altura, com 41 anos, nunca tinha sentido necessidade de saber mais sobre os meus pais biológicos, na verdade, por muito que custe admitir ou mal que possa parecer, sempre considerei como meus verdadeiros pais a família de adopção.
Por eles, senti ódio aos revolucionários de Abril. Devolveram-nos a liberdade. Mas que liberdade? A de, impunemente, acabar com a vida de um homem honesto e trabalhador, que nunca tinha feito mal a ninguém?
Lembro-me de ter proposto a ida para o Brasil, muitas das pessoas ligadas ao Regime estavam a partir e nós podíamos ir também, começar lá de novo. Mas o meu pai recusou terminantemente essa hipótese, dizia-se de consciência tranquila, que não tinha razões para fugir do seu país, pelo qual tinha dado tanto. Mal sabia que seria preso poucos dias depois e que isso o destruiria, condenando-o a um estado apático e de prostração do qual não recuperaria.
Mas agora, apresentava-se uma chance de saber algo mais dos meus pais naturais. Deles pouco sabia: nome, local de residência, nome do barco em que o meu pai perdeu a vida, data da morte da minha mãe, pouco mais que isso. Coisas que me tinham sido contadas pelos pais adoptivos, que nunca me esconderam nada sobre o assunto.
Memórias dessa altura não guardo, apenas uma ténue ideia da minha mãe, de uns cabelos longos e negros, de sofrimento, de dor. Associo esse período a choro, a uma urgência que não consigo explicar nem entender. Recordo-me de haver pressa.

Bebi de um trago o conteúdo amarelado do copo e fui despejar o líquido da garrafa na sanita.


A reportagem da TSF é real, chama-se “Pescadores de Memórias” e pode ser ouvida aqui.


terça-feira, abril 18, 2006

Uma Vida Demorada (1)

A escura parede líquida aproxima-se rapidamente. Entre o cinzento carregado da água e o do céu, uma fina linha branca de espuma no topo da vaga.
Balançando suavemente, o barco aguarda o embate iminente. Na ponte, o Mestre da embarcação, olhar perdido que já nada vê para além do vidro encharcado à sua frente, nada mais pode fazer e o Segundo Oficial, agarrado ao leme, reza de olhos fechados e cabeça baixa. Os restantes homens aguardam o seu destino no interior da embarcação, em silêncio.
Subitamente, são sacudidos com violência e ninguém consegue manter o seu lugar; alguns rebolam no chão de madeira. Objectos são lançados pelo ar.
Impotente perante tão grande massa de ar, cede. Há água por todo o lado; a casa das máquinas é inundada e o motor pára. Sem controlo, o barco está perdido. Chegar aos Dóris é impossível e também não adiantava, todos sabem disso.
Ouvem-se gritos de desespero. Alguns, num derradeiro esforço, tentam alcançar o convés.
A água invade todo o espaço em segundos, o barco afunda-se levando consigo a tripulação. O último centímetro cúbico de oxigénio é empurrado para fora. A luta pela vida está a terminar.
E depois, lá estou eu, sentado num beliche, assistindo a tudo, tranquilamente. Não me estou a afogar, sinto-me seguro.
Sinto, então, uma mão que, vinda das profundezas, se agarra à minha canela. Puxa-me para baixo. Sou tomado pelo pânico, debato-me com quanta força tenho, tento agarrar-me a algo, mas não consigo, aquela mão é poderosa e leva-me com ela para o fundo. Afogo-me também.

Engasgado com saliva, acordo a tossir violentamente, completamente encharcado em suor. Tacteio à procura do interruptor e acendo a luz. O relógio marca 4h07.
Dormi pouco mais que três horas e sei que não vou dormir mais. Há já vários meses que é assim.

