segunda-feira, maio 29, 2006

Uma Vida Demorada (13)

Penso que para a maioria das pessoas, o conceito de “ocasião especial” encerra algo de positivo, de festivo.
Por exemplo, guarda-se uma garrafa para abrir numa celebração, para, nesse momento, partilhar a alegria que se sente usando, simbolicamente, uma bebida particularmente boa (e cara, de preferência, não tivéssemos nós a mania de que o que é caro é que é bom).
Sem nunca ter dado importância a isso, a ponto de guardar uma bebida para uma “ocasião especial”, a verdade é que tinha em casa um bom whisky há uns quatro anos sem que lhe tivesse tocado. Apesar de, por vezes, a tentação ter sido alguma, nunca fui capaz. Achava que para cumprir o objectivo porque bebia, qualquer whisky servia. E a garrafa lá foi acumulando pó - o objectivo, esse, era a inconsciência cognitiva.

Sobre uma outra expressão, posso assegurar - com a certeza que só o conhecimento de causa nos dá - que é absolutamente verdadeira: “beber para esquecer”.
Comecei a beber porque percebi que, após três ou quatro copos, deixava de pensar nas pequenas coisas do dia-a-dia, tudo saía da devida perspectiva, passava a ser relativizado, deixava de ser realmente importante – tudo o que é mau e tudo o que é bom, bem sei, mas quando o negativo supera em muito o que positivo, é um preço que se paga de bom grado.
Foi assim que perdi o controlo da bebida durante parte importante da minha vida adulta. É que, a partir de uma certo ponto, já não se bebe para esquecer, bebe-se porque já não nos lembramos de como se vive sem a bebida. Passamos a viver em estado alcoólico.

No final da tarde em que se deram os acontecimentos na sede do Partido Comunista, ao chegar a casa, dei por mim a debater comigo mesmo o conceito de “ocasião especial”.
Porque razão devia ser só em ocasiões alegres, festivas? Não é nas alturas menos boas, tristes, que mais precisamos de uma bebida? Foi assim que abri, finalmente, a garrafa de Clontarf Reserve Irish Whisky e quase a despejei nessa noite.
O estômago, já destreinado destas coisas das bebidas destiladas, pegou fogo, protestou e, na manhã seguinte, parecia estar carbonizado, reduzido a carvão. Nada que me tivesse feito pensar duas vezes sobre se devia continuar a beber ou não. Sentia-me mal comigo mesmo, com o mundo. A criança dentro de mim – pois era uma criancice, sei-o agora – sentia-se magoada, abandonada, precisava de compaixão e, à falta de alguém que cumprisse essa tarefa, o álcool teria de servir. Passei pelo supermercado e abasteci a garrafeira lá de casa.

Passaram-se cinco dias de que não guardo muitas recordações. Consegui fazer uma avaliação do que se terá passado pelo estado do apartamento.
Terei sonhado o sonho de sempre: o naufrágio; eu a observar e, depois, a ser levado para o fundo; uma luz, depois uma sombra. Mais nada.
No quinto dia, uma terça-feira, a minha consciência apanhou-me desprevenido. Num momento de inusitada coragem, decidi tomar banho e fazer a barba. Foi na banheira, debaixo de água fria, que ela me apanhou à traição. Inevitavelmente, conclui algumas coisas sobre a minha situação da altura: estava a ser um grandessíssimo idiota e um refinado cretino; conclui também que seria de todo conveniente dar sinal de vida para o jornal, isto se quisesse continuar a ter trabalho. Seria essa a prioridade, lidaria depois com a idiotice/cretinice.
Apesar de ter uma cabine telefónica à porta de casa, achei melhor telefonar do café vizinho: não quis ser visto a telefonar de uma cabine, era coisa que já não se usava! Com certeza, quem por ali passasse ia reparar em mim, e isso não podia ser.
O Sr. Dias, do café, foi muito compreensivo com o facto de eu ter deixado cair o telemóvel e este se ter partido, logo ele, que ainda nessa manhã tinha deixado cair uma garrafa de leite com chocolate – eu estava de novo a inventar, lembrei-me de Leonor.
As notícias vindas do jornal eram as piores, cinco dias sem lhes dizer nada tinha-os deixado furiosos. Talvez no início da próxima época futebolística tivessem trabalho para mim. Isso significava que ia ter muito tempo para mim. Pelo sim, pelo não, bebi uma bagaceira logo ali.
Deveria ligar a Leonor? Mais uma bagaceira.
As entranhas pareceram desistir e querer sair. Não me lembrava da última vez que tinha ingerido algo sólido. Comi um rissol e um croquete.
Entrei no Metro. Próximo destino, o Colombo. Precisava de um telemóvel e saber se o cartão do anterior ainda estava em condições.

Vinte sete pessoas à frente na loja da TMN! Espantei-me como, em pleno dia útil, havia tanta gente num centro comercial. Fui à FNAC fazer tempo.
Passei os olhos pelas novidades musicais e espreitei os modelos mais recentes de câmeras digitais. Nos livros, uma capa chamou-me à atenção. Era um volume grosso, com um desenho na capa, apenas o contorno de uma cabeça, um rosto sumariamente desenhado. Era Álvaro Cunhal. O livro, o segundo volume da sua biografia não autorizada, escrita por Pacheco Pereira.
Não me perturbou particularmente ter o mais comunista dos comunistas ali, à minha frente, houve antes algo que me interessou. Não sendo uma obra autorizada, como teria o autor conseguido tanta informação? Se fosse ele a procurar algo sobre a minha mãe, como faria? Tive uma ideia: conhecia o blog do Pacheco Pereira, poderia contactá-lo através dele, expor-lhe a situação, talvez me pudesse dar algumas indicações do que fazer a seguir.
Mas valeria a pena, então não era um assunto encerrado?
Um conjunto de fotografias no livro chamou-me a atenção. Eram as fotos de Álvaro Cunhal feitas pela PIDE aquando da sua prisão. Na legenda, uma referência ao arquivo da antiga policia politica, guardado na Torre do Tombo.
Num impulso, larguei o livro e apanhei um táxi para a Alameda das Universidades.

