segunda-feira, março 31, 2008

O Estojo (5)

Dentro de um saia-casaco madrepérola, escolhido pela mãe, Deolinda parecia ter ainda menos que os cento e cinquenta e cinco centímetros que lhe haviam sido concedidos. O facto de estar descalça, não ajudava.
Tinha pousado o bouquet de jacintos e malmequeres – rodeados de hera por todos os lados – na mesa e estava sentada, a soprar para a testa. Parecia indiferente à má disposição do Conservador.


– Bom, parece que agora estamos todos. Podemos dar inicio à cerimónia.

Esbaforido, o noivo entrou na sala e atirou com os avós para as primeiras cadeiras vazias que encontrou. A sala era pequena mas, com tão poucos convidados, parecia vazia. Joaquim tinha tentando convencer Deolinda a deixá-lo convidar os amigos apenas para a cerimónia, algo que ela prontamente rejeitou:


– Como se eu acreditasse que, depois, aquela cambada não se ia fazer ao almoço à borla… – e acrescentou com um silvo: – Cambada…

Deolinda não tinha amigos para convidar. Durante os anos de escola esteve sempre demasiado preocupada em ter as melhores notas – o que conseguiu – e, quando terminou a faculdade, em arranjar um emprego que não lhe exigisse muito esforço. O que, na área da programação informática, se veio a revelar inexistente. Assim, deixou um emprego aliciante e bem pago numa multinacional, para ajudar os pais na loja de animais.

Joaquim ficou muito hirto no meio do corredor, a sorrir. Passou a mão pelo gel do cabelo e ajeitou o nó da gravata, que depressa voltou à posição original. Um tufo de pêlos espreitava por entre os colarinhos, quando ele avançou lentamente na direcção da noiva. A marcha nupcial fez-se ouvir na instalação sonora da sala Cristal.

(continua)

quinta-feira, março 27, 2008

O Estojo (4)

Foi já depois do Conservador ter ameaçado Deolinda pela segunda vez que se ia embora, e dos pais do noivo conjecturarem sobre um possível rapto e pedido de resgate – “vê-se tanto, hoje em dia, com esta malandragem toda à solta”, disse a mãe dele à comadre – que Joaquim, finalmente, encontrou os avós. Estavam sentados na última fila da sala Turquesa, a assistir a um casamento de imigrantes angolanos.


– Avô, avó… venham – sussurrou Joaquim, de cócoras, junto a eles.
– Ah, estás aí – gritou o avô.
– Venham.
– Já estás despachado? – por esta altura, perante os gritos do avô que, surdo, só falava aos berros, a Conservadora tinha interrompido a cerimónia e todos os convidados, mais os noivos, estavam virados para trás.
– Vai começar agora, venham… – Joaquim ia puxando o avô pelo braço.
– Nunca mais te vimos.
– Vocês não estavam onde eu os deixei.

– O teu avô teve que ir mijar, sabes como ele é. Depois já só havia lugar aqui – disse a avó, também aos gritos.

Sem conseguir mexer o pescoço e a cabeça, com um sorriso de orelha a orelha, Joaquim fez uma vénia à audiência, na esperança que percebessem tratar-se de um pedido de desculpas.


– Esta malta também se casa, afinal – berrou o avô. – Não tarda nada, estão cheios de filhos.
– Se não tiverem já meia dúzia deles – concordou a avó.

O casal de idosos foi projectado para fora da sala com um empurrão e Joaquim fez outra vénia aos aturdidos espectadores. Quis dizer algo, mas não conseguiu articular uma palavra.

(continua)


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segunda-feira, março 24, 2008

O Estojo (3)

A cerimónia foi marcada para um final de manhã de Maio, que calhou quente e caótico. Encostado a uma parede, mesmo por baixo de uma saída de ar condicionado, Joaquim reflectia sobre a possibilidade de todos os casais solteiros de Lisboa e arredores terem escolhido aquele dia para contrair matrimónio. Era tanta a confusão de noivos e convidados, que pareciam estar ali todos reunidos para um grande casamento em conjunto.
Um homem com um grande bigode e uma proeminente barriga, de casaco de camurça castanho pendurado no braço e a abanar-se com a ponta da gravata, veio encostar-se à parede, perto dele. A sua camisa azul clara era agora azul escura, das manchas de suor. O homem olhou para cima e abanou a cabeça com pesar: dali não viria alivio para os seus padecimentos, o ar condicionado ou estava desligado ou cansado demais para fazer alguma diferença num dia como aquele.


– Os padres estão lixados – disse ele a Joaquim. – Já ninguém casa pela igreja. É bem-feita, quero é que eles se lixem – não obteve resposta.

Por entre a confusão de fatos escuros, vestidos de folhos com motivos florais e crianças transformadas em adultos miniatura, que corriam em todas as direcções, Joaquim, de sorriso e pescoço esticados, espreitava um carro parado à porta da Conservatória.
O ruído era quase ensurdecedor. Havia quem chamasse pelos padrinhos, havia quem procurasse crianças extraviadas, havia quem chorasse e miúdos que gritavam a plenos pulmões, só pelo prazer de gritar.


– Grande ajuntamento, hein? Isto parece aquela coisa dos casamentos de Santo António, não parece? – perguntou o homem, dando-lhe um toque com o cotovelo.
– Não, não parece – Joaquim sorria, mas tinha cara de poucos amigos. – Esses são na igreja – e foi ter com o sogro, que tinha vindo também espreitar o carro.
– Que chatice, isto… – o olhar do noivo tinha já petrificado por completo.
– Quando é que vamos ter a sala livre? Ainda falta muito para o casamento acabar? – o sogro estava visivelmente zangado.
– Atrasou… sabe como são estas coisas…
– O que eu sei é que a Deolinda deve estar a assar como um leitão, dentro do carro. Devíamos ter chegado atrasados, como manda a lei.