* * *

Tudo começou quando me ofereci para ajudar. A minha cabeça estava longe dali mas, pela Leonor, fiz o impossível por me integrar, por ser simpático, por participar, em vez de, como é habito, pegar na bebida mais alcoólica à disposição e enfiar-me em qualquer canto onde, espero, ninguém me chateie. Percebi, há algum tempo, que o álcool ajuda o tempo a passar.
Mas, daquela vez, decidi fazer um esforço sério para que fosse diferente. A Leonor vinha a pedir-me isso há mais de uma semana e levou toda a viagem de Lisboa ao Bombarral a implorar-me para que fosse “minimamente sociável” com os seus amigos.

- Há alguma coisa em que possa ajudar? – Perguntei eu à porta da cozinha. Fez-se silêncio, todos pararam olhando na minha direcção. A estupefacção era geral.
- Bom, podias desfiar estas postas de bacalhau. – Respondeu a Matilde, um pouco hesitante, sem saber se eu estava a falar a sério ou já tocado pela bebida.

A Leonor tentou intervir, oferecendo-se para ser ela a desfiar o peixe enquanto eu tratava da salada, mas não aceitei a troca. Se é para “socializar”, então que faça o que me é pedido… por muito que isso me custe.
Isto porque eu odeio bacalhau! Não falo em o comer, coisa de que não me lembro de alguma vez ter feito (mas que sei que fiz em pequeno). Eu não suporto sequer a ideia de olhar para ele. No supermercado, evito sempre passar pelo sítio onde está exposto e, há umas semanas, durante um noticiário televisivo, mudei de canal quando a reportagem foi sobre o perigo de extinção da espécie. A notícia agradava-me, as imagens causavam-me repulsa.
E agora, prova suprema, ali estava eu, o namorado mal disposto, antipático e insuportável, tolerado apenas porque andava com a Leonor – uma jóia de pessoa -, tentando, pela primeira vez, mostrar que era mais que isso, sujeitado a tão duro teste.
Aceitei-o, havia que mostrar que alguma coisa a Leonor tinha visto em mim para que me aturasse há mais de dois anos.
Se me recuso à desfia do bacalhau ia ter que explicar esta minha estranha aversão. A juntar a todos os outros defeitos, ia passar a ser também maluco, o que, não sendo absolutamente errado, é manifestamente um exagero.

- Ora venha de lá esse bacalhauzinho. – Disse eu, tentando controlar as tripas e a respiração pela boca. – De desfiar não me importo, mas de comer não sou capaz, fico-me pelo prato de carne, vão ter que me perdoar.

Perdoaram e, modéstia à parte, fiz um bom trabalho. Durante a refeição estive atento e apenas vi duas espinhas pequenas serem encontradas no Bacalhau com Natas. Peles do gadídeo, nem vê-las.
Também me portei bem na confraternização. Participei nas conversas, misturei seven up no vinho e na cerveja, rejeitei o whisky digestivo. Confesso que, ao contrário das outras vezes, até achei os amigos da Leonor pessoas respeitáveis. É que o álcool não ajuda só o tempo a passar mais depressa, pelos vistos, distorce também a percepção que temos dos amigos das nossas namoradas.

A Leonor estava no céu, claro. Não a via sorrir tanto desde o início da nossa relação. Achei-a mais linda do que nunca, o que, se não fosse por mais nada, já tinha valido o meu esforço em ser simpático e em ter desfiado o bacalhau.
Conhecia na redacção do jornal. Eu tinha ido entregar as fotos em mão, o que é muito raro, e ela lá estava. Trabalhava para o escritório de advogados do jornal e tinha lá ido falar com um jornalista por causa de um processo de liberdade de imprensa em que ele era arguido.
Era também muito raro o advogado ir à redacção e isso ajudou-me a convencer que o nosso encontro não fora só uma coincidência.
Dois anos e meio depois, continuava a ser para mim um mistério o que aquela advogada de sucesso e extremamente bonita, tinha visto num tipo como eu, um mísero fotografo free-lancer, especializado em fotografia de desporto, sem qualquer vida social, com problemas de relacionamento – excepto com o álcool -, de feitio difícil, mal disposto, antipático e, geralmente, insuportável… sim, os amigos dela tinham razão, admito-o.
Pela aparência também não podia ser, que estou longe de qualquer ideal de beleza. Durante muito tempo, achei que era por eu ser mais velho. Tinha, na altura em que nos conhecemos, 39 e ela 35. Ela sempre contestou isso. - O que quer que seja que eu sinto por ti, não se explica, sente-se. - Responde-me sempre ela.

