sexta-feira, janeiro 28, 2011

Longe

As vias de comunicação foram sendo cortadas lenta, mas inexorávelmente. O tempo de reacção, a importância das coisas, o seu sentido e significado, desvaneciam-se na passagem dos dias. A princípio, de uma forma esporádica, depois com uma frequência assustadoramente maior, ausentava-se, deixando ficar para trás o corpo que, cada vez mais, era apenas o invólucro de uma existência desprovida de conteúdo.

Palavras novas e exóticas passaram a tomar conta do discurso familiar: neurodegeneração, Korsakoff, sertralina, cognição, donepezil, distúrbio, deficit, disfunção. As conversas tornaram-se redondas, uma vez ou outra, elípticas. Todos deixaram de falar a direito na tentativa de contornar a palavra mais simples e que condenava.

Demência.

Longe da presença física dele – como se isso importasse – perguntava-se vezes sem conta como pode alguém tão novo, “na força da vida”, ser rasteirado por tal maldição. Nunca se obteve resposta.

Convencidos que se tratava da melhor solução para todos, colocaram-no numa instituição especializada em cuidados psiquiátricos.

Isolada, como convém, era uma quinta no cimo de uma suave colina. Tudo no exterior era bucólico, primaveril e pacífico. Tudo no interior era o menos instituição-psiquiátrica possível. Não fosse as árvores que cercavam a propriedade, a vista perde-se-ia longe dali. Mas em tal local, perder o que quer que fosse não era opção. E não perderam tempo a levá-lo para dentro.

Alguém disse, está-se aqui bem, atando, involuntariamente, um nó cego nas gargantas dos presentes. Apesar de todos entenderem o alcance daquelas palavras, o silêncio demorou a ser vencido e a saliva a ser engolida.

Desde que ali chegou, também ele tentava alcançar algo. Da primeira vez, encontraram-no já depois do portão, na berma da estrada que descia a colina. Com palavras simples e sorrisos rasgados, fizeram-lhe o desenho de um caminho que não devia ser percorrido naquele sentido. Ele nada disse – há muito que não falava. Também não esboçou qualquer emoção – há muito que não sentia. Deixou-se envolver pelo braço especializado, que o conduziu de volta ao ponto de partida. No dia seguinte voltou a tomar a direcção do portão e em todos os dias depois desse. Era como se a inclinação da estrada o fizesse para aí cair.

O portão, que até então sempre tinha estado aberto, passou a ficar fechado. Ele vinha e, não podendo passar, ficava encostado às grades, a olhar para a estrada. Durante semanas, explicaram-lhe que nada havia para lá daqueles muros que fosse bom para ele mas, perante a insistência diária de ali vir e ficar a olhar, acabaram por o lá deixar ficar – por vezes, horas a fio. Se chovia ou estava demasiado frio, passou a ter uma cadeira na pequena casa do porteiro.

A família tinha-o sempre à porta, quando o iam visitar, e isso era-lhes sinal de melhoria; viam naquela presença a ansiedade da saudade. Sorriam, abraçavam-no e ficavam todo o tempo no exterior, a dizer-lhe das coisas que eram e das que gostavam que voltassem a ser.

Foi a irmã a primeira a se aperceber do olhar dele sempre a descer o caminho que subia. Falou nisso e a todos foi óbvio que era manifestação do desejo de dali sair.

Passava o tempo e a obstinação mantinha-se. Perguntava-se pela evolução da condição dele e também tudo se mantinha. Se ele não muda é porque não pode, afirmou a irmã, mudemos nós, então: que se abra o portão. Depois de muita discussão e lágrimas, foi o que fizeram. Deixaram-no ir e foram atrás dele, família e médicos, a alguma distância. Não andaram muito. Pouco depois da primeira curva, ele saiu da estrada, subiu a uma grande pedra e sentou-se. Entreolharam-se por entre angústia, alívio e confusão. Subiu por fim a irmã e sentou-se com ele. De cima da grande pedra, por entre as árvores, via-se o que havia longe e, desde esse dia, o portão voltou a ficar aberto.



segunda-feira, janeiro 17, 2011

O Fantasma Precisa De Um Sorriso


O fantasma é incapaz de pensamento abstracto. Apenas consegue elaborar em ideias densas e profundas – coisas que se vejam. Desprovido de massa encefálica palpável, muito pensa ele – intrigado até à medula – em como tal é possível. Aliás, sente incomensurável frustração ao não conseguir entender como é que ele próprio existe.

