terça-feira, maio 02, 2006

Uma Vida Demorada (5)

A minha primeira reacção foi rejeitar a ideia. Já começava a arrepender-me de ter ouvido as gravações, quanto mais ir para o Algarve à procura de algo que eu nem sabia o que era.

- À procura de ti, João. Lembras-te? É disso que se trata, das tuas raízes, de encontrar algum descanso, alguma paz interior.
- Mas quem te disse que eu preciso disso? – Instintivamente, olhei para o armário onde guardava as garrafas. Tentei disfarçar, mas Leonor percebeu.
- Não te tentes enganar, pelo menos faz-me esse favor. Sabes bem o que eu quero dizer. Tu já não és uma criança e esta parece-me uma excelente oportunidade para fazeres algo por ti. – Veio sentar-se ao meu lado e agarrou-me na mão.
- Andas a ler muitos livros de psicologia.
- Ando é preocupada contigo há já algum tempo. Não sabes a alegria que me deste no outro fim-de-semana, com os meus amigos. Foi por esse João que eu me apaixonei e é dele que eu preciso.
- Estás a agarrar-te a algo muito ténue. Já reparaste que não temos absolutamente nada de concreto, que só existem suposições? Acho que estás a depositar demasiadas esperanças em algo que não está lá, numa espécie de pote de ouro no fim do arco-íris.
- Antes isso que nada. O que temos a perder, diz-me? Vamos passar um fim-de-semana ao Algarve e aproveitamos para fazer umas perguntas, se não der em nada, paciência, tiramos daí o sentido. Olha, eu não conheço a Fuzeta e gostava de conhecer o sítio onde nasceste.
- Eu próprio não conheço, não me lembro dos anos em que lá vivi. Há umas imagens na minha cabeça, mas nem sei se são recordações de algo real ou sonhado. E depois, vai ser difícil conseguir uns dias para lá ir.
- Desculpas, havemos de conseguir. João… eu vi como ficaste entusiasmado com a ida a Ílhavo e ouvi a emoção na tua voz quando me telefonaste a contar da gravação da tua mãe.

Leonor beijou-me na face e deitei a cabeça no colo dela. Ali fiquei, com ela a passar-me a mão pelos cabelos. Era algo de que sentia muita falta, Leonor tinha sido a primeira pessoa em cujo colo eu me lembrava de me ter deitado. É que, apesar de todo o carinho com que me tinha educado, a minha mãe adoptiva nunca me amara, sempre senti isso.
Sempre houve nela uma incapacidade de me fazer sentir seu filho, como se entre nós existisse uma barreira que ela não conseguia superar e que eu não conseguia entender. Pensando bem, eu nunca me tinha tentado aproximar verdadeiramente dos meus pais adoptivos. À medida que ia crescendo, fui-me remetendo para dentro de mim, sentia para dentro, desprovi-me de sentimentos. De alguma maneira, condenei-me à solidão, preparei-me para viver sozinho. E fiz um bom trabalho quanto a isso, só quando Leonor apareceu na minha vida, sem pedir licença, sem perguntar se podia, qual furacão, é que eu percebi duas coisas: o quanto eu me tinha tornado especialista em manter à distância quem me rodeava e como estava farto disso.
Mudar estava a ser difícil mas, ali no sofá, deitado no colo dela, a olhar para o céu através da janela, percebi que precisava de me esforçar. À minha maneira, eu amava aquela mulher.

Aquilo que eu mais gostava no Peugeot 407 SW da Leonor era o tecto panorâmico. De facto, era um carro “com estilo”.
Ela tinha conduzido em quase toda a auto-estrada e eu tinha aproveitado para, com o banco recostado no máximo, vir a apreciar as nuvens a passar a grande velocidade. Também a minha vida parecia estar a ganhar velocidade e isso assustava-me. Não conseguia deixar de pensar que havia algum propósito em tudo o que me estava a acontecer. Primeiro os sonhos e depois uma série de coincidências que me levavam agora para a Fuzeta.

- Acreditas em coincidências?
- Disparate João, isso lá existe.

