quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Lavar a Cara

Assustaram-se? Acharam que se tinham enganado no sítio? Ainda bem, é sinal que estão atentos.
Estava para aqui sem saber o que publicar, resolvi actualizar o blogue. Não era mexido desde a criação, em 2003 e notava-se (os monólogos até 2005 foram apagados, que não eram mais que mensagens teste). As alterações não são muitas: coloquei uma foto no título, ganhei espaço com o arquivo, os textos estão mais horizontais e menos verticais; a secção de fotos (Janelas Discretas) foi revista e diminuída, tem agora menos galerias e menos fotos. Descobri que tenho seguidores. Obrigado.
Sem prejuízo de ainda fazer mais uma ou outra alteração (a foto ali por detrás do título é capaz de mudar a espaço), por agora, fica assim.
Para a semana há texto novo (a ver se menos peixe-espada e mais cachucho). Deixo um link para umas fotos:

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Avenidas Velhas (11)

– Estes livros… são de que editora?

De cócoras, o professor hesitava em pegar num dos livros dispostos em cima do plástico, no chão.

– Também não é mencionado o autor… quem é ele? Ou ela…

Sentado no degrau, o homem perscrutava atentamente o semblante do seu interlocutor. Via nele, particularmente no olhar, um interesse e uma curiosidade pelos livros, como nunca antes vira em alguém.

Não se preocupou em responder às perguntas porque não eram realmente perguntas; percebeu as palavras do outro apenas como pensamentos em voz alta, e não quis incomodar. Haveria de responder, mas não era aquele o momento.

Após alguma indecisão, em que a mão se aproximou, para logo se afastar, de vários exemplares, o professor acabou por pegar num deles. Leu alto o título: “Xavier, Visto a Partir do Espelho”. Virou a página.

Junto deles, o ajuntamento revoltado tinha-se já dissolvido e a rua voltara ao ameno ritmo do final das tardes de sábado. A água vinda da janela era já uma memória distante e os comentários indignados, um murmúrio que a brisa não transportava. Notava-se, no entanto, uma diferença na rua: as pessoas iam, já não vinham.

– Não informa a autoria da capa… bom, está bem… mas devia mencionar onde se fez a impressão e encadernação, o ISBN, o depósito legal, a tiragem. Nada disso consta – e, visivelmente intrigado, acrescentou: – Nada normal, uma situação destas…

Estava ausente, num mundo muito seu – só seu –, onde tudo à volta cessara de existir, ficando em suspenso, a aguardar a sua atenção. Era apenas ele e o livro, numa espécie de confronto ritualizado, em que um escondia a verdade e o outro a procurava desvendar. Maravilhava-o, aquele processo de descoberta e não conseguia evitar ficar excitado quando não obtia imediatamente respostas. Há algum tempo que tal não lhe acontecia.

O texto começava logo na primeira página.

Não conheço ninguém que tenha consciência do seu período intra-uterino. Eu tenho. Recordo com inusitado detalhe os últimos meses de gestação. Sim, dos primeiros meses não tenho memória. Não estaria ainda formado o local onde guardamos os pensamentos e os sonhos, dentro de nós. Talvez o facto de conhecer a minha mãe extremamente bem, por dentro e por fora, explique muito daquilo que sou. Daquilo em que me tornei. Se ela me sentiu, como apenas uma mãe sente um filho – tantas vezes me o disse –, também eu a senti, como só um filho sente uma mãe. E sinto ainda, apesar de tudo – e de nunca lhe haver dito tal.

Fechou o livro, observou a lombada e torceu o nariz.

– Temo que não deve ter tido uma vida lá muito interessante, o senhor Xavier – e, nesse momento, tomou consciência da presença do outro. Sentiu-se atrapalhado e as faces ruborizaram quando se interrogou sobre que outras coisas teria dito em voz alta. Apesar de tudo, conhecia-se suficiente bem para saber que, quando se entusiasmava verdadeiramente com algo, tinha o embaraçante hábito de falar sozinho.

Achou-se na obrigação de dar uma explicação.

– É que a autobiografia não conseguiu ocupar assim muito papel… Presumo que não deva ter tido uma vida muito emocionante.

– Consegue-se medir a emoção de uma vida pelo número de páginas em que se fala dela?

O professor sentiu novamente as faces aquecerem. Tossicou, atrapalhado. Ia falar, mas o homem no degrau falou primeiro.

