segunda-feira, julho 31, 2006

O Urso

A passagem por baixo do arco da Rua dos Sapateiros, entrando no Rossio, fez com que o piloto automático que o guiava pelas ruas da Baixa há mais de uma hora, se desligasse. Uma espécie de relatório em que se resumia as tarefas ainda por completar, produziu-se no seu cérebro:
- tomar a direcção da Rua do Carmo;
- subir até aos Armazéns do Chiado;
- FNAC;
- procurar livros de banda desenhada;
- sentar e ler;
- comer qualquer coisa;
- decidir o que fazer com a tarde.

Parado no semáforo para peões no início da Rua do Ouro, suspirou com particular desânimo: talvez não tivesse sido mesmo boa ideia tirar uma semana de férias para ficar em Lisboa sem nada para fazer. Verdade que já tinha 52 dias de férias acumulados mas, ainda assim, não devia ter aceite a sugestão do chefe, aquela semana de pasmaceira indolente estava a afectá-lo negativamente.
Mirou - pelo canto do olho, não fosse alguém reparar nele - as propostas da Ana Salazar para a época Outono-Inverno que se aproximava e achou tudo muito escuro e pesado.
Mais acima, não resistiu a uma observação menos discreta das propostas da H&M. Não há nada como a época Primavera-Verão, pensou.

À medida que descia pela escada-rolante em direcção à FNAC, sentiu-se observado. Coisa estranha aquela, que nunca ninguém reparava nele.
Quase se estatelou ao comprido ao sair da escada, absorto que estava na procura do olhar que sentia pousado em si. Recuperou o equilíbrio e rodou a cabeça 180º na horizontal e, depois, 90º na vertical. Dezenas de pessoas cruzavam-se em todas as direcções, mas ninguém parecia interessado em si.
Tentou afastar aquela sensação desagradável que sentia, sacudindo alguma caspa dos ombros, quando o viu.
Estava mesmo à sua frente, a pouco mais de dois metros. Era da sua altura, largo, peludo e totalmente castanho. Tinha a boca ligeiramente aberta, permitindo ver alguns dos seus dentes afiados. Por cima do focinho, a razão da sua perturbação: dois pequenos pontos negros apontados na sua direcção.
Tinha um olhar parado, mortiço mas, ao mesmo tempo, penetrante. Era um urso que o estava a mirar intensamente.

Ficou paralisado por breves segundos, sem sequer conseguir respirar. Olhou novamente em redor: apenas a confusão habitual que antecedia o período de almoço. O urso parecia ser o único que reparava nele.
Tomou a direcção da FNAC quando ouviu um pssst. Voltou-se.

- Chega aqui.

Ia jurar que era o urso que falava consigo. Abanou a cabeça, em sinal de que estava a ouvir coisas, quando ouviu de novo o urso a falar consigo.

- Sim, tu, anda cá.

O urso estava à porta de uma loja, decidiu aproximar-se. Colocou-se perto dele, fingindo estar interessado nos artigos expostos na montra. Nada disse.

- Se fosse a ti, ia antes almoçar, deixava as compras para depois. – disse-lhe o urso.
- Não tenho fome. – Respondeu ele entre dentes, voltando-se para trás para se certificar de que ninguém o observava.
- Come uma sopa. Não é preciso fome para comer uma sopa.
- er… tu… falas…
- Falo às vezes, quando tenho paciência para isso. Mas agora vai.

Afastou-se da montra sem ter reparado no que estava exposto, tomando a direcção do elevador. Cada vez mais se convencia que tinha sido má ideia tirar aquela semana de férias sem ter planos. Iria precisar de umas férias das férias.
Saiu do elevador no piso dos restaurantes. Eram 12h40 e, em breve, o Centro Comercial iria estar cheio de pessoas apressadas que procuravam engolir o almoço a correr. Havia já algum movimento.
Estava em frente à Loja das Sopas e lembrou-se das palavras do Urso. Colocou-se na fila. Iria pedir uma sopa da pedra, apesar de não ser altura do ano para tal coisa.

De tabuleiro em riste, numa manobra arriscada de equilíbrio, conseguiu chegar à zona das mesas, que pareciam estar já todas ocupadas. Por sorte, um casal levantou-se mesmo a seu lado.
Juntou os tabuleiros deixados pelo casal e sentou-se. Não tinha fome. Questionou-se sobre o que fazia ali. Sem perceber, o piloto automático ligou-se novamente e o tempo passou por ele sem que desse por isso.

