Aquela calma inquietante, que a todos incomodava de uma maneira inexplicável, não o afectava da mesma maneira. Sentado na sua cadeira, Delmino conseguia encontrar nela a tranquilidade que durante tantos anos ambicionara, um dia, conquistar. Na sua maneira de ver, estava velho e demasiado cansado para querer mais da vida do que aquilo que a vida lhe dava; com o pé-de-meia que tinha amealhado e a reforma dele e da mulher – ainda que fossem um insulto para duas vidas de trabalho – permitia-lhe já não ter de provar nada a ninguém. “Não ter de ir à luta”, era a expressão que usava frequentemente, quando discutia o assunto com Ulisses que, sempre inconformado e revoltado, via em tudo e em todos os que mandavam ou tinham algum poder, razões de sobra para protesto. “Estamos condenados a ser velhos, mas nunca podemos aceitar que nos condenem a ser miseráveis”, respondia ao colega. Era desse descanso complacente e resignado que desfrutava, naquele momento, de olhos fechados e expressão tranquila, enquanto relembrava o acontecimento de há minutos.
Ulisses tinha deixado para o fim os pêlos que circundavam um protuberante sinal, na face esquerda do senhor Políbio. Passou as mangas arregaçadas da camisa para lá dos cotovelos e aguçou a vista, concentrando-se naquele montículo de carne ligeiramente arroxeada que pendia de uma pálida prega de carne. Depois de muito piscar os olhos, desistiu e foi a uma gaveta buscar os óculos. Limpou-os bem limpos e deixou-se estar um minuto a habituar-se às lentes. Pelo espelho, viu que o cliente se mantinha hirto e com o olhar parado. Num primeiro momento, chegou mesmo a assustar-se e julgou que ele teria morrido na cadeira, de olhos esbugalhados, não fora um ligeiro e espaçado arquear que notou a bata fazer, na zona do peito. Depois de um suspiro profundo, o barbeiro ainda abriu a boca para falar de futebol, mas não disse nada. Suspirou outra vez e voltou à sua tarefa.
Quando encostou a lâmina ao tufo de cabelos brancos, o homem mexeu-se. “Ó senhor Políbio, então agora é que você se mexe? Olhe que cirurgia plástica nunca foi o meu forte. Ainda lhe levo o sinal à frente”. Como que hipnotizado e a obedecer a um estranho desígnio, sentou-se à beira da cadeira e falou numa voz fraca, mas clara. “Vocês repararam que o sol apareceu”? Os barbeiros olharam em simultâneo pela montra. “Olhe que não. Está até mais escuro, agora”, retorquiu Delmino, ainda à procura de qualquer vestígio de luz na rua. “Não digo agora. Há bocado, quando o homem passou a correr”. Ulisses arqueou as sobrancelhas e franziu os lábios, fazendo uma careta. “Tem a certeza, senhor Políbio? Eu não vi nada”. “Eu também não”.
Florinda largou um saco de plástico, que parecia pesado, no passeio e apoiou a mão esquerda na moldura da porta. Um “ai Jesus” escapou-lhe dos lábios. “Vocês já viram este tempo”? Estava ofegante, respirando com dificuldade. “Estávamos precisamente a falar do tempo… mais ou menos…”, disse o marido, voltando a reclinar-se na cadeira. “O senhor Políbio está bom”?, perguntou a mulher, enquanto entrava na barbearia. O velhote disse que sim com a cabeça, mas sem convicção. Ulisses rebolou os olhos para Florinda e fez outra careta, como que a dizer para ela não acreditar. “Devias ter vindo mais cedo. Perdeste cá uma cena…”, Delmino tinha cruzado as mãos sobre a barriga, como se tivesse acabado de almoçar naquele momento. “Ai sim?” Florinda tinha vestido uma bata e preparava-se para começar a varrer o chão. “É como te digo. Umas das antigas”.
Enquanto Delmino contou à mulher do “atleta ao natural” – não poupando nos detalhes –, Ulisses terminou a barba do senhor Políbio e recebeu uma nota de cinco euros, muito dobrada, que ele retirara do pequeno bolso do colete, peça de roupa que sempre usava, mesmo nos dias mais quentes de Verão. Distraídos com a conversa sobre o nu, nenhum deles reparou que o velho saiu da barbearia e não ficou, como sempre acontecia, até ao fecho, sentado junto à montra, numa das três estafada cadeiras que, em tempos, tinham servido para o descanso dos clientes que aguardavam vez.
Carmelinda bateu várias vezes com a palma da mão, e com quanta força tinha, na montra do Salão Braga. “Jesus, que parece um terramoto”, disse Florinda, levando uma mão ao peito. Da rua, a vizinha da lavandaria Texas, nem olhava para eles, limitando a fazer gestos frenéticos para que se juntassem a ela. Hermenegildo apareceu também na montra. Ria como um perdido e estava a ficar bastante vermelho, enquanto batia com a mão direita numa perna. “É o corredor, voltou!”, exclamou Ulisses. Os três precipitaram-se para a rua.
No centro do asfalto, para o lado da Praça da Figueira, estava o senhor Políbio em tronco nu e descalço, a baixar, a custo, as ceroulas. Se lhe fosse permitido, teria começado a correr mas, assim que se livrou da roupa interior, limitou-se a dar um pequeno passo e depois outro e outro…
Nesse exacto momento, um raio de sol fez ricochete na janela do primeiro andar do número 29 da rua João das Regras e foi reflectir-se mesmo à sua frente, como que a indicar-lhe o caminho a seguir.
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