quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Mar de Penas

Leontino Pascual é um fora-da-lei. Quem o vê, não imagina estar perante um infractor: cabelo grisalho, já mal semeado no couro cabeludo engelhado e às manchas castanhas, caminha lentamente, curvado sobre si, apoiado numa bengala velha e sebosa. Vai na direcção do Miradouro do Monte Agudo, atento à calçada que pisa, sempre pródiga em surpresas desagradáveis. Não precisa olhar em frente: era capaz, se a isso fosse obrigado, de palmilhar o trajecto entre a Rua do Triângulo Vermelho – onde mora – e a Rua Heliodoro Salgado – para onde se dirige – de olhos fechados. São muitos anos de passos perdidos na Penha de França.
Na mão esquerda, o sempre presente saco de plástico, onde transporta a “arma do crime”: milho. Sentado num dos bancos de jardim do miradouro, Leontino tem o péssimo hábito de dar milho aos pombos, enquanto pensa na vida e fala sozinho. Zelosa na sua tarefa de proteger a saúde pública, e por manifesto fastio provocado por uma vida solitária em que nada parecia acontecer, uma moradora das redondezas fez queixa contra o velho. Assim, foram duas vidas fastidiosas e vazias, em que nada acontecia, que foram perturbadas: a dela – pouco, que a coisa resumiu-se a ir à esquadra apontar o dedo ao “bandido da bengala” – e a de Leontino, que teve o azar de o processo ir aterrar na secretária do delegado do Ministério Público com maior taxa de produtividade (e o mais salazarento de todos) e lhe deu seguimento.
A acusação não foi meiga. No processo – para o qual Leontino não se deu sequer ao trabalho de olhar – podia-se ler que “(…) diariamente, o requerido desloca-se até ao referido local, munido de uma generosa quantidade de alimento (…) os pombos permanecem em atitude expectante à espera da comida (…) logo que o requerido se senta no banco de jardim, os pombos voam do telhado do prédio do nº 60 para o jardim para se alimentarem (…) A aludida alimentação diária dos pombos tem provocado uma elevada concentração de pombos no local, designadamente, no telhado dos prédios circundantes (…) que tem constituído um factor perturbador da vida dos moradores do prédio onde habitam as requeridas e dos prédios circundantes, já que os pombos que ali permanecem têm vindo a inundar de penas e dejectos os telhados, as chaminés e os algerozes, as varandas e os estendais, bem como a rua e as viaturas nela estacionados ou que nela circulem (…) A situação é de tal modo insustentável que, presentemente, mostra-se prejudicada a utilização dos próprios espaços das habitações, em concreto das varandas e dos estendais das roupas, impedindo os respectivos proprietários ou arrendatários de aí se deslocarem ou de estenderem a roupa (…) Por outro lado, a elevada concentração de pombos e a sujidade que provocam, com as penas e dejectos que ali vêm depositando, colocam em perigo a saúde e a qualidade de vida das requeridas, dos restantes moradores do mesmo prédio das requeridas, bem como da dos prédios contíguos, assim como de todos quantos aí têm necessidade de permanecer ou de se deslocar, residentes ou não no local (…).
Seguia-se uma descrição de algumas das doenças e pragas que era acusado de propagar: Histoplasmose, Criptococose, Psitacose, Salmonelose, Piolhos e a Doença do Tratador de Pombos.
Sem apelo nem agravo, foi-lhe fixada ao abrigo do artº 384º, nº 2º, do Código de Processo Civil, e do artº 829º-A, do Código Civil, a fixação de uma sanção pecuniária compulsória no montante de €100,00 por cada dia que alimentasse os pombos.

Escasso de sanidade mental e de finanças, mas a abarrotar de tranquilidade na consciência, Leontino esteve-se a borrifar para a condenação e para os moradores das redondezas. A bem dizer, já nem se lembrava do sucedido – que a polícia nunca tinha vindo ter consigo – quando, sem olhar, atirou uma mão cheia de milho que foi aterrar em cima dos pés da rapariga que todas as tardes se sentava no banco ao lado do seu.
Boquiaberto, não dava pelo fio de saliva que se escapava pelo canto esquerdo da boca. Ultimamente acontecia-lhe muito: distraía-se a pensar em coisas de que logo se esquecia e perdia a noção de tudo à sua volta. Foram os gestos da rapariga a sacudir o milho de cima dos pés, que o trouxe de volta.


