terça-feira, janeiro 27, 2009

Avenidas Velhas (9)

O percurso é sempre o mesmo mas, para ele, nunca é igual. Vai pelo separador central: é um espaço (quase) só seu, de onde se vêem as coisas de maneira diferente. Quando os outros transeuntes estão parados, a aguardar passagem, ele avança – quando todos avançam, pára ele. Tem o cuidado necessário no atravessamento dos cruzamentos, de resto, vai concentrado nas pessoas com quem se cruza.

Sem ser nas passadeiras – ou um ou outro peão que ali fica momentaneamente detido, vítima de um atravessamento incauto –, quase nunca se cruza com outras pessoas, naquele estreito passeio.

Ao se aproximar do Hotel Roma, a orquestra de buzinas automóveis iniciou mais um dos seus habituais concertos. Quase sempre relacionados com estacionamentos em segunda fila, desta vez tinha a ver com um veículo abandonado no entroncamento com a Rua Infante D. Pedro. Literalmente abandonado: a trabalhar, porta do lado do condutor aberta, ninguém dentro. Nas suas caminhadas pela cidade, já tinha assistido a muita situação estranha, mas um carro a trabalhar, no meio da via, era a primeira vez. Não resistiu e, para ter a certeza que os seus olhos não o enganavam, ficou a ver. Como as folhas das árvores no final do verão, uma pequena multidão de transeuntes começou a juntar-se no passeio, junto ao hotel; e com ela, as teorias sobre o bizarro fenómeno. Depois de quase cinco minutos de buzinadelas incessantes e de buscas infrutíferas do automobilista desaparecido, retomou o seu caminho mas, uns metros à sua frente, deu de caras com Karl Marx.

Bem no centro do separador central, uma réplica humana do autor do Manifesto Comunista, parecia esperar por ele. Vestia um colete branco, com o que lhe pareceu ser o símbolo de uma ordem religiosa, em vermelho. No braço direito, uma braçadeira com o mesmo símbolo e suspenso do ombro esquerdo, um recipiente circular, a tiracolo. Depois de dois passos hesitantes, avançou direito ao sujeito, que o interpelou.

– Não quer ajudar a combater o cancro? – perguntou-lhe Marx, numa voz cavernosa e densa, que se sobrepôs à sinfonia automóvel, ao mesmo tempo que lhe estendeu o objecto que trazia ao ombro. Um peditório no separador central! Mais uma novidade. Desculpou-se com a falta de dinheiro – o que era verdade – e contornou o homem, que permaneceu estático, como que à espera de alguém.

Não tinha andado vinte metros quando, vinda a correr do passeio lateral, uma rapariga parou à sua frente. Murmurou qualquer coisa imperceptível, mas foram os seus olhos, de um cinzento baço e frio, que falaram. Pediram-lhe – suplicaram-lhe – compreensão e ajuda. Reparou que ela trazia na mão o Borda d’Água e pensos rápidos. Já depois de a ter deixado para trás, aqueles olhos estrangeiros e suplicantes continuaram a falar com ele. Disseram de uma criança pequena, muito doente, e do dinheiro que fazia falta para o remédio. Interrogou-se se seria isso que diziam, mas depressa afastou a ideia. Ele, que nunca fora bom a escutar os outros, não podia querer agora entender quem se expressava pelo olhar.

Não se cruzou com mais ninguém até chegar ao Centro Comercial, mas aí, voltou a deter a marcha. Um segurança implicava com um ciclista de idade, que ali queria encostar a bicicleta. Na verdade, sendo alguém que ali tinha chegado de bicicleta, não se tratava de um ciclista. Era, antes de mais, um amolador – e, seguramente, no tempo de chuva, um arranjador de chapéus-de-chuva. Não via um há bastante tempo e depressa esqueceu a disputa que ocorria diante de si. Ficou a olhar a bicicleta, certamente tão antiga como o dono (que era velho), sem mudanças (como o dono, que não soubera ou conseguira mudar), suja (também como ele), adaptada a uma função para a qual não tinha sido criada (ao contrário dele, que não se adaptou a mais nada).

Com desprezo evidente, o segurança empurrou o velocípede, que caiu com estrondo. O amolador tentou empurrar o homem, mas acabou também por cair desamparado, de joelhos, junto da bicicleta.