– Peço-lhe desculpa, nem o convidei a sentar. Não quer? – apontou para a cadeira articulada, ao lado dos livros. – Chamo-lhe “A Cadeira do Leitor”.

– Eu… na verdade, não me posso demorar. Habitualmente, a esta hora – olhou para o relógio – já devia estar… em casa.

– Esteja à vontade.

Não disfarçando um esgar de dor, o professor ergueu-se com dificuldade. Tinha estado demasiado tempo agachado e agora doíam-lhe as costas e as articulações. As pernas latejavam-lhe.

– Precipitei-me no juízo de valor. Não cedi a moralismos fáceis… – o seu interlocutor fez-lhe sinal com a mão para esquecer o assunto. – Estes livros… – com a autobiografia na mão, apontou para os livros expostos. O resto da pergunta deixou-a subentendida na sua expressão.

– Edição de autor.

– Não é mencionado o nome do autor.

– Funciona ao contrário. A lógica é outra. Habitualmente, lêem-se as obras sem nunca se conhecer pessoalmente o autor, sabemos apenas o seu nome; mas aqui não: conhece-se o autor ao mesmo tempo que a obra.

– É o senhor o autor.

– Sou eu quem escreve estes livros, sim.

– Onde é que os imprime, como é que faz? – examinou o exemplar que mantinha em sua posse. Tinha uma encadernação impecável.

– São manufacturados por mim, desde a ideia, até à encadernação, passando pela escrita. É um processo solitário, mas nada angustiante, antes pelo contrário, se quer saber – esboçou um sorriso. – Há uma moça que me passa os papéis para o computador. Agora que penso nisso, não é apenas uma relação a dois, entre mim e os livros… tem piada, nunca tinha pensado nisso.

– Directamente do produtor ao consumidor, bem vejo. Mas reparo que o livro também não tem preço indicado.

– Não são para vender.

– Não? – na testa, tinham-se formado uma série de vincos ondulantes, paralelos entre si.

– São para ler.

– Como pode isso ser? Qualquer um destes livros leva o seu tempo a terminar. Certamente, não espera que uma pessoa se sente nessa cadeira a lê-los de uma penada.

– Certamente que não. Até porque apenas me demoro uma hora, duas, no máximo. Essa cadeira, acima de tudo, serve para descansar. Quem passa, pode sentar-se aí e aliviar o peso das pernas e, se quiser, tem o que ler. Um paragrafo, que seja. Se gostar, se tiver interesse no que leu, pode levar.

– Não entendo.

– Os livros são para dar. O senhor, pode escolher um e levá-lo.

– Confia assim nas pessoas? Sabe que vai ficar sem muitos, não sabe.

– Eu não disse que eram para emprestar. Os livros são para dar!

O professor sentou-se na cadeira – que se revelou mais confortável do que aquilo que aparentava – e folheou lentamente a vida de Xavier.

– Não entenda mal a minha pergunta, mas como é que se tem uma ideia destas? O que o levou a… – deixou a pergunta no ar.

– Sinceramente, não sei. Precisava sair de casa, acho.

As folhas passaram uma a uma pelos dedos do professor. Sentiu-se subitamente inquieto. O que disse a seguir deveria ter sido apenas um pensamento.

– Não daria muitas páginas, a minha biografia…

Sentado no degrau, o homem revolveu os bolsos, apenas encontrando um rebuçado peitoral. Suspirou.

– Santo Onofre...

– Eremita. Viveu no deserto – não conteve uma gargalhada, perante a ironia que encontrou no desabafo do outro. Há quanto tempo não ria? – Desculpe-me, mas…

– Está a desculpar-se por rir? Faz tanta falta – guardou o rebuçado, inconformado. – Por acaso não tem um cigarro que me dispense, não?


FIM

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Avenidas Velhas (10)

Chegou ao acesso do Metro da Alameda como o trapezista chega à extremidade do arame, depois de o atravessar. A sensação de alívio confundiu-se com a pressa em tomar o apontamento. Tirou a caneta e a folha do bolso e, no espaço em branco da tabela, escreveu o número 447.

