quarta-feira, julho 30, 2008

O Corredor (3)

Aquela calma inquietante, que a todos incomodava de uma maneira inexplicável, não o afectava da mesma maneira. Sentado na sua cadeira, Delmino conseguia encontrar nela a tranquilidade que durante tantos anos ambicionara, um dia, conquistar. Na sua maneira de ver, estava velho e demasiado cansado para querer mais da vida do que aquilo que a vida lhe dava; com o pé-de-meia que tinha amealhado e a reforma dele e da mulher – ainda que fossem um insulto para duas vidas de trabalho – permitia-lhe já não ter de provar nada a ninguém. “Não ter de ir à luta”, era a expressão que usava frequentemente, quando discutia o assunto com Ulisses que, sempre inconformado e revoltado, via em tudo e em todos os que mandavam ou tinham algum poder, razões de sobra para protesto. “Estamos condenados a ser velhos, mas nunca podemos aceitar que nos condenem a ser miseráveis”, respondia ao colega. Era desse descanso complacente e resignado que desfrutava, naquele momento, de olhos fechados e expressão tranquila, enquanto relembrava o acontecimento de há minutos.
Ulisses tinha deixado para o fim os pêlos que circundavam um protuberante sinal, na face esquerda do senhor Políbio. Passou as mangas arregaçadas da camisa para lá dos cotovelos e aguçou a vista, concentrando-se naquele montículo de carne ligeiramente arroxeada que pendia de uma pálida prega de carne. Depois de muito piscar os olhos, desistiu e foi a uma gaveta buscar os óculos. Limpou-os bem limpos e deixou-se estar um minuto a habituar-se às lentes. Pelo espelho, viu que o cliente se mantinha hirto e com o olhar parado. Num primeiro momento, chegou mesmo a assustar-se e julgou que ele teria morrido na cadeira, de olhos esbugalhados, não fora um ligeiro e espaçado arquear que notou a bata fazer, na zona do peito. Depois de um suspiro profundo, o barbeiro ainda abriu a boca para falar de futebol, mas não disse nada. Suspirou outra vez e voltou à sua tarefa.
Quando encostou a lâmina ao tufo de cabelos brancos, o homem mexeu-se. “Ó senhor Políbio, então agora é que você se mexe? Olhe que cirurgia plástica nunca foi o meu forte. Ainda lhe levo o sinal à frente”. Como que hipnotizado e a obedecer a um estranho desígnio, sentou-se à beira da cadeira e falou numa voz fraca, mas clara. “Vocês repararam que o sol apareceu”? Os barbeiros olharam em simultâneo pela montra. “Olhe que não. Está até mais escuro, agora”, retorquiu Delmino, ainda à procura de qualquer vestígio de luz na rua. “Não digo agora. Há bocado, quando o homem passou a correr”. Ulisses arqueou as sobrancelhas e franziu os lábios, fazendo uma careta. “Tem a certeza, senhor Políbio? Eu não vi nada”. “Eu também não”.
Florinda largou um saco de plástico, que parecia pesado, no passeio e apoiou a mão esquerda na moldura da porta. Um “ai Jesus” escapou-lhe dos lábios. “Vocês já viram este tempo”? Estava ofegante, respirando com dificuldade. “Estávamos precisamente a falar do tempo… mais ou menos…”, disse o marido, voltando a reclinar-se na cadeira. “O senhor Políbio está bom”?, perguntou a mulher, enquanto entrava na barbearia. O velhote disse que sim com a cabeça, mas sem convicção. Ulisses rebolou os olhos para Florinda e fez outra careta, como que a dizer para ela não acreditar. “Devias ter vindo mais cedo. Perdeste cá uma cena…”, Delmino tinha cruzado as mãos sobre a barriga, como se tivesse acabado de almoçar naquele momento. “Ai sim?” Florinda tinha vestido uma bata e preparava-se para começar a varrer o chão. “É como te digo. Umas das antigas”.
Enquanto Delmino contou à mulher do “atleta ao natural” – não poupando nos detalhes –, Ulisses terminou a barba do senhor Políbio e recebeu uma nota de cinco euros, muito dobrada, que ele retirara do pequeno bolso do colete, peça de roupa que sempre usava, mesmo nos dias mais quentes de Verão. Distraídos com a conversa sobre o nu, nenhum deles reparou que o velho saiu da barbearia e não ficou, como sempre acontecia, até ao fecho, sentado junto à montra, numa das três estafada cadeiras que, em tempos, tinham servido para o descanso dos clientes que aguardavam vez.
Carmelinda bateu várias vezes com a palma da mão, e com quanta força tinha, na montra do Salão Braga. “Jesus, que parece um terramoto”, disse Florinda, levando uma mão ao peito. Da rua, a vizinha da lavandaria Texas, nem olhava para eles, limitando a fazer gestos frenéticos para que se juntassem a ela. Hermenegildo apareceu também na montra. Ria como um perdido e estava a ficar bastante vermelho, enquanto batia com a mão direita numa perna. “É o corredor, voltou!”, exclamou Ulisses. Os três precipitaram-se para a rua.
No centro do asfalto, para o lado da Praça da Figueira, estava o senhor Políbio em tronco nu e descalço, a baixar, a custo, as ceroulas. Se lhe fosse permitido, teria começado a correr mas, assim que se livrou da roupa interior, limitou-se a dar um pequeno passo e depois outro e outro…
Nesse exacto momento, um raio de sol fez ricochete na janela do primeiro andar do número 29 da rua João das Regras e foi reflectir-se mesmo à sua frente, como que a indicar-lhe o caminho a seguir.

