domingo, outubro 30, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 2)

Região de Ypres, Flandres Belga. As piores chuvas dos últimos 30 anos tinham tornado a vida nas trincheiras quase insuportável. As condições de vida eram péssimas, havia falta de mantimentos, as instalações que serviam de aquartelamento deixavam entrar água por todo o lado. Tudo estava húmido e a apodrecer. À noite, o frio fazia-se já sentir, e deixava adivinhar um Inverno muito penoso.

A Companhia de Herr Maximilian L. estava colocada na ponte da estrada de Menin. Era este o acesso à localidade de Passchendaele, local estratégico para o controlo da região.
Estávamos em meados de Setembro. A tensão entre os militares aumentava a cada hora. Sabia-se que o exército Aliado se aproximava.
A ofensiva iniciada a 31 de Julho, a terceira Batalha de Ypres e primeira de iniciativa Aliada, tinha encontrado resistência feroz por parte das tropas alemãs, mas era agora inevitável o confronto. Seria o baptismo de fogo de Max.
Nunca lhe vi medo. Aos homens do pelotão que comandava aparecia sempre confiante e determinado, a mensagem que passava era a de que aquilo para que tinham sido chamados estava perante eles: a defesa da pátria. E isso passava pela conservação daquela ponte.

Desde a partida de Munique não mais o Capitão Ludendorff se separou de mim. Apesar das condições mais que adversas, da muita lama, da humidade constante, Max tinha todos os cuidados comigo. Conseguiu sempre preservar-me de qualquer dano.
Apenas nos separávamos fisicamente à noite. Colocava-me, aberto, em cima de uma pequena mesa junto ao beliche que ocupava. Ficava vários minutos a contemplar-me à luz da vela, na verdade, a foto de Frau Lea, a recordar momentos passados a dois.
Por vezes rezava. Por esta altura, mais que uma vez por dia. Pedia protecção para si e para a sua mulher. E escrevia-lhe também. Contava-lhe os vários aspectos da vida nas trincheiras, sempre de um ponto de vista optimista, omitindo tudo o que pudesse realmente preocupar Lea. Sentia-se algo ingénuo com o que escrevia, no fundo, sabia que Lea percebia isso, mas achava melhor assim.

A 19 de Setembro, ao amanhecer, os primeiros obuses do dia caíram bem mais perto das posições que ocupavam, do que nos dias anteriores. O exército alemão recuava e espalhava-se por uma enorme frente de batalha. Não poderiam contar com muita ajuda.
À tarde as ordens chegaram e não podiam ser mais simples: resistir a todo o custo, em último caso, dinamitar a ponte.
O pelotão que Herr Maximilian L. comandava foi colocado a 500 metros da ponte, numa segunda linha de defesa.
Era agora, iria combater. Teve medo. Nessa noite escreveu a Lea. Rezou muito. Beijou a foto, coisa que nunca tinha feito e dormiu agarrado a mim… pelo menos tentou, mas nunca conseguiu.
O dia 20 começou com a habitual alvorada de obuses. Às 9h00 a primeira linha de defesa caiu. Os (poucos) soldados que conseguiram chegar até nós não ficavam: “recuem, não temos qualquer hipótese… são muito mais que nós… temos que atravessar a ponte, dinamitá-la e suster o avanço inimigo na outra margem…”.
Max hesitou. O coração dizia-lhe que era a única coisa sensata a fazer, que devia recuar; mas a razão dizia-lhe que fixasse, não poderia recuar na primeira vez que entrava em combate, não poderia viver com a sua consciência se o fizesse. Ficaram.

Os morteiros massacravam as suas posições. Começaram a ser atingidos por tiros de metralhadora e espingarda. Responderam como puderam. Tiveram as primeiras baixas.
Quando os tiros de morteiro cessaram, Max percebeu que as tropas aliadas iriam avançar. Gritou ordens e incentivos aos seus homens sem sequer saber se estava a ser ouvido. Tinha agora a clara sensação de que cada homem estava por si, desorientado, perdido. Nada o havia preparado para aquilo. Pensou mais uma vez se seria desonra recuar.
Rudolf Schell, soldado encarregue do rádio e que sempre acompanhava o Capitão, caiu desamparado para o lado. Tinha sido atingido na cabeça. Granadas começaram a explodir bem perto, projectando terra por todo o lado.
“Retirar, retirar”- gritou Herr Maximilian L.