Deixou cair a cadeira, tirou o cigarro da boca e esmagou-o com a mão. Sentia o sangue a ferver-lhe nas veias e, num impulso, quis atravessar a rua para ajudar o homem, mas o trânsito não lhe deu passagem. À porta do Centro Comercial ninguém dera importância ao sucedido, ninguém parara sequer para olhar. Com excepção de duas senhoras de ar distinto, portadoras cada uma de uma muito bem composta e volumosa cabeleira platinada, que se mostraram visivelmente incomodadas com o espaço que a bicicleta e o homem ocupavam, obrigando-as a contorná-los para entrarem no Centro Comercial.

Por fim, o amolador ergueu a bicicleta, montou-a e afastou-se, pedalando lentamente pelo passeio – o que provocou a indignação de vários transeuntes, que o invectivaram.

Caminhou até ao cruzamento com a Avenida João XXI e esperou no semáforo para atravessar para o passeio lateral. Era ali que o separador central terminava. Enquanto esperava o sinal de passagem, aproveitou para retirar um cigarro do maço, mas devolveu-o à caixa. Sentia ainda os nervos à flor da pele, o que lhe relembrava perigosamente o efeito calmante da nicotina. Sentiu-se observado. Discretamente, olhou pelo canto do olho. Ao seu lado, uma adolescente sorria para ele, mas só reparou nisso mais tarde. Impressionou-o o quão escuro eram os olhos e o cabelo dela, apanhado em dois totós, não de lado, mas na parte de trás da cabeça. Estava integralmente vestida de preto, o que lhe acentuava ainda mais a palidez da pele. A única nota de cor era a capa vermelha do caderno que ela tinha na mão.

Comprou rebuçados peitorais Santo Onofre na Mercearia Mourinha e atirou o maço de tabaco para o primeiro caixote do lixo que encontrou. Enquanto atravessava a Praça de Londres, recordou os olhares com que se tinha cruzado e o estranho sorriso da rapariga de há pouco. Não conseguiu deixar de achar que era um sorriso cúmplice, trocado entre pessoas que possuíam um segredo em comum. Se ele ao menos tivesse um segredo para partilhar…

Foi arrancado às suas suposições quando subitamente, ao passar pela Mexicana, um homem em desequilíbrio veio direito a si, quase o derrubando.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

Avenidas Velhas (8)

Sentiu que estava descomposto, que a camisa lhe saía das calças e que o casaco não lhe assentava bem nos ombros. Instintivamente, fez algo que nunca antes tinha feito perante outros: levou a mão à braguilha, para confirmar que estava fechada. O sangue afluiu-lhe à cabeça, como se tivesse sido injectado do exterior. Ao mesmo tempo, um intenso calor envolveu todo o seu corpo. Tomando consciência do despudor seu acto, procurou refúgio atrás do quiosque abandonado, junto da igreja. Necessitava como nunca de um momento só para si, imediatamente, e ir para casa não era opção. A vizinha Jacinta jamais o poderia ver naquele estado de confusão.

Preparava-se para respirar fundo, na protecção daquela gaiola esquecida em plena cidade, quando deu de caras com uma mulher de idade, imóvel, atrás do quiosque. Vestia, a despropósito para a altura do ano, uma gabardine que já perdera a cor e uma boina vermelha, de lã. Calçava umas galochas da cor dos limões que não são amarelos nem verdes. Surpreendido, o professor hesitou sobre o que fazer. Deu dois passos à frente, parou e depois rodou sobre si próprio, como que à procura de uma saída de emergência da Praça de Londres. Reparou então que uma ténue nuvem de fumo se elevava de um dos lados da mulher, subindo até à altura dos ombros dela e desaparecendo em seguida.

Ela olhava-o de lado, sobrancelhas franzidas, com uma expressão dura, que lhe acentuava as rugas e os sulcos que lhe percorriam as faces, como meridianos. A mensagem era clara e ele percebeu-a: estava a invadir propriedade privada.

O professor pareceu encontrar a saída nuns degraus que, um pouco mais à frente, se afundavam no passeio – o acesso ao parque de estacionamento subterrâneo – e tomou a sua direcção. Deteve-se antes de os alcançar. Retirou um lenço do bolso do casaco e limpou as gostas de suor que se acumulavam na testa. Passou-o em seguida pelo rosto e olhou para trás. Como uma figura de cera rude, em exposição, a mulher permanecia imóvel, com o olhar em cima dele, a enxotá-lo dali.

Percebeu-a indigente, sem-abrigo. Quis vê-la melhor e voltou-se, mas ela tinha desaparecido. Quem lá estava agora era ele, difuso, imperfeito, abandonado, nos vidros imundos do quiosque. O reflexo interpelou-o.

– Tens medo do quê, de quem? Porque te escondes?

Começou a responder.

