O percurso é sempre o mesmo mas, para ele, nunca é igual. Vai pelo separador central: é um espaço (quase) só seu, de onde se vêem as coisas de maneira diferente. Quando os outros transeuntes estão parados, a aguardar passagem, ele avança – quando todos avançam, pára ele. Tem o cuidado necessário no atravessamento dos cruzamentos, de resto, vai concentrado nas pessoas com quem se cruza.
Sem ser nas passadeiras – ou um ou outro peão que ali fica momentaneamente detido, vítima de um atravessamento incauto –, quase nunca se cruza com outras pessoas, naquele estreito passeio.
Ao se aproximar do Hotel Roma, a orquestra de buzinas automóveis iniciou mais um dos seus habituais concertos. Quase sempre relacionados com estacionamentos em segunda fila, desta vez tinha a ver com um veículo abandonado no entroncamento com a Rua Infante D. Pedro. Literalmente abandonado: a trabalhar, porta do lado do condutor aberta, ninguém dentro. Nas suas caminhadas pela cidade, já tinha assistido a muita situação estranha, mas um carro a trabalhar, no meio da via, era a primeira vez. Não resistiu e, para ter a certeza que os seus olhos não o enganavam, ficou a ver. Como as folhas das árvores no final do verão, uma pequena multidão de transeuntes começou a juntar-se no passeio, junto ao hotel; e com ela, as teorias sobre o bizarro fenómeno. Depois de quase cinco minutos de buzinadelas incessantes e de buscas infrutíferas do automobilista desaparecido, retomou o seu caminho mas, uns metros à sua frente, deu de caras com Karl Marx.
Bem no centro do separador central, uma réplica humana do autor do Manifesto Comunista, parecia esperar por ele. Vestia um colete branco, com o que lhe pareceu ser o símbolo de uma ordem religiosa, em vermelho. No braço direito, uma braçadeira com o mesmo símbolo e suspenso do ombro esquerdo, um recipiente circular, a tiracolo. Depois de dois passos hesitantes, avançou direito ao sujeito, que o interpelou.
– Não quer ajudar a combater o cancro? – perguntou-lhe Marx, numa voz cavernosa e densa, que se sobrepôs à sinfonia automóvel, ao mesmo tempo que lhe estendeu o objecto que trazia ao ombro. Um peditório no separador central! Mais uma novidade. Desculpou-se com a falta de dinheiro – o que era verdade – e contornou o homem, que permaneceu estático, como que à espera de alguém.
Não tinha andado vinte metros quando, vinda a correr do passeio lateral, uma rapariga parou à sua frente. Murmurou qualquer coisa imperceptível, mas foram os seus olhos, de um cinzento baço e frio, que falaram. Pediram-lhe – suplicaram-lhe – compreensão e ajuda. Reparou que ela trazia na mão o Borda d’Água e pensos rápidos. Já depois de a ter deixado para trás, aqueles olhos estrangeiros e suplicantes continuaram a falar com ele. Disseram de uma criança pequena, muito doente, e do dinheiro que fazia falta para o remédio. Interrogou-se se seria isso que diziam, mas depressa afastou a ideia. Ele, que nunca fora bom a escutar os outros, não podia querer agora entender quem se expressava pelo olhar.
Não se cruzou com mais ninguém até chegar ao Centro Comercial, mas aí, voltou a deter a marcha. Um segurança implicava com um ciclista de idade, que ali queria encostar a bicicleta. Na verdade, sendo alguém que ali tinha chegado de bicicleta, não se tratava de um ciclista. Era, antes de mais, um amolador – e, seguramente, no tempo de chuva, um arranjador de chapéus-de-chuva. Não via um há bastante tempo e depressa esqueceu a disputa que ocorria diante de si. Ficou a olhar a bicicleta, certamente tão antiga como o dono (que era velho), sem mudanças (como o dono, que não soubera ou conseguira mudar), suja (também como ele), adaptada a uma função para a qual não tinha sido criada (ao contrário dele, que não se adaptou a mais nada).
Com desprezo evidente, o segurança empurrou o velocípede, que caiu com estrondo. O amolador tentou empurrar o homem, mas acabou também por cair desamparado, de joelhos, junto da bicicleta.
Deixou cair a cadeira, tirou o cigarro da boca e esmagou-o com a mão. Sentia o sangue a ferver-lhe nas veias e, num impulso, quis atravessar a rua para ajudar o homem, mas o trânsito não lhe deu passagem. À porta do Centro Comercial ninguém dera importância ao sucedido, ninguém parara sequer para olhar. Com excepção de duas senhoras de ar distinto, portadoras cada uma de uma muito bem composta e volumosa cabeleira platinada, que se mostraram visivelmente incomodadas com o espaço que a bicicleta e o homem ocupavam, obrigando-as a contorná-los para entrarem no Centro Comercial.
Por fim, o amolador ergueu a bicicleta, montou-a e afastou-se, pedalando lentamente pelo passeio – o que provocou a indignação de vários transeuntes, que o invectivaram.
Caminhou até ao cruzamento com a Avenida João XXI e esperou no semáforo para atravessar para o passeio lateral. Era ali que o separador central terminava. Enquanto esperava o sinal de passagem, aproveitou para retirar um cigarro do maço, mas devolveu-o à caixa. Sentia ainda os nervos à flor da pele, o que lhe relembrava perigosamente o efeito calmante da nicotina. Sentiu-se observado. Discretamente, olhou pelo canto do olho. Ao seu lado, uma adolescente sorria para ele, mas só reparou nisso mais tarde. Impressionou-o o quão escuro eram os olhos e o cabelo dela, apanhado em dois totós, não de lado, mas na parte de trás da cabeça. Estava integralmente vestida de preto, o que lhe acentuava ainda mais a palidez da pele. A única nota de cor era a capa vermelha do caderno que ela tinha na mão.
Comprou rebuçados peitorais Santo Onofre na Mercearia Mourinha e atirou o maço de tabaco para o primeiro caixote do lixo que encontrou. Enquanto atravessava a Praça de Londres, recordou os olhares com que se tinha cruzado e o estranho sorriso da rapariga de há pouco. Não conseguiu deixar de achar que era um sorriso cúmplice, trocado entre pessoas que possuíam um segredo em comum. Se ele ao menos tivesse um segredo para partilhar…
Foi arrancado às suas suposições quando subitamente, ao passar pela Mexicana, um homem em desequilíbrio veio direito a si, quase o derrubando.