Entre a Ponte Vasco da Gama e a área de serviço de Almodôvar, onde parámos, foram estas as únicas palavras que trocámos. Leonor sabia respeitar os meus silêncios e eu admirava-a por isso, não era com certeza tarefa fácil.
Pedi para ser eu a conduzir o resto do trajecto, não queria ver mais nuvens, não queria ver a minha vida a passar-me diante dos olhos. Essa ideia perturbava-me.
Entretive-me a procurar que razões válidas levam uma rapariga solteira, sem necessidade de fazer grandes viagens de automóvel, a comprar um carro daquele tamanho e preço. Por muito menos dinheiro, tinha comprado algo que satisfaria todas as suas necessidades de locomoção.
Subitamente, tive uma ideia: seria para compensar algo? Seria que; tal como certos homens, ela estaria a tentar compensar o tamanho de alguma parte da sua anatomia com o carro que comprou?
Um sorriso esboçou-se nos meus lábios e preparava-me para a provocar com uma pergunta quando ela se adiantou:

- Onde é que a tua mãe foi sepultada? – A pergunta apanhou-me desprevenido. Demorei uns segundos a responder.
- Perguntas bem mas não sei. Nunca me disseram e eu nunca quis saber.
- Lembrei-me disso. Provavelmente ela está na Fuzeta, devíamos ir ao cemitério, não achas? – Leonor falava num tom de voz descontraído, como se perguntasse o que haveríamos de jantar nessa noite. A ideia, a mim, incomodava-me.
- Nunca entrei num cemitério, sabes? Nem mesmo nos funerais dos meus pais adoptivos. Não fui capaz. Lido mal com a morte. – Passámos pela Via Verde da A2, em breve estaríamos na Via do Infante. – Deve ser outro trauma de infância, mas não fui mesmo capaz de ir aos funerais deles e sei que isso caiu muito mal junto da família. Acharam que fui muito ingrato, que não soube reconhecer tudo o que eles tinham feito por mim. Não foi nada disso, claro, mas fiquei com essa fama. A minha relação com eles, que já era pouca, passou a não existir, nunca mais vi ninguém.
- Nunca me tinhas contado isso.
- Não calhou e também não é assunto em que eu goste de tocar.
- Um dos muitos… mas fico contente por o fazeres agora, comigo. Contaste-me isso sem que eu te tivesse que arrancar tudo a ferros, como é costume.

Leonor tinha razão, sem dar por isso eu disse o que sentia… sem pensar no que dizia, sem medir as palavras. Fui sincero.
Estas últimas semanas estavam, de facto, cheias de novidades. O que faltaria ainda acontecer?

46 comentários:

rafaela disse...

Isso queremos nos saber =)

Continuo aqui agarrada a narrativa.

Dani disse...

Epa! Quase me cruzava com eles lá por baixo!

Isa disse...

é o que queremos todos saber. n nos faças sofrer mto tempo. :-) bjs

Sofia disse...

...algo de muito bom, espero eu!

estou a adorar.

bjs

Sea disse...

a ler... a ler... :)
Um beijo

Anónimo disse...

E se afinal os pais não morreram?? Será??? Hmmmm muito intrigante!!
Estou a gostar imenso :)
Boa semana para ti beijos

Anónimo disse...

meu caro rui fico feliz pelo comentario que me deixou no alcacovas, espero ter opurtunidade de o conhecer melhor pois gosto bastante do que escreve. e já agora um desafio que tal uma historia sobre alcáçovas para o blogue da terra do seu pai. por exemplo aquela do relogio, que eu adorei.
com os melhores cumprimentos
Ricardo Vinagre

Paixão disse...

Certas pessoas entram nas nossas vidas e têm um poder de as alterar...

Continuo "colada" ao teu blog...
Estou a adorar este João...

Beijo

th disse...

Só passei para deixar um beijo, a leitura fica para mais tarde.
th

Anónimo disse...

O k falta?!
Sorrisos e beijos

alyia disse...

Espero que seja algo de bom

Salvador disse...

O q falta ainda acontecer, diz-me, DIZ-ME

Fortunata Godinho disse...

Coincidências? Não sei, não. Agora que há coisas que não são do acaso, disso não dúvido.
continua!

Alberto Oliveira disse...

... Leonor não é a alma gémea de João. Olha a vida de um modo muito mais descomprometido, não deixando de ser prática na maneira de agir e de pensar. Ela é o alento na tentativa de João... a encontar-se consigo próprio.

Anónimo disse...

;-)Bjs

Paixão disse...

Que PDI??? Isto é fruta fresca... não é verde, mas quase:)

Não precisa de ser nas Termas, mas tb deve interessante...
Referia-me ao tratamento em si...

Beijos

Sara MM disse...

não sei...... mas estás ops! ele está no bom caminho!!! e ainda bem.... senão.. dizia-te como me disseste a mim.. :o) e tens lá uma perguntinha....

qt ao carro.. é pra quem pode! nao me falta nada - agora!finalmente! - mas nao me importava de ver as estrelas nas viagens :o)

BJsss

inBluesY disse...