Se, num determinado momento, o seu sentido critico lhe garante que os fantasmas não existem, logo no momento seguinte a realidade se sobrepõe, pois ele ali está, a pensar nisso. Leu Descartes, leu António Damásio e jurou não voltar a ler sobre o assunto: prefere os momentos físicos aos metafísicos.

De uma coisa o fantasma tem a certeza: não quer ser daqueles que existem para atemorizar as pessoas. A princípio, julgou ser essa a sua missão – a de todas as almas do outro mundo, afinal – mas começou a questionar-se quando percebeu estar não numa mansão antiga ou local histórico, mas sim num moderno edifício de escritórios, onde ninguém notava as portas que extemporaneamente ele fechava, ou as gavetas que, sem mais, abria. Se por alguém ele passava, deixando a pairar um uivo arrepiante, nem uma cabeça se virava, nem uma interrogação naquelas mentes se formava.

Ali, no frio daquelas existências contidas entre paredes ocas e tectos falsos, por entre máscaras de orgulho que nunca caem, o assustado é ele, que aquelas criaturas humanas, percebeu ele, para sobreviverem, têm de ser assustadoras – até mesmo com elas próprias. Assim, só sai de madrugada, fintando as sonolentas rondas dos Seguranças. Percorre o espaço à procura do que se entreter, mas tudo ali é privado, contido, fechado, espartilhado; nada é acessível e ele é uma quimera que foi criada com educação suficiente para saber não se intervém naquilo que é dos outros.

Até que um dia, numa arrecadação onde se resguardou para meditar nos espíritos que todos os dias por ali se consomem, e se terá sido ele assim também, um dia, descobriu enfiados numa caixa, os restos de uma festa antiga, a caminho do lixo. Enfiou-se debaixo de uma toalha de mesa e de uma cabeleira de cor garrida e atrás do desenho de uma cara que era a sua. Numa ginástica que não foi fácil nem rápida, lá conseguiu compor uma existência mais evidente e, agora, quando a noite chega e o último sobrevivente se convence a deixar as instalações, o fantasma vai colocar-se à janela, na esperança que uma alma piedosa lhe sorria de volta.


quarta-feira, janeiro 05, 2011

O Títere 4

fazes o quê?

palhinhas.

A expressão dela impeliu-o a acrescentar algo.

exportamos para trinta e dois países.

Avelino estava à janela, a ver o dia tomar conta do cume distante de um monte. Sentia a cabeça cheia e o corpo vazio. O cheiro de coentros e salsa, plantados numa floreira, do lado de fora da janela, enjoou-o profundamente. Virou costas aos minutos finais da noite e deu por si sozinho.

Cassilda vivia num apartamento que recuperara integralmente, no último andar de um prédio antigo. Tudo o que era indispensável à confecção e ingestão de alimentos estava concentrado num dos topos de uma ampla divisão que, na outra extremidade, tinha uma peça de mobiliário que alternava a sua função entre sofá e cama. A decoração era mínima e minimalista.

Foi com alguma surpresa que Avelino percebeu que, fora a casa de banho, a habitação se resumia àquele espaço. Intrigou-o as várias gavetas junto ao sofá-cama. Aproximou-se e levou a mão a uma delas, detendo-se no último segundo, ficando a sentir o frio do metal da pequena maçaneta na ponta dos dedos. Sentia muito mais ao imaginar o conteúdo do que a desvendá-lo.

Manteve os olhos cerrados até o som de água a correr o ter trazido de volta. Tremia ligeiramente, quando Cassilda apareceu.

isto está um bocado desarrumado, não repares.

não digas disparates.

oh! deixa-me dizer disparates.

Avelino ficou sem saber o que responder.

Entretanto, ela entregou-lhe uma chávena de chá.

é chá verde com cafeína, ajuda-me nas directas.

nunca bebi.

e que mais coisas nunca fizeste tu?

Aproximaram-se os dois da janela, Avelino com os lábios colados à chávena, na esperança que isso justificasse a ausência de resposta. Colocou-se atrás de Cassilda, inspirando longamente o ar por cima da cabeça dela. Ficaram em silêncio, de frente para a neblina que se sumia na luz do sol. O céu parecia um chão acabado de varrer.

já viste o céu? Parece que esteve a ser limpo.

