quarta-feira, abril 09, 2008

O Estojo (8)

Joaquim tinha proposto que a Lua-de-mel fosse no Hotel Costa da Caparica.


– É quatro estrelas. Tem piscina. Vistas desafogadas. – disse ele, com voz viva e olhar arregalado. – Fica perto de casa… – acrescentou, com voz mortiça e a olhar para os sapatos.

Deolinda não se impressionou:


– Não quero ir para um sítio onde possa encontrar gente conhecida – não explicou, mas a vizinha Celeste tinha um avançado no Parque de Campismo da Praia da Saúde.

Também não tinha sido fácil a Joaquim, conhecer Deolinda. Chegaram um ao outro pela internet, numa sala de chat.
Desesperado com relações inconsequentes, Joaquim decidiu procurar no virtual o que lhe escapava no mundo real. Já Deolinda, procurava no sítio da TVI novidades sobre telenovelas, quando – e ainda hoje se interroga amiúde porque o fez – decidiu entrar na sala chat, acabando por se entusiasmar com a anonimidade da coisa, com a possibilidade de dizer o que quisesse, sem ter de depois aturar quem não lhe interessava ouvir.

Na busca de outros temas e de pessoas que se interessassem por novelas mexicanas, passou para a rede portuguesa de chat – ptnet – onde, numa tarde escura e fria de inverno, deu por si a sorrir das piadas malandras de um rapaz bem-disposto.

C++
(Deolinda) resistiu a seis meses de pedidos insistentes por parte de SugarLips (Joaquim), mas lá acabou por aceder a um encontro em carne e osso. Uma semana depois, namoravam:


– Queres namorar comigo, Linda? – perguntou ele, com os cantos da boca próximos das orelhas.
– Eh… está bem. E não me voltes a chamar isso.

A primeira vez que tocaram um no outro, foi com os lábios.

Acabaram por passar a Lua-de-mel em Peniche. Quatro dias, o tempo que Deolinda considerou ser o máximo que conseguia estar longe dos pais.
Nunca usou o fato de banho que a sua mãe lhe comprou, nem aceitou os insistentes convites do marido para passeios à beira-mar, por causa do vento. Passou quase todo o tempo sentada numa cadeira de plástico, no relvado das traseiras do Hotel, a ler revistas do coração.
À noite – que, segundo Deolinda, há certas coisas que não se fazem durante o dia –, assim que terminava o Jornal Nacional e ela se voltava a mexer, Joaquim procurava-a, na cama. Nas duas vezes em que acedeu aos avanços do marido, ele não conseguiu dominar os nervos e rapidamente veio ao de cima a sua falta de controlo nas situações intimas.
Sentado na cama, de costas para ela, com o sorriso escancarado, passava mais tempo a justificar-se que a fazer amor. Deolinda nunca se importou com isso: quanto mais depressa ele lhe saísse de cima, mais depressa podia aguardar o inicio da telenovela. Ainda assim, não perdeu uma oportunidade de o fazer sentir culpado.

E assim se passaram cinco estações.

À janela de casa, numa rua inclinada e escura no Bairro das Colónias, Joaquim arrepiou-se. Franziu a testa quando concluiu que, naquele Verão, ainda não tinha sentido calor. Aliás, não se lembrava de sentir calor desde Maio do ano passado.
Um homem de idade, apoiado numa bengala, tentava fazer chegar a casa um saco de plástico. Arrastava os pés calçada acima, lentamente, sem tirar os olhos do chão. Joaquim sentiu um súbito peso nos braços, soltou um gemido e fechou a janela. A sua vida tinha de ser mais do que o carregamento de um fardo.

Achava que tinha feito tudo para que a relação desse certo. Ainda no outro dia tinha ido beber uma cerveja com o amigo Tavares e ele tinha concordado consigo: não havia muito mais que pudesse fazer.
Deolinda parecia não se importar com nada, para além dos peixes no seu aquário. Nem sequer consigo própria. Cinema? Já não havia filmes como os antigos e esses, já os tinha visto todos. Passear? As condições atmosféricas eram sempre adversas. Sair à noite? O barulho e o fumo do tabaco faziam-na passar mal. Sexo? O médico tinha-lhe diagnosticado um “princípio de osteoporose”, o que limitava muito os movimentos que podia fazer… ou suportar. Férias? A praia não lhe dizia nada e tinha alergia às coisas do campo e a todos os animais que estivessem fora de água.


– Vamos conhecer uma cidade estrangeira – propôs ele certa vez, entusiasmado.
– Para quê? – respondeu Deolinda, fazendo cócegas no vidro do aquário, na direcção de um Guppy que passava.

A irem jantar fora resistia ele, que estava farto de frango assado.

(continua)


boomp3.com

20 comentários:

Rui disse...

Tendo notado em alguns leitores(as) um certo frenesim em relação à noite de núpcias, não posso deixar de prever alguma decepção pela maneira com que a coisa foi tratada.

Calma. Fica aqui a promessa de sexo futuro.

(também tenho direito a marketing, então...)

Olinda disse...

E deram um pulinho à Areia Branca?:-)

Rui disse...

sinhã, a.,

Com aquele vento e frio que por lá se dá a toda a hora? A Deolinda não vai nessas modernices.

Maria disse...