Confesso que não sei exactamente como aconteceu. O barulho era intenso, eu, ora era comprimido contra o chão, ora violentamente abanado enquanto Max corria. A certa altura ouviu-se um som diferente, seco, muito próximo de mim. Fui mais uma vez pressionado contra o chão. Desta vez não se seguiu o chocalhar violento.
Com dificuldade, Max conseguiu virar-se de barriga para cima. Um liquido espesso e quente começou a invadir o bolso onde eu me encontrava. Tinha sido atingido no estômago.
A primeira coisa que senti no jovem Capitão foi incredulidade, como se tudo aquilo não estivesse a acontecer. Tentou levantar-se, mas em vão. Não conseguiu sequer arrastar-se.
Gritou então mais uma vez, “retirar…”, mas as cordas vocais traíram-no e apenas um fio de voz que ninguém ouviu para além de mim lhe escapou por entre os lábios secos.
Quando finalmente Max percebeu, procurou-me. Com a mão ensanguentada e enlameada, apertou-me com quanta força lhe restava.
Ainda murmurou “Lea...” e, sem que tenha disparado um único tiro, morreu.

Seguramente, a coisa de que guardo uma memória mais intensa desta minha longa existência, é das horas ali passadas na mão de Max, de ver as nuvens passar, da chuva, do fumo negro, do barulho ensurdecedor, da correria louca dos soldados, dos seus gritos; e depois do silêncio… de como algo tão brutal tinha dado, aos poucos, lugar a um silêncio profundo.
Acima de tudo, guardo memória de como o calor daquela mão me foi abandonando, de como se foi esvaindo para a terra.
A força do aperto, essa nunca se perdeu. Max manteve-me sempre apertado, como se eu fizesse, agora, parte dele.

No dia seguinte, a meio da manhã, o sol rompeu por entre as nuvens. Senti os seus raios tocarem-me por entre os dedos de Max. Apesar de muito sujo, consegui reflectir parte desses raios.
Foi certamente isso que atraiu até mim um soldado. Parou e fitou o corpo de Max durante uns segundos. Retirou o capacete e benzeu-se. De cabeça baixa, fez uma breve oração.
Lembro-me de ter pensado no quão estranho era aquele comportamento, em como sentimentos daqueles pareciam deslocados num campo de batalha.
A custo, retirou-me da mão do capitão. Percebi então que era um soldado Aliado, do Corpo Expedicionário Português.
Preparava-se para seguir o seu caminho quando viu algo no corpo de Max que lhe chamou a atenção. Baixou-se, retirou o que quer que fosse e guardou no seu casaco.

A mim não ligou muito, abriu-me e fechou-me sem que a sua expressão se alterasse. Ou não percebia nada de relógios ou, por eu estar sujo, não reconheceu o valor que tinha em sua posse. Guardou-me no bolso e avançou.

NA – Obviamente, esta história é ficção. Apesar disso, tentei que o enquadramento histórico fosse o mais próximo possível da realidade.
Apesar disso, cometi um erro: nos apontamentos que tomei, troquei o ano da terceira batalha de Ypres, que ocorreu em 1917 e não em 1916. Assim, o ano da primeira parte teve que ser alterado.
Podem encontrar aqui informação sobre essa batalha e aqui sobre o Corpo Expedicionário Português.

14 comentários:

Anónimo disse...

Agr sim comento a história...
Tem um enquadramento histórico fantástico, qt à história em si, é mto bonita e ao mm tmp mto triste. Transmite uma visão do amor mto bonita e mto doce e calma.
Hj deixo-te tmb um poema da mnh poetisa favorita, ñ sei se gostarás mas pontus

Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Florbela Espanca

Sorrisos, beijinhos e uma boa semana pa ti

Anónimo disse...

Gostei mto... Não sabia que tinhas coragem para "matar" o Max...

LD

virilão disse...

Não venho cá há uns dias, e apesar de ver que era a parte 2 decidi arriscar e ler antes da parte 1.
Não imaginas como resultou...mas o que é que o gajo tinha no bolso? e tal?o que será? e pumba..no fim, fui ler a parte 1. -Categoria!
E as voltas que dás para dizer que és um relogio?
Estava tb , curioso como é que te documentavas para a história, mas desfizeste o enigma...(achei mal - não deves revelar fontes!)
Um abraço

Sara MM disse...

:'(

Qause preferia postas "da tanga"... é que esses horrores sei que foram mesmo verdade :o(

Ainda nós hoje nos queixamos... imagina se nós ou os maridos (ops!) tinham de passar por uma destas... xiça! viva o IVA e m*rdas afins...

BJS

Sara MM disse...

Mas o relógio continua vivo.. certo?

BJs

Anónimo disse...