Naquele final de tarde, no regresso a Lisboa, enquanto eu conduzia, olhei para ela. Dormitava ao meu lado, os últimos raios de um sol primaveril batiam-lhe de frente, realçando as dezenas de pequenas sardas que lhe salpicavam o nariz e a as bochechas; o cabelo castanho claro cai-lhe pela face. Parecia sorrir.
Sabia-a feliz e prometi a mim mesmo fazer um esforço sério para merecer o que quer que fosse que ela sentia por mim.
Liguei o rádio, coloquei o som baixo e sintonizei a TSF, eram 20h00 e queria ouvir as notícias.
Nada se tinha passado naquele último domingo de Abril. Acabei por me distrair e deixei de prestar atenção ao rádio, até que, minutos depois, algo chamou a minha atenção: alguém parecia estar a tentar colocar uma cassete no leitor, só que o carro tinha leitor de cd’s.
Olhei para a Leonor, continuava a dormir. Uma voz rouca de homem começou a cantar. Percebi então que o som vinha das colunas, era o início de uma reportagem da TSF. Nada mais, nada menos, que sobre a pesca de bacalhau!

terça-feira, abril 11, 2006

Na Corrente

Apanhado que fui nas Correntes, aqui me deixo ir ao sabor delas. Apanhou-me a Mipo e a Sara MM nesta primeira (Sara, sei que não foi bem nisto, mas tu não te importas, pois não?).

O que estava a fazer há 10 anos atrás?

Em 1996 mudei de emprego. Era já a segunda daquilo que se veio a tornar uma longa sucessão de mudanças infelizes – que só terminou com a mudança de ramo de actividade.
Nesse ano comemorei, finalmente, o meu primeiro aniversário de namoro. À semelhança dos empregos, viria a ser a primeira de uma longa série… mas de comemorações, e em bom, o que é fantástico.

Foi nesse ano que assisti a um dos melhores concertos da minha vida: Smashing Pumpkins, na Praça de Touros de Cascais, à chuva (digressão do Mellon Collie and The Infinite Sadness).

Pelos vistos, 1996 foi um ano a que não ficou muita coisa associada.

O que estava a fazer no ano passado?

Estava a fazer mais ou menos o mesmo. Depois de uma juventude activa e de uma entrada na vida adulta algo sedentária, decido que há que voltar ao passado, que é tempo de me pôr a mexer mais. Arregaçadas as mangas, as coisas correm bem ao início. Até que…
Num jogo de futebol acabo por me lesionar com gravidade, o que me fez estar mais de um mês sem andar. Sem conseguir sequer aguentar-me de pé, precisei andar sempre agarrado a canadianas. Pude, então, saber o que é ficar dependente de terceiros - mesmo para as coisas mais simples.
De alguma maneira, decido começar a escrever “mais a sério” devido ao tempo livre a que a lesão me obriga.
Faço uma recuperação à pressa por ter umas férias - há muito antecipadas – já marcadas e pagas, e, no aeroporto, a empurrar o carro com as malas, confiante na recuperação, momentaneamente esquecido do sofrimento passado… faço outra lesão. Passo as férias saltitando de um sítio para o outro…
Um ano depois isto ainda não está famoso.

5 snacks de que gosto

Não sei se são snacks, mas é do que me lembro: tremoços, sementes de girassol e sementes de melão - não me lembro de mais nenhum.