– De também eu ser como essa mulher, de…

Calou-se.

A nuvem de fumo tinha voltado. Saía de um sujo e enferrujado Termo, decorado com pequenos quadrados que, em tempos, tinham sido vermelhos e pretos. A mulher e o quiosque faziam outra vez companhia um ao outro. Ela já não olhava para ele. Servia-se do que seria um chá, ou talvez café.

Ficou ali algum tempo. A sombra projectada pela igreja tinha-o absorvido e a mulher seguido o seu caminho. Atravessou novamente a praça e dirigiu-se ao caixote do lixo preso ao poste de iluminação, junto da Mexicana. Sentia-se estranhamente confiante – o suficiente para não se importar que o vissem a remexer no lixo. Espreitou pela abertura e viu o papel. Por sorte, uma casca de banana tinha-o evitado por pouco. Retirou-o o colocou-o no bolso, ainda amarrotado. Colocou-se então, hirto, ao lado do poste, certificando-se que o seu ombro direito estava paralelo a ele. Depois de uns segundos em que permaneceu imóvel, começou a descer a Rua Guerra Junqueiro.

Não é fácil contar enquanto se caminha. Como já antes sucedera, teve que fazer um esforço suplementar de concentração para não se baralhar na contagem. Queria dar o ar mais natural possível ao passeio; que aquele fosse apenas mais um, mas a verdade é que se preocupava a cada passo que dava – este foi muito longo… este demasiado curto?! – e isso distraía-o e baralhava-lhe a sequência. Quando sentiu que estava prestes a perder o rumo da contagem, parou. Retirou a folha do bolso, alisou-a o melhor que conseguiu e, com a Mont Blanc que sempre trás consigo, escreveu três algarismos no canto inferior esquerdo da página. Procurou acalmar-se. Libertar o espírito de todos os pensamentos, pelo menos, até chegar ao fundo da rua.

Havia muitas pessoas na rua, principalmente ali, junto à Zara. Reparou que a maioria eram mulheres e que quase todas transportavam, para além da sacramental mala a tiracolo, um saco com compras. Um grupo de ciganas aproveitava a concentração feminina naqueles metros de calçada, para apregoar em surdina malas e carteiras Louis Vuitton. Verdadeiras, menina; isto veio da França, de umas caixas que caíram de um camião deles; acredite, menina, isto é de qualidade, ora apalpe.

O professor lembrou-se de uma conversa que escutara, um dia, na sala de professores: que os ciganos tinham um tal pavor a sapos e rãs, que havia lojas a colocar nas montras e nas portas, imagens dos batráquios, com o objectivo de afugentar a indesejada venda ambulante das ciganas. Fazia aqui falta, considerou.

Uma voz sumida e atrapalhada pelo catarro, chegou-lhe pelas costas. Um homem muito magro e torto, encostado a uma muleta, olhava para ele. A íris dos seus olhos não tinha cor.

– É para comer, acredite – só então se apercebeu que o homem tinha a mão estendida e, apenas num segundo momento, que a mão se estendia na sua direcção.

– Peço perdão, fala comigo?

– Qualquer coisinha. Pode ser a moeda mais pequena.

– Queira desculpar-me, mas não tenho nada para lhe dar.

O outro não arredou pé.

– Por caridade – disse, acentuando o tom de súplica.

O professor deu um passo à frente e depois recuou o mesmo passo. Queria sair dali, mas não se sentiu capaz de reiniciar a contagem. Tinha parado para se concentrar e não o conseguira ainda. Virou costas e nada disse. O pedinte deu um passo ao lado, na direcção de uma idosa que, desafiando o relativo calor daquele final da tarde, subia a rua dentro de um casaco de peles. Os dois grandes sacos de papel que transportava faziam-na avançar com dificuldade.

– A senhora dê-me qualquer coisinha para comer…

– Vá importunar outra. Deixe-me passar! – atirou-lhe ela com voz esganiçada e sem deter o passo.

– Isto está cada vez mais difícil – disse o aleijado para o homem que estava sentado no degrau que dá acesso a uma instalação eléctrica, entre as duas portas da Zara. À sua frente, no passeio, tinha estendido em cima de um plástico, vários livros. Sem esperar pela resposta, o pedinte colocou-se à frente de duas senhoras que tinham abusado da maquilhagem.

– Boa tarde minhas caras senhoras, queria pedir-vos…

Por esta altura, o professor tinha retomado o passo, rua abaixo.

Duzentos e oitenta e dois, duzentos e oitenta e três, duzentos e oitenta e quatro…