Despertou a olhar por uma das grandes janelas que davam para a Costa do Castelo. Ao longe, uma bandeira portuguesa ondulava numa torre do Castelo de S. Jorge. Apreciou o contraste que fazia a janela toda iluminada e a relativa escuridão das paredes adjacentes.
Era um bonito efeito de contra-luz, não fosse uma silhueta humana colocar-se no meio, devolvendo-o à realidade.
Cubos perfeitos de carne e uns legumes de aspecto baço boiavam na tigela à sua frente. Achou os cubos perfeitos demais e teve saudades das sopas que a sua mãe lhe fazia.
Pegou no guardanapo que embrulhava a colher e reparou outra vez naquela silhueta que tinha visto há pouco: era uma rapariga que, de tabuleiro na mão, procurava poiso. As mesas estavam agora todas ocupadas e algumas pessoas procuravam desesperadamente onde se sentar.
Pensou em convidar a rapariga a sentar-se na sua mesa, mas não foi capaz de o fazer. Mergulhou a colher no caldo e agitou os objectos flutuantes. Continuava sem fome.
Largou a colher e tamborilou com os dedos na borda do tabuleiro. Abriu a garrafa de água e bebeu um gole sem usar o copo. Pegou na colher e largou-a de novo. A rapariga virou-se na sua direcção, com ar desesperado e ele levantou a mão, chamando-lhe a atenção.
Apontou para o lugar vazio, e encolheu os ombros. Ela sorriu-lhe, atrapalhada e encolheu os ombros também.

- Obrigada… este centro comercial é um horror, nem sei porque continuo a vir cá, ou se vem cedo, ou então…
- Sim, calculo…

E ali ficaram, cada um com os olhos enfiados nos respectivos tabuleiros. Ele tentando não fazer barulho quando sorvia a sopa, ela a tentar não ficar com maionese ao canto na boca de cada vez que mordia a sandes de carne assada.

- Nem sei porque vim cá hoje. – Acabou ela por dizer. – Nem era para almoçar… fui lá abaixo, a uma loja de acessórios e…, bom, aconteceu-me uma coisa estranhíssima…
- Ai sim? – Disse ele desajeitadamente.
- Ando a ouvir coisas, pareceu mesmo que um… ah, deixe lá isso, são coisas da minha cabeça…

E ele nada disse. Nunca tinha tido muito jeito para as relações pessoais, muito menos para relações com o sexo oposto. Antes, enfiou a colher por baixo de um bocado de cenoura e suspirou: não gostava de cenoura mas tinha que fazer um esforço, iria parecer mal não comer a sopa toda. Levou a colher à boca no exacto momento em que ela voltou a falar.

- Chamo-me Adelaide.
- Sou o Evaristo.

E voltaram os dois a enfiar os olhos nos respectivos tabuleiros. Ela a pensar que falava demais, ele a pensar que tinha que dizer qualquer coisa à rapariga.

No piso de baixo, quem estivesse atento, poderia ter visto que o urso, à porta da loja, tinha sorrido.

As duas estórias anteriores (Urgência e Hoje É Dia de Festa) foram escritas sem que houvesse qualquer relação entre elas mas, no outro dia, reparei que tinha deixado duas personagens desamparadas e que para desamparo, já basta a vida real. Vai daí, este texto.

Espero sinceramente que o Evaristo e a Adelaide se tornem amigos.

* * *

Este Blog vai a banhos para a Beira Interior (a banhos de rio e de chuveiro, ora essa). Volta daqui a umas semanas cheio de energia, espero.

A todos umas boas férias.

terça-feira, julho 18, 2006

Urgência

Tinha urgência Adelaide.
Não consciente da triagem automóvel à entrada do Hospital, fez a curva em excesso de ambição e quase passou a ferro os calos do jovem Segurança.
Mil desculpas, que a sua melhor amiga tinha a filha mais nova tomada pelas convulsões, como se poderia facilmente constatar, fizesse o Sr. Segurança o favor de olhar para o banco de trás do utilitário.