Joaquim ia corrigi-lo, dizendo que ela estaria a assar como uma leitoa, mas um súbito nó nas tripas interrompeu-lhe a frase: nunca mais se tinha lembrado dos avós.

(continua)



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quinta-feira, março 20, 2008

O Estojo (2)

Deolinda não tinha feitio para nervos. Bem vistas as coisas, não tinha feitio para coisa alguma. Quando Joaquim, cinco semanas antes, à porta da Zara do Colombo, subitamente se ajoelhou à sua frente e lhe pediu a mão, ela, após recuperar de um caju que se lhe atravessou na garganta, respondeu logo que sim. Não por convicção – e amor era um conceito que só conhecia das revistas que lia no escaparate do Feira Nova –, apenas porque já eram quase nove e meia da noite e ainda não tinha jantado.


– Deolinda Prazeres, eu, por minha honra, Joaquim Aleluia, peço-te a tua mão para contraíres matrimónio comigo.
Er… cof… cof… ai Nosso Senhor Jesus Cristo me acuda… cof… cof… sim, está bem… cof cof… bate-me nas costas, Quim, faz alguma coisa, homem de Deus…

Com o fruto do Cajueiro cá fora, beijaram-se brevemente e ela lembrou-se de uma coisa importante.


– Não era suposto haver um anel?
– Ora bolas! Esqueci-me dele no porta-luvas… eu vou lá…
– O tanas! Vamos mas é jantar.

E foram. À Portugália, que a fila para o Sr. Frango da Guia – de longe, o preferido de Deolinda – tinha para mais de vinte pessoas.


– Estás contente? – perguntou ele, molhando uma batata frita na gema do ovo a cavalo.
– Eh! – exclamou ela, encolhendo os ombros. – Gosto mais do franguinho, mas como desta vez até pediste da vazia… – e voltou a encolher os ombros.

(continua)


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segunda-feira, março 17, 2008

O Estojo (1)

Momentos antes de proferirem as palavras mais importantes das suas vidas, todo ele era dentes, toda ela era cabelos.
A Joaquim, entre outras reacções morfológicas, os nervos faziam-lhe esticar os cantos da boca, afastar os lábios e achatar o nariz. Sob pressão, ele sorria.
De cabelo fraco e pouco cuidado, sempre que Deolinda se sujeitava a tratos de cabeleireiro, parecia sair de lá envolta em electricidade estática, apontando cada cabelo em sua direcção – sendo que nenhum para baixo.
Era assim que estavam, lado a lado, a escutar sem grande atenção o Conservador que, daí a pouco, os ia declarar marido e mulher.


* * *


Joaquim apresentou-se na Conservatória do Registo Civil cinco quartos de hora antes do inicio da cerimónia. “Não fosse o diabo tecê-las”, tinha ele justificado aos pais e avós paternos, os únicos convidados que o orçamento tinha permitido – avós maternos, já não tinha. Estava, obviamente, sorridente quando foi sentar o casal de idosos numa das salas de espera.
À medida que o tempo passava, os olhos iam-lhe entrando em pausa no centro das órbitas. Ao mesmo tempo, o pescoço endurecia e o aperto do colarinho tornava-se insuportável. Era por isso que, sempre que usava gravata, a camisa tinha de ser, pelo menos, um número acima.
Mas logo se havia esquecido disso para tão importante ocasião. E foi com os colarinhos afastados, o botão de cima desapertado e o nó da gravata aparcado por baixo da maçã-de-adão, que ele aguardava, impaciente e suado, a chegada da noiva.

(continua)


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segunda-feira, março 10, 2008

A Cura...

Saímos na última noite do último dia. O vento tinha levado a luz e caminhámos por instinto. De tão denso, o céu pesava dentro de nós. A tempestade, iminente. Deste-me a mão e um trovão mudo, apenas sentido, rasgou a cidade. Partilhámos o frio que ambos sentíamos num toque de pele.
Foi quando nos aproximámos de onde tudo termina, que os vimos. Seguiam todos o mesmo destino. O teu olhar respondeu que sim ao meu e fomos. Esvaídos e em dor.

Abrimos os olhos ao mesmo tempo. Sorriste e disseste que era bom estarmos ali, juntos.

... no início do mundo.


texto inspirado (?!) na Plainsong, dos The Cure


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terça-feira, março 04, 2008

O Som da Música

Desde Julho de 2005 que este blogue anda a dar "música" mudo, apenas em forma de letras arrumadas umas a seguir às outras mas, ainda assim, "música". Pois bem, isso vai mudar. Ou melhor, vai-se agravar. É que para além da música que entra pelos olhos, vai-se passar a disponibilizar aqui da outra, da que perfura a cera acumulada nas orelhas e faz vibrar tímpanos, estribos, martelos, bigornas e outras miudezas que tal.
O objectivo não é senão ambicioso: fazer o leitor/ouvidor ir desta para melhor, ou seja, fazê-lo sonhar (está bem, eu confesso: ocasionalmente, o objectivo vai ser provocar pesadelos, que nem só de sonhos vive o homem e a mulher moderna).
Aviso: Não deve a música ser encarada como banda sonora do texto que a precederá.

Culpem a hora de música apresentada na Radar. Mas não se assustem em demasia, que só toca se vocês apertarem o botão esquerdo do rato em cima do símbolo play.

Por termos encontro marcado no próximo sábado, aqui ficam os The Cure.

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PS - a ver se arranjo tempo e cabeça para voltar aos textos... the hills are alive with the sound of music...