5 letras de músicas que sei de cor

Aqui, se calhar, podiam ser 50:

1. Fade to Black – Metallica: em 22 anos (gulp) ouvi-a muitas vezes;

2. Sanvean – Dead Can Dance: não é instrumental mas letra não tem, o que me permite inventar sempre algo novo de cada vez que a oiço;

3. A Letter to Elise – The Cure: as cinco músicas não chegavam só para as que conheço dos The Cure. Porquê esta? Nem sei bem, talvez por ser menos conhecida;

4. Uncle June and Aunt Kiyoti – Kristin Hersh: porque gosto da simplicidade da música, porque gosto da Kristin. Podia acrescentar outras músicas dela;

5. Fotos do Fogo – Sérgio Godinho: porque ele sabe escrever;

6. Vision Thing – The Sisters of Mercy: para, assim, poder falar no concerto da semana passada que, com muita pena minha, deixou algo a desejar. Não é qualquer banda que, estando há 16 anos sem editar, consegue encher o Coliseu. Só que eu – e acho que a esmagadora maioria - fui numa de celebração e eles numa de picar o ponto… ou isso, ou querem manter uma atitude de distância que, parece-me, não faz hoje muito sentido;

Reparo que já vou em seis, mas ainda vou acrescentar uma sétima:

7. O Carteiro – Conjunto António Mafra: porque a minha mãe me cantava isto em pequeno e, muitos anos depois, surpreendi-me a saber ainda a letra quando a ouvi por acaso.



chegou o carteiro, das 9 p’rás 10
e a vizinha do lado, roupão enfiado,
chegou-se à janela em bicos de pés
e logo gritou “trás carta p’ra mim”?
e o carteiro, que é gago, espera um bocado
e responde-lhe assim
“n-n-n-n-n não não trago nada, só só só só só só
só trago o pacote da sua criada

5 coisas que faria se fosse milionário

Antes de mais, dizer a quem se dedica a “inventar” estas correntes, que precisa de ser mais original, mais criativo. Questões destas não são muito estimulantes de responder.

Criava uma fundação para distribuir coisas (não dinheiro) por instituições de apoio a pessoas carenciadas; mudava de casa; viajava; viajava e, finalmente, viajava mais um bocadito.

5 coisas que gosto de fazer

1. Fotografar. Gosto de andar por aí, câmera na mão, à procura de fotos. Ando horas a fio pela cidade. Distrai-me, entretém-me. Permite-me ficar a conhecer melhor os sítios, aprendo a vê-los sob outro ponto de vista; descubro neles coisas novas. E, também, permite que me conheça melhor. Sendo algo essencialmente solitário, falo comigo, faço perguntas a mim próprio: então, pá, como é isso vai?

2. Dar a volta ao texto. Ou seja, “pegar” em personagens que todos conhecemos dos clássicos (e não só), e inventar as suas verdadeiras histórias.
O Homem-Aranha? É um português emigrado nos Estados Unidos. Nascido em Fornos de Algodres, Pedro Caneta vivia com a família por cima de uma jazida de volfrâmio radioactivo, sem o saber. Um dia, a brincar às escondidas com o amigo Eufrázio, entrou numa gruta próxima, que dava acesso à jazida. Lá, foi picado por uma aranha contaminada pela radiação, o que, conjugado com as sopas de cavalo cansado feitas com pinga caseira, lhe alteraram o ADN.
Farto de ser gozado pelos amigos (Eufrázio incluído), foi viver para casa de um tio, em Hartford, Massachussets. É que não é fácil para um miúdo pequeno que deita teias de aranha pelo nariz cada vez que espirra, lidar com a situação.
Uma vez nos states, mudou de nome e foi trabalhar como servente de pedreiro. Cedo percebeu que estava na terra das oportunidades e que poderia ganhar muito mais como super-herói…
Tivesse eu tempo, contava-vos como a Barbie se envolveu com o GI Joe, levando o Ken a uma profunda introspecção, inclusivamente, sobre a sua sexualidade;

3. Faço o mesmo às letras das canções. Mas como foge sempre para as obscenidades e o texto já vai longo, vou poupá-los a exemplos;

4. Comer. Gosto do convivo à refeição. Infelizmente, sou muito dado à retenção calórica e todo o cuidado é pouco. Gosto das coisas simples, só precisam ser boas;

5. Conhecer pessoas. Sendo muito tímido, nunca tive qualquer jeito para isso. O que é uma pena com que vivo.

* * *

Aproveito o balanço o respondo já a um outro desafio feito pela th, da Sebenta.