Deixadas mãe e filha enleadas na burocracia dos doentes e aparcado o carro – tarefa que lhe consumiu uns bons vinte minutos e alguma sola de sapato -, sentou-se Adelaide desconfortavelmente na sala de espera. Das amigas nem sinal.
A sala estava cheia de tosse e catarro, de caras jovens mas mal encaradas, cinzentas. Ao fundo, cinco cadeiras vazias. Não estranhou, antes, avançou decidida e posou os ossos na do meio.
Cedo percebeu que estava mesmo por baixo do altifalante minarete, foi quando um muezzin chamou a Natacha Andreia para a sala 1, quase lhe arrancando os tímpanos.
Levantou-se de um pulo e o ar pesado da sala aliviou um pouco, com os sorrisos que aconteceram.

Veio Adelaide para a rua encostar-se a um muro ainda não tomado pelo sol. Sopra a franja e repara pelo canto do olho que ele reparava nela. Ignora-o Adelaide, mas não resiste mais que um minuto e retribui-lhe o olhar. Ele sorri-lhe o sorriso dos confiantes.
Alto e magro, pele curtida pelo sol, cabelo em desalinho, barba por fazer e sorriso níveo. Adelaide sentiu urgência e um balanço de mar.
Aproxima-se dela e cantou-lhe ao ouvido uma cantiga aprendida com as sereias. Disse-lhe o nome e que percebia agora o porquê do seu sobrinho ter engolido uma moeda de dois euros: proporcionar aquele encontro.
Fingiu Adelaide o arrepio que sentiu e pousou os olhos no avião que levantava voo, furando as nuvens por cima das suas cabeças.

- Sou marinheiro. – Acrescentou ele, sendo já desnecessária aquela estocada.

Julgou-se feliz Adelaide. Não quis saber de mais nada. Atracaram nos dias em que ele não levantou ferro. Julgou-se apaixonada Adelaide. E contou a toda a gente. Julgou-se encantada Adelaide. E deram as mãos em terra firme. Julgou-se em paz Adelaide. E deram os lábios quando no mar.

Mas era ele marinheiro com hábitos de marinheiro. Era gente que se compromete a prazo. Lança amarra mas não aperta o nó.
Percebeu isso tarde Adelaide, quando já se pensava porto de abrigo. Levantou ele ferro e ficou ela a ver o mar.

Sofria. Tinha urgência de ser amada Adelaide.

quarta-feira, julho 12, 2006

Hoje é Dia de Festa

Aproximou-se até os dedos dos pés não terem onde se apoiar. Estava descalço, o que era estranho. Algumas pedras deslizaram e, por um segundo, sentiu que o chão lhe fugia. Olhou a medo para baixo mas não conseguia ver onde terminava o precipício. Na verdade, olhando em frente também não conseguia ver onde terminava, uma neblina espessa impedia a visão após não mais que três metros.
Sabia que terminava algures, visto do seu lado esquerdo estar preso um cabo de arame, que se estendia depois neblina afora.
Não sabia como ali tinha chegado nem como de lá sair, sentia apenas que o caminho só podia ser em frente. Mas em frente, só através daquele cabo e, se havia coisa que ele soubesse acerca de si, era que não tinha jeito para equilíbrios.
Após uns minutos de hesitação, colocou um pé no cabo. Reparou que era composto por dezenas de finos fios de aço entrelaçados. Estava gelado.
Uma brisa levantou-se e teve a certeza que iria cair.
Depois, nada.

É incrível a quantidade de tempo que se sobrevive sem termos nada, sem que alguém sinta algo por nós.

Evaristo teve consciência de si. Uma coisa ténue, a principio, quase irreal. Aquele primeiro pensamento do dia não prometia nada de bom.
Manteve os olhos fechados e desejou que não fosse verdade, mas todos os outros sentidos não demoraram a confirmar-lhe as suspeitas: estava acordado.
Recusou ceder à evidência: enquanto não abrisse os olhos, o sol não tinha já nascido, e não lhe entrava no quarto pelas frinchas da janela.
Ignorou a sensação dos lençóis de flanela que há muito deviam ter sido substituídos e a voz da vizinha do lado que, filtrada pela parede, lhe chagava cantando com particular desafino a “Tourada”, do Fernando Tordo.
Virou-se sobre o ombro esquerdo, iria voltar a dormir.