Pois é, tenho a sensação de estar a assistir ao nascimento de um escritor serio, com preocupação histórica, com referencias à musica, cinema, literatura, pintura, etc., referencias essas que muito subtilmente revelam um pouco a personalidade do personagem.( eu disse personagem não autor ).
E com um gosto particular em navegar nas aguas do existencialismo, e que bem navegas, deixa-me que te diga.
Também sinto que estas a exigir cada vez mais de ti, e que tens uma enorme preocupação em não querer defraudar quem te lê desde inicio, e quem recentemente te descobriu, mas essa é uma batalha gostosa que revela coragem, e acorda um talento.
Contar este conto do ponto de vista de um relógio, é um regalo para quem te lê, bela ideia.
Continua, com calma.

Um abraço

P.S. Pressinto que a necessidade de actualizar o blog com novos contos começa a pressionar-te, vai com calma, a nossa única exigência é que o relógio continue a sua bela historia, eu sei que ele vai parar ao bolso de um modelo italiano que é conhecido pelo papa ragazza.

Anónimo disse...

Eu acho que esta nova moda dos blogs é uma coisa um bocado "masturbatória" e que há muita gente que tem a pretensão de ter competência para escrever bem e que, acima de tudo, tem coisas interessantes para dizer, mas a verdade é que poucos têm.

O Rui é um dos poucos que, efectivamente, tem.

Não fala do óbvio, fala muito para além disso, abre-nos horizontes e faz-nos viajar por outras realidades que não aquelas que estão diante de nós. Acrescenta-nos algo.

Penso ainda que está a atingir um estádio de algum amadurecimento, consubstanciado numa enorme exigência e perfeccionismo, que é claramente notório nos seus textos.

E por isso mesmo, nota-se que para ele, a escrita é um processo doloroso e desgastante, como é sempre para os grandes escritores. Escrever longas páginas e apagar tudo para voltar a escrever tudo de novo, andar o dia todo a pensar no que se vai escrever, linhas de pensamento que se desdobram em dezenas de outras linhas de pensamento, cenários e personagens que se sucedem uns aos outros, enredos que se enredam por encruzilhadas sem fim...

É uma arte que, quando é, efectivamente, um talento, exige muito de nós e absorve-nos totalmente.

Mas, de vez em quando, tens que vir à tona da água para respirar. Não te podes esquecer disso.

E esse vir respirar...pode, às vezes, demorar algum tempo.
Como disse o X (e muito bem) "vai com calma", pois aqui todos sabemos esperar pacientemente, até porque sabemos que o que virá, será, concerteza, de muita qualidade.

Adorei.

Beijos

__________________________

segurademim disse...

... Oh o Max e a Lea afinal não poderam cumprir ovoltaremos a ver-nos!!
ainda bem que o relógio de Mr. Adrien nos deu testemunho desse amor...

Anónimo disse...

" (...)imagina se nós ou os maridos (ops!) tinham de passar por uma destas... xiça! viva o IVA e m*rdas afins..." - Sara

AMEN to that!! ;) ehehehe


" (...)eu sei que ele vai parar ao bolso de um modelo italiano que é conhecido pelo papa ragazza." - Francisco

(Lol... é o que eu digo, o Francisco é que sabe, eheheheh ;))


E, como já disseram... respira... RESPIRA!!! (senão ainda te engasgas com algum alho!! ;))
Nós ficamos aqui à espera para te ler!

Beijoo

Inês

Maria Liberdade disse...

Está excelente! Embora tenha pena que tenhas morto o Max. Não é que não o esperasse, mas não o esperava para já... O que dizer que o melhor ainda está para vir.

Anónimo disse...

E mataste-o!!! Como foste capaz??? Meu Deus que tristeza, diz-me que pelo menos isto vai ter um fim belo, uma paixao qualquer! (pois já sei, as mulheres e as paixonetas ne?)

Tal como ja te tinha dito (e alguns começam a descobrir finalmente) tu escreves muito bem e sem pressão(o X tem razão)devias publicar o que escreves. Ainda nao me esqueçi do prometido, estou a tratar disso! Beijocas

ss

Rui disse...

Comentando os comentários:

Agradeço a todos, desde já, as palavras simpáticas.

Sim, de facto a questão da pressão em publicar existe; tem um pouco a ver com algum receio (meio) inconsciente de que se estou muito tempo sem publicar, as pessoas deixam de aparecer.
Até agora ainda não foi muito intensa essa pressão, os textos têm-me saído sem grande desespero, mas tenho perfeita consciência que no futuro não vou conseguir publicar com esta frequência.
Publicar só por publicar, é que não.

inspira... expira... inspira... expira... (oh, pra ele a respirar)

Anónimo disse...

És como um bom livro que se pousa relutantemente na mesinha de cabeceira, já de madrugada...

;)

Beijoo

Inês


(deixa as manias de lado, eheheheh... estás muito bem assim :))

Anónimo disse...

Se precisares de ajuda a respirar avisa, que eu arranjo forma de te dar uma ajudinha

;)

ehehehhehehheeheheheh