Um BJ

919 disse...

amor é... um espaço para crescer em liberdade...

CS disse...

Mesmo só para dizer olá. Não dá para te ler assim à pressa e cheia de sono. Beijos!

Light disse...

como sempre...impressionante!

susana disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
susana disse...

Escreves maravilhosamente bem!
Prendes o leitor!!!
Beijocas!

a_mais_linda disse...

mistériooo...continua por favor, estamos á espera...

Anónimo disse...

Olá Rui...estou visitando teu blog pela 1* vez e estou adorando te ler...você escreve muito bem ...espero vc no Tok para conhecer um pouco da minha Alma gemea...
"Ele sempre foi um homem muito interessante, gostei dele desde o primeiro instante que o vi...
ou melhor ouvi...ah! nem sei.." vem ler tudo...estou esperando...bjos com Tok de Seda

Vanda disse...

acredito em coincidencias e no poder da tua criatividade para me teres aqui :) sem perder nada!

beijo

Sea disse...

Vim espreitar se já tinha acontecido mais alguma coisa :)
Um beijo

alice disse...

querido rui,

com um dia de avanço, venho desejar-te um bom fim de semana

tudo de bom para ti

beijinhos,
alice

Anónimo disse...

Rui,
Fiz te um pequeno desafio no meu planeta azul. Espero que aceites é por uma boa causa.
Beijos

Luna disse...

A história está fantastica , quero continuar ´a descoberta
beijos

segurademim disse...

... acho mal que o João não tenha ido ao funeral dos pais adoptivos! também não gosto que ele duvide do amor da mãe, adoptiva! se não o amava, porque raio cuidava dele? concordo que é ingrato!
a Leonor vai ter um trabalhão para o tornar uma pessoa decente... palpita-me!

beijo ;)

LUA DE LOBOS disse...

A autora Maria de São Pedro, a Papiro Editora e a Fnac têm o prazer de convidar V.Exas. a estarem presentes para o lançamento do livro GATO PEDRA no dia 19 de Maio, pelas 19.00h na Fnac - Cascais Shopping.

Salvador disse...

O perfeito não se comenta, é perfeito

Sara MM disse...

O CALIMERO?!?!?!?!

aaaaaaaaahh!ah!ah!ah!

é melhor ser segredo, não!??!?!

LOOOLLLLLLL

BJss

Vanda disse...

amor e raiva é mais saudavel que amor e pena ou amor e indiferença, não é? :)

raiva porque quando se ama se espera muito e depois é indigesto o pouco :)

mas raiva sem odio!
Raiva sem mal querer!

sempre bem querer. mesmo que ja nao seja amor :)

e a Fuzeta?

Polly Jean disse...

Gosto destas vidas demoradas.
Boa narrativa.
Beijocas

Medusa Azul (Zuli) disse...

perco-a e acho-a várias vezes ao longo do dia. e da noite. [a cabeça]
é impressão minha ou não gostas do rato Mickey? :)

fico à espera que o bacalhau seja [mais um pouco] desfiado.. :)

CS disse...

Tanta coisa!

Embalas-me!

Martini_Lady disse...

Hummm... com que mais surpresas narrativas nos irás tu deliciar? ;-)

Bjnhs e bom fds

manhã disse...

É bom descobrir as raízes, não ter medo de as enfrentar, melhor então quando alguém que nos ama vai connosco! Este rapaz é um afortunado, sem saber!

joão marinheiro disse...

Fuzeta. parte de mim existiu por lá...Mereces uma leitura cuidada que é o que estou fazendo.
Abraço com areias da "praia dos tesos"...

inimaginavel disse...

Waiting.... :)

isabel disse...

Beijinhos :)

Vanda disse...

no stress :) toda a gente compreende que o bacalhau para estar saboroso, tem que estar de molho qb :)

assim te vejo eu :) de molho na vida!

no stress que o ppl não desiste :)

boa semana de trabalho!

um beijo em forma de estrela!

Van

Alberto Oliveira disse...

Não me digas que ainda andas a promover castings para continuar a blogonovela?!
Falhou algum actor?
Se não estivesse tão destreinado ainda fazia uma perninha... mas o reumático...

Boa semana!

Anónimo disse...

fiquei curioso quando vi a minha aldeia ser referenciada na historia da arminda parte v sou de Fai�es e gostava de saber como o outor tem conhecimento desta zona trnsmontana do pais agurdo noticias

eu f�o parte do blog de fai�es quem quiser visitar fica aqui o site

www.faioes.blog.pt