Coçou a perna direita e depois a esquerda. Depois coçou o pescoço e o nariz. Pareceu-lhe ouvir o zumbido de uma melga… detestava melgas. Coçou a cabeça e virou-se sobre o ombro direito. Sentiu comichão num pé, mas não se coçou, já era demais.
Não gostava daquele dia. Aquele em particular. Nunca como naquele dia se sentia à beira do precipício. Não queria sair da cama. Queria dormir.
O gosto ao feijão enlatado com salsichas do jantar da véspera assaltou-lhe o paladar. Incomodou-se.
Fechou os olhos com força. Olhou para dentro de si, tentando ver o seu mecanismo de funcionamento, as engrenagens que o faziam ser quem era e encontrou alguém portador do não-resolvido, cheio de questões irresolúveis. Como poderia alguém sentir algo por ele?
Estava agora a ter pensamentos aleatórios inexplicáveis.

O despertador ligou-se. Surpreendido, abriu os olhos. O sol entrava pelas frinchas da janela e fazia desenhos no tecto.

- Bom diaaaa, são oito horas, nesta linda manhã de 12 de Julho… - anunciou cheio de energia fingida o radialista de serviço.

Evaristo fechou os olhos, detestava que o lembrassem do dia do seu aniversário.

Este Blog faz hoje um ano. Obrigado a todos.

sexta-feira, julho 07, 2006

Tudo Isto Existe

Este texto começou por ser um comentário deixado a um post (ler aqui) no Papel de Fantasia. Vai daí, acabou por ser um post aqui. A desinspiração tem destas coisas.

Arsénio concluiu a recruta na Marinha com distinção. Foi mesmo o vencedor do Troféu Pirolito, atribuído ao instruendo que menos cloro subtraiu à água do tanque em que treinavam os mergulhos de cabeça.
Em véspera de embarcar, estava no Bairro Alto, à porta de uma taberna de mau aspecto. Era o nome do antro que o trazia especado: Fatum. Aquela palavra mal pintada numa tábua sebosa, atraia-o. Ajeitou a mochila que trazia pendurada no ombro e entrou.
A um canto, na penumbra, envoltos numa nuvem de partículas suspensas, dois velhos de ar bolorento, esfolavam as cordas de duas guitarras decadentes e os ouvidos de Arsénio. No meio deles, um terceiro velhote esforçava-se por arrancar às amígdalas o catarro que nelas tinha agarrado.
O trio era insuportável e esteve quase a rodar os calcanhares dali para fora, não fosse uma voz bagacenta vinda detrás do balcão o ter chamado.

- Oh piqueno, o que é que a Hermínia te pode servir? – Era uma mulher castiça quem lhe dirigia aquelas palavras. De caracóis desfeitos numa permanente mal amanhada, tinha cabelos escuros como carvão e a cara com rugas em forma de lamentos.
- O que é que aconselha a um pobre marinheiro, dedicado companheiro, para quem o Tejo é sempre novo?
- Aconselho-te a não levantar ferro, a não soltar amarra. Quem embarca nunca mais volta inteiro. – Aquelas palavras pareceram fazer o chão debaixo dos pés de Arsénio inclinar a bombordo.
- Ora, é disso que eu preciso. – Respondeu ele, pouco seguro.
- Então, toma lá este copito de vinho branco, que é uma especialidade. – Hermínia encheu um copo de três e entornou no balcão as partes quatro e cinco.
Era uma zurrapa inqualificável, mas Arsénio suportou-a sem dar parte fraca, não fosse ele o dono do Troféu Pirolito.

- Oh Alfredo. – Gritou a mulher, mão na anca, na direcção de uma mesa onde um homem parecia dormir. Não obteve resposta. – Alfredo!!! Rais’parta o homem que é duro de ouvido…
Alfredo levantou a sua cabeça redonda, encimada por um cabelo preto-olex muito bem penteado. Tinha uns óculos com lentes fundo de garrafa verde, e um lenço ao peito.
- Ca foi, mariquinhas? – Perguntou ele com voz de rouxinol constipado.
- Mas atão, quando é que tu m’acabas os armários da cozinha? Olha que marceneiros é o que há mais por aí… - A ameaça vã não provocou qualquer reacção a Alfredo, que sabia o que valia.
- Sabes que isso é mentira.
- Ai, mentira. Conheço um bem jeitoso, que nem mora muito longe, o Carlos.
- O do Príncipe Real?
- O do Carmo.
- Não sejas tonta… trago-tos prá semana, mocita dos caracóis.
- Cantigas…

Os dois velhotes do canto pararam de dar às unhas e o companheiro calou-se. Não teve sucesso, daquela garganta ressequida só saiu barulho. Após breves segundos, em que aproveitou para ajeitar a boina, achou por bem voltar a tentar e, a um gesto de cabeça, os tocadores voltaram a dar às falangetas.
Arsénio, que já estava por tudo, pediu reforço líquido. Estava Hermínia a entornar o vinho no balcão, quando entra uma mulher de rompante, cabelo em desalinho, blusa branca de alças que mais parece uma combinação interior, saia vermelha enxovalhada.