4 empregos que já tive

1. Nas férias, rapaz novo, andava pelo país, de TIR, a distribuir papel higiénico, guardanapos, rolos de cozinha e afins. Era de tal maneira violento, que me interrogo hoje porque é que o fazia;

2. No Algarve, há muitos anos, fui empregado de mesa. Sem qualquer experiência, com uma desculpa esfarrapada e mentirosa, fui deixado sozinho na sala do Restaurante Don Jota (entretanto perdido num incêndio), na foz do Guadiana.
Quando os clientes se iam embora era bom, ia até ao posto da Brigada Fiscal olhar para a lua pelos potentes binóculos com que eles controlavam as matrículas dos barcos que entravam no rio. Enquanto os clientes não iam embora, eu tinha muita pena deles;

3. Taxista. Ah pois sim, andei lá uns meses. Sendo uma profissão muito mal vista pela maioria das pessoas, não consigo partilhar dessa opinião: vivendo as coisas, tem-se outra perspectiva das mesmas – há uns quantos trafulhas por lá, mas não os há em todo o lado?

4. Certamente que alguns de vocês fizeram colecções de cromos. Alguma vez se interrogaram sobre como é que os cromos iam ter dentro das carteiras? Pois é, alguém as tinha que meter lá dentro (não sei se hoje já se faz mecanicamente, mas há 15, 20 anos atrás, era à mão).
Não fiz vida disso, claro, mas uns bons milhares passaram-me pelas mãos. O suficiente para matar a minha vontade de coleccionar cromos;

5. Vendedor de serviços de comunicações móveis (pacotes de minutos, simplificando um pouco). Era tão simples quanto isto: após dois dias de formação, íamos para a rua angariar clientes… bater à porta de tudo o que fosse empresa.
Felizmente, no segundo dia chamaram-me para outra coisa. Jamais me safaria naquilo.

4 sítios onde vivi

1. Amadora. Apesar de tudo, gosto daquilo, o que fazer. Foi lá que cresci, foi lá que quase tudo aconteceu;

2. Monte Gordo. Acabado o curso, duas semanas depois estava numa camioneta da Renex (que demorou 12h a lá chegar…); precisava virar costas a isto, mudar de ares. Acabei por lá ficar 12 vezes mais tempo do que o inicialmente previsto.
Estava a viver sozinho, a cinquenta metros da praia, a cinco minutos a pé do emprego. Os verões são memórias vagas; dos Invernos lembro-me muito bem;

3. Lisboa. O que dizer, tanta coisa que me entristece, mas é a minha terra e gosto muito dela. Tem sítios que nem imaginam… e há uns quantos ainda que me faltam descobrir.

Poupo aqui o que gastei a mais com as músicas.

4 filmes que voltaria a ver

1. O Homem Elefante, David Lynch. Porque é lindo na maneira como trata o que a nós nos parece feio. Nunca julgar o livro pela capa.

2. Dear América: Letters Home From Vietnam, Bill Couturié. Documentário em que alguns actores lêem em voz-off cartas enviadas por soldados. As imagens são a propósito, muitas vezes dos próprios soldados ou situações relatadas. Confronta-se o que foi escrito com o que viria a acontecer. Uma lição a que ninguém devia ficar indiferente.

3. Se7en, David Fincher. Porque está muito bem filmado. Porque está muito bem escrito.

4. O Silêncio dos Inocentes, Jonathan Demme. Sendo um filme parecido ao anterior, as razões são as mesmas.

4 pratos preferidos

Gosto da nossa Cozinha. Deles todos.

