Leontino Pascual é um fora-da-lei. Quem o vê, não imagina estar perante um infractor: cabelo grisalho, já mal semeado no couro cabeludo engelhado e às manchas castanhas, caminha lentamente, curvado sobre si, apoiado numa bengala velha e sebosa. Vai na direcção do Miradouro do Monte Agudo, atento à calçada que pisa, sempre pródiga em surpresas desagradáveis. Não precisa olhar em frente: era capaz, se a isso fosse obrigado, de palmilhar o trajecto entre a Rua do Triângulo Vermelho – onde mora – e a Rua Heliodoro Salgado – para onde se dirige – de olhos fechados. São muitos anos de passos perdidos na Penha de França.
Na mão esquerda, o sempre presente saco de plástico, onde transporta a “arma do crime”: milho.
A acusação não foi meiga. No processo – para o qual Leontino não se deu sequer ao trabalho de olhar – podia-se ler que “(…) diariamente, o requerido desloca-se até ao referido local, munido de uma generosa quantidade de alimento (…) os pombos permanecem em atitude expectante à espera da comida (…) logo que o requerido se senta no banco de jardim, os pombos voam do telhado do prédio do nº 60 para o jardim para se alimentarem (…) A aludida alimentação diária dos pombos tem provocado uma elevada concentração de pombos no local, designadamente, no telhado dos prédios circundantes (…) que tem constituído um factor perturbador da vida dos moradores do prédio onde habitam as requeridas e dos prédios circundantes, já que os pombos que ali permanecem têm vindo a inundar de penas e dejectos os telhados, as chaminés e os algerozes, as varandas e os estendais, bem como a rua e as viaturas nela estacionados ou que nela circulem (…) A situação é de tal modo insustentável que, presentemente, mostra-se prejudicada a utilização dos próprios espaços das habitações, em concreto das varandas e dos estendais das roupas, impedindo os respectivos proprietários ou arrendatários de aí se deslocarem ou de estenderem a roupa (…) Por outro lado, a elevada concentração de pombos e a sujidade que provocam, com as penas e dejectos que ali vêm depositando, colocam em perigo a saúde e a qualidade de vida das requeridas, dos restantes moradores do mesmo prédio das requeridas, bem como da dos prédios contíguos, assim como de todos quantos aí têm necessidade de permanecer ou de se deslocar, residentes ou não no local (…).
Seguia-se uma descrição de algumas das doenças e pragas que era acusado de propagar: Histoplasmose, Criptococose, Psitacose, Salmonelose, Piolhos e a Doença do Tratador de Pombos.
Sem apelo nem agravo, foi-lhe fixada ao abrigo do artº 384º, nº 2º, do Código de Processo Civil, e do artº 829º-A, do Código Civil, a fixação de uma sanção pecuniária compulsória no montante de €100,00 por cada dia que alimentasse os pombos.
Boquiaberto, não dava pelo fio de saliva que se escapava pelo canto esquerdo da boca. Ultimamente acontecia-lhe muito: distraía-se a pensar em coisas de que logo se esquecia e perdia a noção de tudo à sua volta. Foram os gestos da rapariga a sacudir o milho de cima dos pés, que o trouxe de volta.
– Já aí está… nem a vi. Estava aqui a pensar que a minha vida dava uma novela… dessas que nunca mais acabam, compridas, em que está sempre a aparecer gente nova, só para nos confundir… novas situações. A diferença é que o que lá demora uma data de episódios, na minha vida, acontece tudo muito depressa… A minha mulher já se foi há… sei lá, muitos anos, mas parece que foi ontem que fui com ela ao Mercado de Arroios comprar um melão… gosto muito de melão, sabe… – Leontino atirou a última mão cheia de milho e guardou o saco no bolso do casaco. – Sabe menina, o amor é como o mar, pode ser calmo, mas também pode ser violento; transparente, ou turvo; pode derrubar-nos ou embalar-nos, se soubermos esperar por ele…. É, o amor é como o mar, umas vezes vem, mas também vai.
De início, ela ainda lhe tinha tentado explicar por gestos, mas ele nunca compreendeu que ela era surda-muda. Naquela tarde, sacudindo farinha de milho dos sapatos, uma ideia assaltou-a subitamente: talvez ele não tenha querido perceber.