– Já aí está… nem a vi. Estava aqui a pensar que a minha vida dava uma novela… dessas que nunca mais acabam, compridas, em que está sempre a aparecer gente nova, só para nos confundir… novas situações. A diferença é que o que lá demora uma data de episódios, na minha vida, acontece tudo muito depressa… A minha mulher já se foi há… sei lá, muitos anos, mas parece que foi ontem que fui com ela ao Mercado de Arroios comprar um melão… gosto muito de melão, sabe… – Leontino atirou a última mão cheia de milho e guardou o saco no bolso do casaco. – Sabe menina, o amor é como o mar, pode ser calmo, mas também pode ser violento; transparente, ou turvo; pode derrubar-nos ou embalar-nos, se soubermos esperar por ele…. É, o amor é como o mar, umas vezes vem, mas também vai.

A rapariga sorriu-lhe, como sorria sempre. Observava o afã dos pombos de volta dos grãos do milho e tentava adivinhar que histórias aquela pessoa lhe contava todas as tardes. Quem seria aquele homem que nada lhe pedia em troca?
De início, ela ainda lhe tinha tentado explicar por gestos, mas ele nunca compreendeu que ela era surda-muda. Naquela tarde, sacudindo farinha de milho dos sapatos, uma ideia assaltou-a subitamente: talvez ele não tenha querido perceber.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

O Glorioso

Josefina sabe que os há de vários tamanhos, cores e feitios. Já esteve até dentro de alguns, mas nunca desfrutou do prazer que dizem que dão. Todos os dias os vê, a toda a hora, muitas vezes: a voar, parados, a andar devagar, a andar depressa; às vezes, até a andar para trás. Já não lhes liga.
A princípio, ficava como que extasiada a apreciar aquelas máquinas fantásticas. Chegava a fingir fazer o que tinha para fazer, só para os observar através das grandes vidraças. Agora já não, de tanto convívio, tinham perdido o interesse.
Passou a interessar-se pelas pessoas que ali estão por eles. Também as há de vários tamanhos, cores e feitios, mas são sempre diferentes. Sempre interessantes aos seus olhos pequenos e atentos.
No passado sábado à noite, por volta das nove, já ela estava para se deitar – que tinha que se levantar antes das cinco, para ir trabalhar e a idade já lhe pedia explicações para tanta noite mal dormida – quando Adolfo, o seu marido, chegou a casa. Ainda ele não tinha colocado a chave à porta, quando Josefina suspirou de alívio. Conhecia-o tão bem que, só pelo som dos seus passos na pedra dos degraus, lhe conseguia adivinhar o humor. E no sábado passado ele vinha contente. “Antes assim”, pensou ela para com os botões da bata aos quadrados amarelos e brancos, que se preparava para despir.


– Então, ganharam?
– Não te preocupes, hoje não te bato – respondeu ele sem que ela percebesse se estava a brincar ou a falar a sério. – Demos duas na pá do Nacional. Foi limpinho.
– Ainda vão ser campeões – respondeu ela, tentando que as suas últimas palavras do dia fossem pela positiva. Não percebia nada de futebol, apenas o que o marido lhe dizia e o que espreitava nos dias em que a TVI transmitia um jogo.

Adolfo já estava na casa de banho a livrar-se da cerveja ingerida nas três horas anteriores, n’”O Glorioso das Galinheiras”, o seu café preferido do bairro e onde assistia aos jogos do seu Benfica, que o orçamento familiar – apenas recheado pela magro vencimento da mulher – não permitia Sporttv’s e outros luxos semelhantes.