FIM

(depois da magia das águas, vai este blogue à procura da Atlântida; voltará com o cair da folha)

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quarta-feira, julho 23, 2008

O Corredor (2)

Por serem absolutamente evidentes, certas coisas não carecem de menção. Ainda assim, frequentemente e sem pensar nisso, não resistimos a constatar o óbvio. Quase caindo ao sair do Salão Braga, espantado com o que via, foi o freguês o primeiro a ceder à tentação. “Vai nu”, no que foi logo secundado por Ulisses, “O gajo está em pelota”. Como que para autenticar definitivamente a veracidade de tão insólito acontecimento, Delmino sentenciou que, “epá, o tipo não traz roupa”, acrescentando logo de seguida, “nem sequer sapatos”.
Por esta altura, vindos das portas e janelas, a rua João das Regras estava cheia de sons. Ouviram-se interjeições, palavras soltas – a maioria, de incentivo ao atleta naturista –, assobios e até palmas. Quem tivesse atentado nos espectadores e não no espectáculo, teria visto expressões de estupefacção e, sobretudo, de gozo. Teria visto uma outra rua, outras gentes, diferentes das de todos os outros dias.
Nos dias seguintes, nos inúmeros comentários que se fizeram, não houve acordo sobre tão estranha personagem. Era como se cada pessoa tivesse visto uma cena diferente e lhe atribuísse um significado próprio. Para uns era um homem alto, para outros, baixo. Tanto tinha cabelo claro, como escuro e era entre o comprido e o curto. Houve quem garantisse já o ter visto por ali e quem afiançasse, por todos os santinhos do altar, que aquela cara (“e pernas e braços e cu e…”) jamais por ali tinham passado. Sobre as motivações de tão estranho comportamento, também não se obteve consenso. “Estava a fugir da bófia”. “Tinha aspecto de camone e devia estar carregadinho de droga”. “Vinha era a fugir de um marido que tinha estado a encornar”, brincou o Hermenegildo, da loja de ferragens. Numa coisa, no entanto, todos estavam de acordo: era do sexo masculino e estava em boa forma física, já que percorreu a rua em “muito menos de um fósforo”, como afirmou a Dona Carmelinda, da Lavandaria Texas, ficando logo de seguida muito afogueada e corada, quando Hermenegildo, dando-lhe um toque com o cotovelo, disse bem alto que ela tinha sido quem melhor reparou no atleta. “Correu depressa, com pena sua, não foi”?

Depois de o corredor ter desaparecido na Praça da Figueira, Hermenegildo foi a correr na direcção contrária, na certeza que alguém viria no encalce do homem. Mas nada aconteceu. Era como se ele se tivesse materializado na esquina e ali começado a correr. “De que fugiria ele”? perguntou o especialista em todo o tipo de ferragens, encolhendo os ombros. “É maluco, ora”, respondeu alguém.
À porta do Salão Braga, nem uma palavra tinha sido proferida. Enquanto Delmino e Ulisses se foram juntar aos vizinhos, o freguês, agora a meio da rua, curvado sobre si, tinha o olhar perdido na Praça da Figueira. Quando regressaram à barbearia, o velhote ofereceu uma pergunta como resposta a Hermenegildo. “Porque é que dizem que ele estava a fugir”?
Os dois barbeiros trocaram um olhar vago. Ulisses colocou a mão no ombro frágil do freguês e só sentiu ossos, por baixo da roupa. “Vamos tirar essa espuma senhor Políbio, já está seca e sem préstimo. Alguma vez tinha visto coisa igual”? Já sentado, o homem nada disse. Inexpressivo, encarava o espelho. Era como se ali não estivesse. À porta, Delmino ainda brincou com a Dona Carmelinda, dizendo-lhe que se ela fosse mais nova, com mais força nas pernas, tinha ido a correr atrás do outro. “Mas para lhe dar umas roupas, dessas que ficam aí esquecidas na lavandaria, não me perceba mal”. Voltou para a sua cadeira e reclinou-se, ainda com um breve sorriso nos lábios. Por esta altura, o silêncio tinha reconquistado o seu domínio e nada parecia ter acontecido na cinzenta rua João das Regras. As cabeças, ainda há pouco erguidas e cheias de vida, voltaram a sucumbir à sua pesada existência e a apenas encontrar amparo nas pedras da calçada.