Não fez logo comparações, nem tirou conclusões – este último apontamento era mais o cumprir de uma tarefa a que se tinha proposto, que uma necessidade, pois já tinha obtido a resposta que procurava –, aproveitou para respirar fundo e retomar a compostura que sentia ter perdido na última hora, desde que tomara café na Mexicana. Ajeitou as roupas e passou os dedos pelos cabelos, enquanto olhava em redor, fixando-se em quem passava por si. Ninguém lhe devolveu o olhar. Uma dúvida em particular sobrepôs-se a uma série de dúvidas que tentava processar, naquele momento: o que achariam todas aquelas pessoas das questões – ou seriam problemas?, interrogou-se, sobrepondo mais uma interrogação – que lhe traziam o espírito ocupado nos últimos tempos? Por certo que só se poderiam rir daquele velho, de ar emproado e barriga proeminente. Aquilo não eram problemas, nem sequer questões que merecessem dois minutos de atenção. Aquilo, não era nada!

E, no entanto…

Olhou para a folha. O último valor situava-se dentro do intervalo – o número de passos que, no seu passeio habitual das tardes de sábado, passou a contar entre o candeeiro junto à esplanada da Mexicana e o acesso ao Metro da Alameda. O objectivo inicial tinha sido o de desmentir as observações dos seus alunos mas, agora que se tinha convencido do quanto previsível ele era, não sabia o que sentir em relação a isso. Seria uma coisa má? Poder-se-iam fazer extrapolações a partir desse facto? O que diria sobre ele? Deveria importar-se com isso? Considerou que talvez fosse melhor voltar para casa onde, com tranquilidade, poderia ponderar as várias questões, analisá-las sobre vários pontos de vista, argumentar a favor e contra elas. Certamente que chegaria a uma conclusão.

Se fosse um assunto que merecesse tamanho dispêndio de energia…

Amarrotou a folha. Desta vez, lenta e demoradamente, de uma forma exagerada, como quem se despede de alguém para sempre. Fez uma bola compacta e fechou-a na mão. Depois, atirou-a ao ar, apenas uns centímetros, e voltou a apertá-la. Num impulso, atirou-a de novo ao ar, bem mais alto. Ao cair, a bola bateu-lhe no polegar, depois no indicador e escapou-lhe da mão, antes que a conseguisse fechar. Fitou o papel na calçada e sentiu uma enorme vontade de saltar em cima dele, de o pontapear, de ali o deixar. Por fim, a custo, curvou-se, apanhou a bola amarrotada e colocou-a num caixote do lixo.

Doíam-lhe as costas, as pernas, os braços, a cabeça. Mas a dor maior, sentia-a dentro de si, algures, num local que não conseguiu identificar.

Iniciou o trajecto de regresso a casa no passo de sempre, tentando não pensar em nada, até que, ao chegar outra vez à Zara, uma quantidade significativa de água, vinda de uma das janelas cimeiras, se abateu inesperadamente sobre os transeuntes. Na confusão que se seguiu, o professor foi obrigado a dar um passo descontrolado à esquerda e depois, empurrado por um rapaz, três passos atrás, quase caindo. Um coro de protestos irrompeu na indolente tarde de compras. Todos os olhares apontavam para cima, em busca dos responsáveis. Algumas senhoras sacudiam as roupas, mais ou menos molhadas, as cabeleiras, os sacos de compras. Havia já quem falasse dos valores perdidos, da amoralidade da juventude, das trevas que, no futuro, aguardavam a espécie humana. Isto precisa é de outro Salazar! Olhe que este que lá está agora não é muito diferente.

O professor era uma das duas únicas pessoas que não estava a olhar para cima. Antes pelo contrário, olhava para o chão. Apesar da água ter caído bem perto de si, não o tinha atingido e toda a confusão que se seguiu, levou-o a reparar nos livros que estavam expostos em cima de um plástico, no passeio. Aproximou-se, por entre as pessoas que, aparentemente já esquecidas da brincadeira de mau gosto, debatiam agora a qualidade da democracia portuguesa.

Já não pensava em mais nada, apenas nos livros que tinha diante de si. Conhecedor e interessado por tudo o que dizia respeito a livros – mais até do que por literatura –, aqueles exemplares intrigavam-no. Geralmente, apenas pelo design da capa, conseguia identificar a editora, o género e a colecção a que determinado livro pertencia, mas aquelas não lhe diziam nada. Impressas em papel de um amarelo muito suave, nas capas apenas constava, a preto, o que deveria ser o título. Indiferente às dores que lhe castigavam as articulações, agachou-se para pegar num dos livros. Suspendeu o movimento do braço quando percebeu a presença de alguém que, sentado num degrau, à sua frente, o observava com intensidade. Não era evidente, mas teve a nítida sensação que o homem sorria para si.