4 séries que nunca perco

Perco-as todas, muitas vezes. Mas tento ver:

1. Os vários CSI’s. Apesar dos argumentos básicos demais;

2. Simpsons. Gosto do desatino da família amarela, da caricatura que é;

3. South Park. Como as crianças são inocentes…

4. Os Sopranos. Dizem palavrões, são gordos, alguns carecas. Não gostam de quem se atravessa entre eles e o dinheiro e actuam em conformidade.

4 sites que visito

1. Noticiosos, muitos;

2. Blogs, alguns;

3. Correio, são três;

4. Trailers de filmes, o da Apple.

E acho que está tudo. Ficam a saber que não foi fácil, falar de mim nunca é.
Consegui uns dias de férias e vou amanhã para fora, longe da Internet. Volto para a semana. Nestes dias, vou tentar passar para o papel algumas ideias que me andam às voltas na cabeça.
Beijos e abraços.

sexta-feira, abril 07, 2006

Ainda a Arminda

Várias foram as pessoas que manifestaram o desejo de que a história da Arminda tivesse continuação, que haveria mais a contar.
Percebe-se que sim, que muitas coisas podiam ainda acontecer: o narrador conta à Arminda o que sabe do pai; à mãe dela sobre o pai da filha (à mãe sobre a filha?) e depois, o que fazem elas com essa informação? Outros ingredientes poderiam ainda ser adicionados à história.
Então porque não o fiz eu? Porque na minha cabeça, esta história começou pelo fim: com uma portuguesa no Red Light District de Amesterdão. Esse seria o ponto de chegada. “Entretive-me” depois a conceber uma vida que a conduzisse ali.
Quando me surgiu o final da história, deixando uma série de coisas em aberto, não me preocupei muito com isso, afinal, já tinha levado o barco a bom porto - e depois, assim, cada leitor pode imaginar o que aconteceu a seguir.
Ao longo do texto, alguns comentários foram no sentido de a história precisar de acabar “bem”. Tendo acabado como acabou, não sei se foi “bem” ou nem por isso, acabou como eu tinha imaginado. O que é que vocês acham?

Uma palavra para quem está a pensar que eu não tenho que me justificar, que tenho que escrever o que quero, como quero.
Eu sei disso, claro, mas não encaro este texto como uma justificação, não no sentido estrito da palavra pelo menos, é mais uma “troca” de impressões com quem tem a amabilidade de manifestar uma opinião – se assim eu aprender alguma coisa, ainda bem.
Não sou escritor, nem ambiciono vir a ser um, gosto de escrever e faço-o sempre que posso. Se o conseguir fazer melhor… melhor.

Este texto não era para ter acontecido, mas não quis deixar de dar uma palavra a quem leu a última história.
A quem já pede a próxima digo que, antes disso, tenho uns desafios para superar: daquelas famosas correntes que me pediram que respondesse.

Obrigado a todos.

terça-feira, abril 04, 2006

O Olhar de Arminda (X)

Na origem do topónimo Espinhosela está a palavra latina Spirum, que significa Espinho, derivando depois para Espinhosela. Diversos achados arqueológicos colocam a sua origem em épocas muito recuadas, por alturas da idade do ferro.
Hoje em dia, a aldeia não tem 300 habitantes, continuando a viver, a maioria deles, da agricultura, em especial da produção de castanha.
Não são muitas as habitações, a maioria espalhadas ao longo da estrada principal e rodeadas de campos cultivados, que as chuvas de início de primavera tornaram particularmente verdes.