Gracejou ela.

cirrus radiatus.

diz?

as nuvens, chamam-se cirrus…

como é que tu sabes de nuvens?

não sei… há muita coisa que eu não sei… nem sabia que sabia de nuvens.

não é conhecimento que… caia do céu.

Virou-se, sorrindo. Ele deu um passo atrás. Quem era aquela rapariga? Porque reparara nela? O que queria dele? Porque o tinha convidado para sua casa, assim, sem mais? Como é que ela o tinha descoberto a observá-la? Já o tinha lá visto várias vezes, senão não o tinha convidado para aquela festa. Porque não dissera nada antes? Porque não o fendera, lhe chamara nomes? De que tanto sorria ela? Todas as perguntas lhe surgiam ressequidas e lascadas, com o sabor do fel. Uma imagem baça e gretada, com tanto de familiar como de indesejada sobrepunha-se a tudo, não o deixando raciocinar. A avalanche de perguntas continuava a tombar do alto de si.

Sacudiu a cabeça como se se quisesse livrar de algum insecto que lhe tivesse ficado emaranhado nos cabelos.

estás bem?

sempre gostei do céu, desde miúdo,

tu és obsessões e vícios, que sempre te deixam mais só.

Era ainda aquela voz, dentro dele.

não preciso pensar de emprestado, eu sei pensar por mim.

Disse ele, zangado.

eu não…

Mais do que qualquer outra coisa, Cassilda estava verdadeiramente intrigada. Foi interrompida.

nasci e cresci numa grande casa, com um grande jardim, com os meus pais, mas eles não me deixavam sair, brincar fora, porque podia acontecer… tudo e eu ficava a ouvir os outros miúdos a brincar ao longe, do outro lado do muro do jardim, mas… não era por mal, eles não faziam por mal e a culpa é minha. O muro nem era alto, podia saltá-lo sem custo, mas nunca o fiz. Jamais seria capaz de fazer isso aos meus pais.

deve ser…

Cassilda ia dizer “triste”, mas não disse.

havia as nuvens, mas já nem me lembrava de como gostava delas.

ainda tens muito tempo para brincar. Olha, esta noite, por exemplo. E no futuro…

o futuro há-de chegar!

Avelino tinha aceite o convite para a acompanhar ao emprego e caminhavam em silêncio, como que esquecidos um do outro, na direcção d’ “O Reino do Aço Inoxidável”. Cassilda acendeu um cigarro, mas logo o atirou fora. Eram os únicos naquela rua, onde nem o sol tinha ainda chegado. Fazia ali mais frio, mas não foi por isso que ambos estremeceram. À sua frente, um descampado surgiu de entre os prédios, atrás de uma vedação amolgada e já quase toda caída. Pararam os dois, não por causa do outro. Restos de uma habitação adivinhavam-se por entre a vegetação alta, que o descuido tinha deixado tomar conta do lugar.

foi aqui…

Apesar do sangue à flor do rosto, Avelino estava particularmente inexpressivo. Nada disse.

Cassilda estava pálida e, pela primeira vez, a privação do sono tomara-lhe conta do semblante.

Respiravam ambos ao mesmo ritmo, com alguma ansiedade mal disfarçada.

anda.

Cassilda estendeu-lhe a mão e incitou-o,

anda, vem.

Avelino sentiu o frio daquela pequena mão e, ao mesmo tempo, uma força de que não suspeitara. Passaram por cima da vedação, de tijolos, restos de azulejo e muito lixo, para ali varrido pelo vento, até que Cassilda se deteve numa pequena clareira. Olhou-o com aquele sorriso a que ele ainda não se habituara e apertou-lhe a mão, quando falou,

ali à frente.

Avelino sacudiu a cabeça num não que não era de recusa, apenas de incompreensão.

aquele muro, ali, para tu saltares.

E apertou-lhe novamente a mão, num incentivo decidido e gelado.

Avelino olhava, mas não via o muro, não via a habitação em ruínas, não via os tijolos, os azulejos, o lixo, as ervas daninhas, o boneco no chão do seu quarto, encostado à parede. Não via sequer Cassilda. Via nuvens a passar por cima de um jardim mal amanhado e ouvia uma brincadeira, ao longe.

Depois, apertou ele a mão daquela rapariga que o ali trouxera.


(e acabou-se)