- Que cara severa é essa, mulher? – Atirou-lhe Hermínia.
- Viste o Malhoa?
- O Zé?
- Não, o dos pincéis.
- Ah, esse. Ainda hoje não passou por cá.
- Se o vires, diz-lhe que estou farta de estar sentada de esguelha naquela mesa à espera dele, que me doem as cruzes e que estou farta do bigodes a fazer cócegas à guitarra. Se ele não aparece depressa, piro-me para o retiro. – E sem esperar resposta, saiu, levando com ela alguma da penumbra do sitio.

Entretanto, o velhote dos gargarejos conseguiu escarrar uma coisa verde e peganhenta que veio aterrar aos pés de Arsénio. Os clientes rebentaram num aplauso eufórico que durou três segundos, alguns levantaram-se mesmo para retirar as ceroulas de onde elas se tinham metido.

- Obrigado. - Disse o idoso, quase afónico.

Arsénio, ia por esta altura já no terceiro copo de três. O soalho virou a estibordo e ele teve que se apoiar no balcão.

- Camane, Camane… - Repetia um miúdo à soleira da porta. Tinha uns olhos claros, muito vivos, e fazia gestos a alguém na rua. – Between, between…
Atrás dele, entrou um grupo de japoneses, muito sorridentes, apesar das evidentes dores de pescoço que os faziam estar sempre a curvar as suas pequenas cabeças. Em cada cabeça um panamá níveo e a palavra Sanyo.

- Camane, camane, between. – Continuava o rapazito a dizer, tentando que eles se sentassem.
- Ai este miúdo, com a mania que sabe falar inglês… - Hermínia saiu do balcão para por um grupo de velhotes, que estava preso às cadeiras por teias de aranha, a mexer dali para fora. Havia que dar prioridade ao turista. - Vá, todos para casa, já se acabou o tremoço… xô, xô…
- Oh Dona Mina, posso ir cantar? – O miúdo olhava com sofreguidão para a taberneira.
- Vai-te já daqui, que ainda não é a tua vez. Cresce e aparece. Toma lá estas moedas pelo serviço e vai mas é brincar com a tua vizinha, aquela miudita do cabelo às ondas do mar.

Serviu ginja aos nipónicos e um bagaço aos velhotes das guitarras. Só me falta convencer a outra, segredou-lhes. Passando por Arsénio, benzeu-se e desapareceu por uma porta.

- Maria, preciso que vás ali cantar para uns camones? – Disse ela a uma das raparigas que liam em silêncio.
- Ai madrinha, eu tenho vergonha… - Respondeu Maria.
- Vou eu, eu canto. – Afirmou a outra, levantando-se espevitada.
- Tu não, ela é que precisa treinar. Vá, anda.
- Mas eu… não sei cantar bem, como ela…
- Disparate, sabes muito bem, só tens de acreditar mais em ti e em Deus, ele não te vai deixar ficar mal.
- Está a falar do quê, madrinha?
- Oh Maria, da Fé…
- Vais cantar com este xaile que te empresto. Chegas lá e só tens que fechar os olhos e cantar aquela dos espanhóis, espanholinhos, dos caracóis, caracolinhos, que é sempre sucesso garantido… - A outra rapariga tentava animar Maria. – Depois abres os braços, mexes muito os dedos e dizes obrigado, obrigado… resulta sempre!

Regressaram as duas à sala para dar com os velhotes a tocar que nem doidos e um japonês a cantar o fado do 31 à desgarrada. Os clientes, como que com as baterias recarregadas, batiam palmas a compasso.

Já na rua, ia Arsénio a navegar e de pé junto à proa, viu ou julgou sonhar, que os braços do Cristo-Rei, estavam a abraçar Lisboa.