Tem sido com olhos preguiçosos que percorro a cidade. A cada dia, demoro mais tempo a chegar. A calçada permanece escura, reflexo do céu, que teima em se não destapar. Pesam-me os pensamentos nas pálpebras que, incapazes de sucumbirem, permitem a orientação suficiente que me vai amparando a queda. Desvio-me de tudo e de todos por instinto – esse traidor que me permitiu o convencimento na minha capacidade para os maiores feitos: uma certeza que chegou, insuspeita, e se instalou mansamente, enquanto a negava – o meu inferno.
Absurda, a crença em que a existência não pode ser apenas isto, que estamos destinados a algo maior e melhor quando, afinal, nos limitamos a apressarmo-nos de um lado para o outro para, no fim, nos encontrarmos sempre no mesmo sítio, da mesma maneira. Sempre iguais ao que de nós esperam. Mais distantes daquilo que verdadeiramente somos e de quem nos quer alguma coisa de bem.
Vi hoje a calçada a ser rasgada pelo negrume da água, de cima a mim atirada para que não esqueça aquilo que sou e, finalmente, senti nos músculos a coragem que só a percepção indubitável das coisas dá.
Derrubei-me ruas acima, cidade abaixo, até aqui chegar. Vim rápido, para ter tempo de te deixar uma palavra. Eu sei, não de viva voz, mas perdoar-me-ás, por certo, mais esta minha fraqueza; tu, que conheces o tortuoso labirinto em que me enclausurei.
É chegado o tempo de fingir.
Amarrotou a folha e deixou-se cair na velha cadeira de madeira, sem saber o que fazer ao papel. O estofo estava degradado e já não dava conforto à dor. O olhar encontrou o espaço entre as cortinas, que não tinham sido totalmente corridas, e o exterior surgiu-lhe em quadrados baços e desfocados, do tamanho dos pequenos vidros de que eram feitas as portas de acesso à varanda. Reparou em como não era a luz vinda da rua que iluminava a divisão, mas antes, era a penumbra da sala que emprestava alguma da sua luminosidade aquele dia de chumbo.
Sim, há demasiado tempo que a falta de vida das nuvens não dava tréguas, mas apenas isso, pensou. Tudo o resto não tinha de ser assim tão definitivamente trágico. Quis ter a oportunidade de dizer isso e de que não existem distâncias tais que uma palavra não consiga encurtar.
Não a teria.
Dobrou-se para a frente na cadeira, como se uma dor insuportável tivesse tomado posse de si. Estava sozinho na sala, mas sentiu-se desconfortavelmente observado pelas memórias que a habitam. Levantou-se ao mesmo tempo que recomeçou a chover. Água que encharca o raciocínio e o enegrece. Abriu a mão e a folha aumentou de volume, revelando a última frase. Ficou largo tempo a olhar para ela. Depois, abriu as portas da varanda e atirou o papel fora.
A calçada ficou ainda mais escura, com a tinta que da folha se derramou.