Estacionei junto à Igreja Matriz e fui até ao Cruzeiro, bem no centro do largo da aldeia. À minha frente, podia ver a Bedford de Laureano, rodeada pelas mulheres que se aproximavam. Lá estava a jovem Arminda, no adro da igreja, aguardando o momento de receber as suas revistas.
Trinta anos depois, pouco parecia ter mudado em relação à memória que ela guardava do local e que me tinha descrito há duas semanas atrás, bem longe dali.
A conversa que tinha tido com ela não me saíra da cabeça. Nada lhe disse, mas tinha decidido procurar a sua mãe. Agora, ali, questionava mais uma vez o direito que eu, um estranho, tinha de interferir na vida destas duas pessoas. Afinal, aquela mulher apenas tinha desabafado comigo, nada me pedira.
Ou teria pedido, ainda que por outras palavras? Não alimentaria ela a esperança de que eu fizesse alguma coisa quando me contou a mágoa que tinha por se ter afastado da mãe, a única pessoa em toda a sua vida por quem tinha conseguido sentir amor?

- Sabes, tive muita gente a gostar de mim. Muitos homens fizeram-me juras de amor, prometeram tirar-me desta vida e amar-me incondicionalmente. Recomeçar de novo… Nunca lhes disse mas, dentro de mim, não há amor, nada… apenas um grande deserto de sentimentos para com as outras pessoas. Sequei, sabes? Não te sei explicar, mas sou incapaz de uma relação. Ao fim de pouco tempo só consigo sentir repulsa pela pessoa… não penses mal de mim…

Eu não pensei, apenas tive uma pena imensa dela.

No café “Cova da Lua” indicaram-me onde Francelina morava. Estava viva e de saúde, segundo me contaram. Vivia ainda na mesma casa de onde, um dia, a sua filha tinha partido.
Entreabriu a porta desconfiada; o olhar era muito vivo e penetrante para alguém já com setenta anos. Mirou-me de alto a baixo antes de aceitar falar comigo.

- Ao que vem vossemecê?
- Queria falar consigo… sobre a sua filha.
- O que tem a minha Arminda? – Havia ansiedade no seu rosto.
- Não se preocupe, ela está bem. É que eu conhecia há pouco tempo.
- Esteve com a minha menina?

Entrei e, com Francelina sentada junto à janela a olhar para o exterior, contei-lhe como, por acaso, me tinha encontrado com a filha na Holanda. Que ela estava muito bem, continuava bonita, que era uma mulher de negócios – omitindo, claro, o ramo de actividade -, que estava muito bem na vida. Nunca tinha casado e não tinha filhos.
A velhota escutou-me em silêncio, nunca me interrompendo. Apenas quando terminei me dirigiu a palavra.

- Vossemecê tem que me desculpar, nem lhe ofereci nada para comer ou beber. Tenho aqui um salpicão como nunca provou.
- Não se incomode, eu estou bem. Aceito é um copo de água.
- Sabe, naquela altura, quando ela saiu de casa, ouvi muitas histórias… que ela não estava no Porto, que tinha ido para Espanha, para uma casa onde… como é que eu lhe explico?

Fiquei a saber dos boatos que, nos primeiros tempos, correram sobre a filha, sempre nas suas costas, sempre à boca pequena. Francelina nunca lhes deu importância, nunca lhes respondeu; como o poderia fazer se eu não tinha como saber a verdade? Tinha rezado muito, que era a única coisa que estava nas suas mãos.
No seu íntimo, disse-me, sentia que os boatos podiam verdadeiros; sabia que havia muita gente ruim no mundo capaz de se aproveitar da ingenuidade e inocência da filha.

- Não pense que eu acho que era uma santa, porque não era. Havia algo nela, sabe, algo que lhe veio do pai… um desassossego, não sei que outro nome lhe dar. Lidei com ele pouco tempo, mas o suficiente para o conhecer bem… Ela tinha o olhar do pai, sempre lá longe… eles viam outras coisas, queriam outras coisas.

Contou-me como o tinha conhecido, da gravidez e consequente desaparecimento dele. Contou-me de como tinha inventado a sua morte, algo que a filha desconhecia. Foi melhor para todos.

Mais uma vez me eram confessados segredos há muito guardados. Também aquela mulher tinha necessidade de falar. E fê-lo como se eu ali não estivesse. Olhava pela janela e como que pensava alto.