Frase preferida: «A primeira vez que tocaram um no outro, foi com os lábios.» Genial.
De elogiar também o avanço cronológico tão subtil e directo. Porque foi dito mas também porque percebemos o que aconteceu nessas «cinco estações» sem uma palavra.
e as fotos são «a» solidão. destaco a 9ª.
Muito bem

Vanda disse...

Rui!!!!


Parabéns pelo salto!



E mais não digo, nem avanço, boqueaberta que estou :) atónita pelo mergulho, surpreeendida pelo percurso...

Todas as fotos falam de solidão, uma solidão presa na pegada...uma solidão funda de alicerce...uma solidão que se salva na promessa que a ponte seja uma passagem...para a outra margem...


Grande Rui!!


Beijos

Anónimo disse...

Consegues fazer desta novela um retrato caricato... é assim que vejo.
E, caramba, a mulher é sempre a culpada da coisa não correr bem! eheh

Bj

Lyra disse...

Passei mandar um beijinho!

Até breve

;O)

CC disse...

Farto de barriga cheia. Ou simplesmente farto de estar farto. De barriga cheia.

Grande abraço.

Anónimo disse...

estou a sorri de canto a canto da boca por causa desta lua de mel, rui ;) nem imaginas quanto! um grande beijinho.

Campainha disse...

Pois olha que a lua de mel não me desapontou. Seca e sensaborona como é a Deolinda não me faria prever outra coisa. Não querendo com isto dizer que a história seja previsível! ;) Estou a adorá-la e continuarei a segui-la.
As fotos são fabulosas! parabéns!

un dress disse...

as tuas fotos são...
são magníficas! :)

o joaquim é que continua tadinho

sem que

... olha, bem queria eu ser conselheira matrimonial

... vidente talvez, isso, vidente! :)

que a lindita não tá fácil não...!






beijO

lélé disse...

Oh pá!... De certeza, que muita gente não sabe que um casamento pode ser isto, senão não havia celibatários!

(Ouvi dizer que vem aí uma revolução sexual nesta relação tão tranquila e harmoniosa?...)

Alberto Oliveira disse...

... saltando a salada "bem temperada" do "estojo nº 7" por inadiáveis afazeres comerciais e dando graças por não ter dado de caras com casal tão apaixonado e sexualmente imprevisível numa das minhas idas à Costa almoçar ao "Sem Pelo nem Moscas" (o concorrente do "Barbas... Vermelhas") é de crer que ainda vou levar com o Joaquim e a Deolinda às compras no Mercado do Forno de Tijolo, onde me abasteço de verduras diversas, tais como alfaces, couve-galega, lombardo e grelos das duas simpatiquíssimas vendedoras das bancas 7 e 8 que concorrem entre si, nas piadas mais pesadas de toda a praça. Ou, quem sabe, na loja dos chineses na Rua Maria Andrade, onde a espuma para a barba é mais em conta e dá também para lavar os dentes. Se tivesse chegado a esta alegre?! zona da cidade de Lisboa, há meia-dúzia de anos atrás, o Joaquim encontraria ao fundo da Rua Agelina Vidal, alguém que lhe trataria do seu problema "É tão bom, não foi querida?!". Do problema e da carteira, que a Suzy Prazeres -loira até às unhas dos pés, sabia da poda!? mas levava uma nota preta. Reformou-se aos sessenta, mas tinha pacientes que garantiam que ainda podia praticar mais um ou dois anos. Segundo consta, é agora directora comercial de uma instituição de saúde na zona ribeirinha da cidade. Mas o Joaquim é um bacano sabido: como não faz a Deolinda viajar de prazer, oferece-lhe o prazer de viajar. É o verdadeiro especialista das agências turísticas...

Azul disse...

Olá Rui. Bem me parecia quer esta lua de mel, ia ter pouco que contar. ;Mas, ainda assim, confesso que esperei algo um nadinha mais agitado. O que se há-se fazer? Pior do que isso, é passadas tão poucas primaveras, a coisa ter esmorecido assim. lamento profundamente pela Deolinda e pelo Joaquim, que no fundo até me parecem ser boa gente. Talvez lhes faça falta mais algum sentido de sonho, não acha? lol

Um abraço para si. Até breve. Azul.

Novas no meu Azul. Obrigada.

JPD disse...

Gostei do texto, sobretudo porque evitou o cliché da "lua de mel bem sucedida... O pior foi resto".

Acho que escreves com muito humor e sais airosamente de «quadros complicados»

Se tiveres portunidade, lê «NA PRAIA DE CHESIL» de Ian McEwan.

Anónimo disse...

cinco estações?... ah, valente Joaquim.

O Lápis disse...

Obrigada pelo afia lá deixado :)


Devagar nos fazemos ao céu :)


Beijos :)

Maria Laura disse...

Espantosa lua de mel! Sim senhor, ainda por cima prometes "sexo futuro"... :) Resta saber com quem, né?
A sério, a sério, fiquei encantada com as tuas fotos. Lindíssimas.
E cá estarei para saber o que acontecer a este casal. Não antevejo nada de bom, mas enfim...

segurademim disse...

... bem se podiam ter perdido com um prato de percebes no baleal

Gi disse...

As fotos estão magníficas Rui.

O Joaquim não ficava mal aí no meio delas ...