quarta-feira, abril 13, 2011

Fulano de Tal Foi Ver o Mar

Fulano de Tal foi arranjado por um cão. Ao passar por ele na rua, o rafeiro achou que aquela criatura sem dono e indistinta – nem alta nem baixa, nem gorda nem magra, nem quente nem fria –, lhe servia suficientemente bem como provedor de distração e companhia – mais até do que de alimento sólido. E lá foi com ele.

A principio, Fulano de Tal estranhou o animal no seu encalço, barafustou com ele, dirigiu-lhe impropérios vários e acenos menos dignos, mas o cão não quis saber, continuando sempre a segui-lo com uma expressão de enfado, mais ou menos a dizer sim, está bem, como se eu quisesse saber.

Foi o inicio de uma amizade que teve um ou outro momento belo: para o cão, as noites em que dormia sozinho em casa; para Fulano de Tal, a ida à praia, no pino do inverno, apenas eles no areal. Foi tanto assim, que chegou a tirar uma foto, dois em um, que mostrava a toda a gente: a prova que possuía arte e um verdadeiro amigo – sem reparar que a foto, afinal, dizia outra coisa, ao mostrá-lo a seguir um caminho e o cão a direção oposta.










sexta-feira, abril 01, 2011

A Estranha Manhã do Senhor Copitélio

O senhor Copitélio acordou ainda de madrugada, inquieto. O não ter visto os habituais rectângulos de dia na janela, multiplicou-lhe o desassossego. Que não era nada, disse ele de si para si enquanto, no escuro, tacteava o linóleo com os pés, em busca dos chinelos. Afinal, o que era estranho era ele não acordar cedo mais vezes. Sentou-se para fazer chichi e foi falando com o idoso de cabelo oleoso e desgrenhado que o fitava do espelho com os olhos mais papudos que alguma vez se lembrava ter visto.

Cortou-se a fazer a barba. “Ó Copitélio, tu, que não fazias sangue há tantos anos, não podias ter arranjado outro dia para te falhar a mão”? Depois, escorregou a tomar banho, quase caindo.

“Não é nada”.

Tomou o pequeno-almoço sem incidentes e, com o dia a entrar, saiu para comprar o jornal. Estranhou o caminho até à papelaria: aquela não era a sua hora, não era a sua luz, não eram as pessoas com quem se cruzava todos os dias. Apanhou a loja a abrir e o jornal ainda num molho. No jardim em frente, como em todos os dias bons, começou a ler as gordas, mas não se conseguiu concentrar no que elas diziam. Em vez de lhe ficarem na memória, as notícias ficaram-lhe esborratadas nas pontas dos dedos.

Achou por bem voltar para casa e esperar que se fizesse a sua cidade, que fossem horas da realidade a que está habituado.

Caminhou devagar, a intranquilidade a pesar-lhe nas já de si frágeis pernas. E também nas pálpebras pois, ao passar de novo pela papelaria, viu-se a si próprio, de jornal na mão, a dobrar a esquina, mais à frente. Acelerou o passo e afiou a vista, não estivesse esta a atraiçoá-lo. Lutou contra as dores até conseguir avistar o vulto que lhe parecia o seu. “É o meu corpo que ali vai”, disse alto, em tom de protesto, quando se reconheceu. Naquele momento, bem que ele quis correr mas, se o cérebro lhe ia para diante, o reumatismo vinha-lhe para trás. E foi neste confronto entre vontade e possibilidade, que o senhor Copitélio lá ganhou o terreno suficiente para se chegar a si próprio. Quando, por fim, se alcançou, colocou uma mão no seu ombro, quis-se puxar, mas as forças estavam na reserva e o movimento foi o suficiente para se conseguir parar.

Alquebrado pelo esforço, deu por si a tentar recuperar o fôlego enquanto encarava os sapatos do outro. Ou melhor, os seus sapatos, que os conhecia muito bem. E aquelas calças também, que tinham sido feitas por medida, há muitos anos, no alfaiate lá do bairro. E o cinto tinha sido presente de aniversário do seu irmão, aquando do seu septuagésimo aniversário – estava como novo, que pouco o tinha usado.

Tinha a cabeça a mil: seria possível terem-lhe entrado em casa e levado a roupa sem que tivesse dado por isso? E aquele casaco! Seu, claro, pois quantos casacos daqueles tinham o último botão descosido e quase a cair?! E gostava muito daquela gravata, de altíssimo gabarito, comprada em Londres, nos (mais ou menos) loucos anos 60, que ele não era, nem nunca tinha sido, de loucuras. Pelo menos até então, que naquele instante sentia-se a ficar louco, ou não fosse ele próprio que estava à sua frente, completo com a cicatriz feita a cortar a barba e tudo.

Confiante que ia sentir o toque de um espelho, levou a mão à cara do outro que era a dele –, mas o que sentiu foi alguém a tocar-lhe no rosto.

Longe dali, num local impossível de descrever, uma luz vermelha encheu a sala, pulsando freneticamente ao ritmo de um alarme sonoro. Vários corpos, até então dormentes, se agitaram nas cadeiras, ao mesmo tempo que muitos vieram a correr para logo tomarem posse de muitos botões e pequenas luzes de todas as cores, que piscavam em grandes monitores.

No Centro de Comando das Coisas Conhecidas Como Humanas, algo tinha corrido mal.

Logo se nomeou uma comissão e se abriu um inquérito, aguardando-se agora as conclusões.



(e agora, com música)