Uma inquietação tomou conta de mim quando Francelina falou do olhar da filha. Um arrepio percorreu-me as costas.
Recordava a intensidade do olhar de Arminda quando, no café, reconheceu o velhote. Uma intensidade que eu nunca vira antes, era como se, subitamente, dois faróis se tivessem acendido. Mas, ao mesmo tempo… onde é que eu já tinha visto essa mesma intensidade?

- Quer ver uma fotografia dele? – A pergunta apanhou-me distraído.
- Desculpe, não percebi.
- Perguntei-lhe se quer ver uma fotografia do pai da minha menina.

Revolveu várias gavetas para achar a foto. – Esta minha cabeça, já ando muito esquecida.
A minha fervilhava. Conseguia disfarçar mal alguma excitação. A história daquelas pessoas revelava-se mais complexa do que parecia.

- Encontrei-a, está aqui! – Exclamou a mulher, segurando um pequeno pedaço do que me pareceu ser papel vegetal, que me passou para a mão.
Desembrulhei cuidadosamente a foto. Dava ideia de não ser mexida há muito tempo.
Um quadrado de papel amarelecido apareceu, nele, umas letras azuis de carimbo, já muito sumidas, mas que ainda permitiam ler: Foto Matos – Chaves.
O rosto era o de um jovem muito bem parecido. O olhar, eu já o tinha visto. Naquele momento eu soube: era o olhar do velhote quando, em Amesterdão, reconheceu a mulher que gritava para ele, o homem que tinha comprado Arminda e que a tinha iniciado na prostituição. O pai dela.

O empregado do café, tinha-nos contado que o velhote era visita habitual há uns anos, que vinha várias vezes buscar algumas sobras de comida. Certa vez tinha-lhe contado que era perseguido no seu país: um negócio de importação que tinha corrido mal e que, como era na Holanda que se abastecia – um país que conhecia bem -, tinha-se mudado para lá com o pouco dinheiro que tinha conseguido salvar.


- Que foi homem, parece que viu um fantasma, vossemecê está branco.
- Ah… não, não é nada… mais alguma vez soube dele?
- Uns anos depois o meu irmão voltou a vê-lo em Chaves, num grande carro. Parecia que a vida lhe corria bem. Mas foi só isso.

Não fui capaz de lhe contar. Precisava pensar. As coisas eram bem mais complicadas do que eu podia imaginar. Não tinha sido boa ideia interferir.
Pedi desculpa, que já estava atrasado para um compromisso urgente, disse que voltava no dia seguinte e saí.
Francelina ainda me perguntou o que tinha eu lá ido fazer, mas eu não lhe respondi. Naquele momento, não tinha resposta para lhe dar, também eu não sabia.

Fui ao sítio que Arminda me contou ser o seu preferido, bem no cimo da Serra. É aqui, sentado num calhau, a olhar para norte, perante a paisagem que a fazia sonhar, que escrevo estas palavras.
Não consigo deixar de pensar nos caprichos da vida: naquilo em que se tornam os sonhos de uma miúda que era maior que o local onde nascera e crescera e em como fizeram de mim o elo de ligação entre a vida dela, da mãe e do pai. Está nas minhas mãos o fio condutor que pode fazer com que cada um saiba do outro.
Seria mais fácil se se tratasse simplesmente de reunir uma família que o tempo tinha separado. Era bem mais complicado que isso, havia muito mais em jogo.


É um direito que eu tenho, ou um dever? O que faço eu com aquilo que sei?
Não quis nada disto mas, ao procurar Francelina, acabei por me envolver. Agora não posso fingir que não é comigo.
Não sei o que faça, sei apenas que não tenho muito tempo para decidir.

Neste local, é fácil perceber como a rapariga descia à aldeia com o horizonte no olhar. Mas esse horizonte há muito que se desvaneceu. Agora, o olhar de Arminda não ia para além do tecto.

Fim.