(continua)

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quarta-feira, julho 16, 2008

O Corredor (1)

O denso e escuro tecto de nuvens, que há vários dias havia estacionado sobre Lisboa, dava à rua João das Regras, naquele final de tarde, um aspecto ainda mais lúgubre que o habitual. Não tinha chovido mas, ali, naqueles cinquenta metros de Baixa, parecia que as nuvens haviam largado o seu peso e deixado a pairar um sufoco que, qual parasita, caía sobre quem passava, materializando-se na respiração subitamente ofegante, no cansaço inesperado, nos ombros pesados, que faziam as cabeças pender para a frente.
No Salão Braga, reclinado na sua cadeira, Delmino deixava-se embalar pelo familiar som que, na cadeira ao lado, o seu colega Ulisses produzia ao escanhoar o único cliente do dia. Numa dança vagarosa e sem ritmo, a lâmina contornava as pregas de carne velha e seca, cobertas de espuma de barbear, do homem. Quem perguntasse aos dois barbeiros quando tinha sido a última vez que haviam passado a lâmina na face de um freguês, de alto a baixo, num único movimento, não saberiam responder. Com o passar dos anos, barbear tinha-se tornado um processo cada vez mais demorado, que voltava a exigir atenção, cuidado e paciência – tudo aquilo que a prática, depois de muitos anos de gestos repetidos à exaustão, permite prescindir e que a idade acaba por roubar; um paradoxo que muito afligia Delmino. “Agora que eu devia cortar cabelos e desmanchar barbas de olhos fechados, é que tenho de me concentrar em cada gesto, em cada tesourada!? Estou pior do que quando comecei nesta vida”, queixava-se ele à mulher, Florinda, no final dos dias piores, quando fechava a porta e ela varria os despojos ralos e brancos dos cada vez mais ralos e pálidos clientes. Com os olhos cravados nos mosaicos gastos do chão e apoiada no cabo da vassoura, ela respondia-lhe que não havia pressa, que aqueles clientes não eram esperados por quem quer que fosse e que só não tinham sido ainda completamente esquecidos, porque, permitissem as forças e a parca reforma ao fim do mês, vinham aparar os mal-semeados pêlos que, teimosa e inexplicavelmente, desafiavam o cansaço dos corpos e despontavam, ainda que também tristes e abatidos. São homens – continuava ela – que apenas pareciam existir ali, no Salão, quando iam aparar o cabelo ou apenas estar, sentados nas cadeiras velhas como eles, a olhar através da montra, para o vazio em que quem manda havia deixado a Baixa escorregar. O mesmo vazio que sentiam ser a sua existência. Delmino olhava para a mulher com incredulidade, escutá-la era sempre descobrir algo novo, mesmo depois de tantos anos juntos.

Foi com grande espanto que os três homens ouviram gritar. Entreolhando-se, perguntaram com o olhar a mesma pergunta: teriam escutado bem? – percebendo na pergunta que viam, a resposta. E então, alguém encheu a rua com outro grito. Não de dor, que não havia sofrimento naquele alarme, antes, percebia-se surpresa e espanto, perante algo ou alguém. Era um grito de surpresa.
O velhote, de bata e com metade da cara ainda cheia de espuma, movido pela energia que a curiosidade dá, ergueu-se como pôde na cadeira e foi à porta espreitar. Atrás dele, Delmino e Ulisses assomaram-se também, ficando os três a rodar cabeças
durante vários segundos, cobrindo todos os pontos cardeais. No exacto momento em que, desalentados, se convenciam que não tinha sido nada de importante, uma exclamação estridente cortou o pesado silêncio que se havia voltado a fazer sentir. “Ah! Valente.”
Alertadas pelo inusitado da situação, várias cabeças haviam despontado nas portas e janelas e estavam agora todas apontadas para o lado da rua do Arco do Marquês do Alegrete onde, fazendo uma tangente à esquina, alguém entrou a toda a velocidade, correndo o mais depressa que lhe era possível. Todo nu.

(continua)


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quinta-feira, julho 10, 2008

Três Anos

Três anos é um mar suficiente para imensas palavras. Ainda que muitas delas não tenham sido as mais acertadas, as que, verdadeiramente, diziam aquilo que queria ser dito, valem todas, têm todas (a mesma) importância. Ainda assim, certas e erradas, são apenas uma ínfima parte daquilo que quem as emalhou, é.
Dizemos de nós malhagens de variável tamanho e significado, quando criamos personagens e enredos – mesmo quando de nós eles são o mais diverso possível. Fazemo-lo por uma qualquer necessidade de chegar mais além: um esperançado prolongamento de nós, uma mão estendida sobre as águas que anseia por um toque ou que, tão simplesmente, serve para largar algo que nos pesa, que nos atrasa o necessário regresso à margem.

Atiramos palavras à vida como quem lança uma rede ao mar. Felizes daqueles que, através delas, conseguem trazer até si algo de bom.

Foram três anos bons.


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