– Sabes que a cerveja nunca se compra, apenas se aluga? – entrou no quarto abotoando a braguilha.
– Onde ouviste isso?
– Está escrito na casa de banho d’”O Glorioso”. É bem verdade… Já te vais deitar?
– Amanhã tenho de entrar às seis – o som próximo de um avião a levantar voo, fez estremecer os bibelots de Josefina. Ambos olharam para o tecto e suspiraram.
– Sempre os aviões…

Foram poucas centenas as pessoas que, no Campo João Gualberto Arruda, em Lagoa, ilha de São Miguel, nos Açores, assistiram no domingo à tarde, ao jogo entre a equipa local, o Clube Operário Desportivo e o Sport Lisboa e Nelas, filial número 16 do Sport Lisboa e Benfica.
Aos 59 minutos, Jefferson, marcou para o Nelas, dando esperanças de uma vitória, o que ajudaria a equipa a manter viva a luta pelo primeiro lugar da sua série na II Divisão, ainda para mais, quando o Operário é concorrente directo.
Durou apenas 11 minutos a vantagem, tendo o COD acabado por vencer a partida por 3–1, ultrapassando assim o oponente na tabela classificativa, onde ocupa agora o segundo lugar.
Eram homens desanimados os que chegaram ao Aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, naquela final de domingo. Mais ficaram, quando descobriram que o voo programado para as 21h25 e que os traria até Lisboa, estava tão atrasado que apenas chegariam ao destino na manhã do dia seguinte.

Ao mesmo tempo, nas Galinheiras, Josefina desabotoava novamente a bata para se ir deitar. Tinha sido um domingo esgotante. A bem dizer, nem tinha dado por ele. Nem sequer se lembrava se tinha pensado durante todo o dia. Apesar de ser o dia de descanso da maioria das pessoas, era, sem dúvida alguma, o dia em que tinha mais trabalho. “Talvez uma coisa tenha a ver com a outra”, pensava ela sentada à beira da cama.


– Já vais? – Adolfo gritou-lhe a pergunta do sofá, em frente à televisão. – O homem vai começar a falar.
– Esse tem a mania que sabe tudo. Hoje não quero saber de comentários, estou estafada e amanhã cedo tenho que para lá voltar.
– Os aviões, sempre os aviões…

Ainda não eram sete horas e Josefina já tinha lavado a esfregona toda a zona das chegadas internacionais no Aeroporto de Lisboa. Havia um intervalo de alguns minutos até os passageiros do próximo avião chegarem, e ela dava com força no cabo do seu instrumento de trabalho já junto aos tapetes de recolha de bagagem. “Malditas pastilhas”, pensava ela, rangendo os dentes. As pastilhas eram o seu pior inimigo.
Pouco depois, o televisor por cima da sua cabeça apresentou uma nova mensagem: SATA voo S4 128 Ponta Delgada. Já não faltava muito para que os primeiros passageiros chegassem cheios de pressa. Para mais estes, que deviam ter chagado na noite anterior.
Assim foi, não demorou muito a que as primeiras pessoas aparecessem. Tal como ela suspeitara, vinham com ar zangado, cansadas, dispostas a atropelá-la, caso ela se atravessasse no seu caminho. Foi limpar o chão junto à parede, afastando-se um pouco do tapete. E depois, viu-os.
Era um grupo ainda grande, vinham todos vestidos com um fato de treino vermelho. Ao peito, o símbolo que tão bem conhecia: a águia de asas abertas, em cima da roda de bicicleta. O que o seu Adolfo não daria para estar ali.
Encheu-se de coragem e avançou para um rapaz pequeno, cabelo em desalinho e barba por fazer. Via-se-lhe nos olhos que não tinha dormido nada de jeito, tão inchados estavam.


– Anime-se homem, então não ganharam dois a zero?

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Da Pausa Que Termina, Continuando

devia escrever aqui alguma coisa,

dar uma palavra,

mas sinto como se as tivesse consumido todas,

num altar cheio de vozes.

não é assim,

sei disso.

e sinto o que sei não ser

apenas mais um murmúrio,

que se escapa.

mas eu sei que não é assim,

que devia dar uma palavra.

depois.