O pessimista devia saber que as boas ideias não surgem subitamente. Tudo o que parte de impulsos está condenado ao fracasso.
Talvez até aquele momento eu não fosse um verdadeiro pessimista, se fosse não me teria entusiasmado.
Bastava ter pensado um pouco para perceber que não seria possível consultar o processo de uma pessoa no arquivo de uma polícia politica. Só o próprio ou alguém por ele autorizado pode consultar a sua ficha.
Se existia uma em nome de uma tal Alda das Dores Saraiva, eu jamais o iria saber.
Deixei a Torre do Tombo e rumei a um sítio onde não ia há algum tempo, o Antigo Retiro Quebra Bilhas, no Campo Grande, podia lá ir beber qualquer coisa. Podia se a casa não fosse agora um restaurante que não atende potenciais bêbados durante a tarde. Valeu a existência de alguns estabelecimentos atabernados por perto.
Antes de comer os três pastéis de bacalhau regados com o carrascão do Cartaxo que figura como vinho da casa, tive o cuidado de escrever a morada de minha casa num guardanapo. Mais tarde, para voltar para casa, iria dar muito jeito, senti-o.

Não sei que horas eram, nas estava já escuro quando o taxista me abriu a porta do carro para eu sair. Escuro como não era habitual à porta de casa, a iluminação pública estava apagada.
Lembro-me que havia vento, uma série de fortes rajadas dificultaram-me a chegada à porta do prédio – pelo menos assim pareceu.
A primeira sensação que tive foi a que tinha um sem-abrigo a dormir à porta. Alguém estava nos degraus.
Peguei nas chaves, tentando perceber qual era a da porta da rua. O candeeiro deu sinal de vida, piscando algumas vezes. O vulto saiu da escada e aproximou-se de mim. Dei dois passos atrás, o candeeiro piscou outra vez em vários tons amarelados, dando um ar algo sinistro à cena. Senti o coração disparar, a adrenalina a fazer-se sentir. Coloquei os braços em posição defensiva, não estava em condições de lutar, mas não ia ser assaltado sem resistir.
A luz acendeu-se definitivamente. Era uma mulher que estava perante mim.

- João…
- Quem é?
- Sou eu, a tua mãe.


Nota: O autor falhou! Só agora reparei que, no texto anterior, deixei escapar cinco palavras. Estão no diálogo entre o João e o Evaristo, na sede do PC, para quem tiver paciência de as procurar. Por tal facto já me penitenciei à boa maneira dos albinos da Opus Dei. Desculpem.

27 comentários:

Inês Diana disse...

Fosga-se.. este ainda está fresquinho!! :D
E já vi que encontrou a mãe :))
Bem, bou ler e ja bolto!!
Beijo

Inês Diana disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Alberto Oliveira disse...

... na realidade pareceu-me que esse diálogo estava um pouco coxo; mas atribuí à emoção com que foi escrito. E até pode perfeitamente ser uma técnica...
..................................

Depois de ler o capítulo de hoje, há uma referência que não quero deixar passar em claro. O protagonista tem cá uma pedalada para os líquidos! ... e não é vaidoso.
Olha a figura com que se apresentou à mãe!

Bom. Deixo-me de brincadeiras parvas e vou aguardar a reacção do João...

Sofia disse...

q bom, finalmente a mae!!

(o q tem o outro post????)

Sara MM disse...

(não, ainda não li... tou enjoada :o\ )

vim deixar um BEIJINHO!!!
e continua (?!) relax!!!
vai ser maravilhoooooooooooooooooso!!!

nocAs disse...

ai q eu tb nao percebi o q se passou com o outro texto ... um dialogo "um pouco coxo", mas ... que palavras? :| lol

Gostei particularmente da parte em que o protagonista ganhou consciência de si, percebendo o que realmente é «um grandessíssimo idiota e um refinado cretino»...

Agora... detestei o fim!
Deixar tantos leitores ( sublinho:dedicados ) em pulgas pelo proximo texto, para saber mais da, suposta, mãe do João...é feio!
Ai que fúria! Quero saber mais! baahhh:\

Ao menos um diálogozinho :\

LOL ***

Sea disse...

Caro Rui, é um prazer ler-te. Sempre!
Se te queres penitenciar à maneira... faz umas pataniscas para a malta!

Salvador disse...

Pela qualidade do teu texto uma pq falha não é significativo, mas pagas umas imperiais á malta q a rapaziada esquece.

:)

1 abraço

Unknown disse...

Adorei, e agora aguardo o diálogo de mae e filho, mesmo estando o filho em "más" condições, eu pessoalmente n acredito k acabe aki

Anónimo disse...

Tcharanzeeeee :D
Eu não disse que ele ia encontrar a mãe!!! Hmmm não me digas que foi presa pela PIDE que conheceu o evaristo e assim terminou o luto de seu marido...ou a mãe será a secretária monocordica??!! :p
Brincadeirinha...
Pst...mas ve la se o proximo capitulo é para breve, odeio to be continued, bah! :D
Adorei...

P.s Obrigado pelo coment! Beijos

919 disse...

não é normal um cretino ter consciência de que o é, portanto, o João ainda tem muito que andar das pernas!... é que li, algures nos comentários, que este era o último capítulo e, se a TV Cabo já me deixou pendurada com uma novela... tu desculpa lá, mas isto não acaba assim, pois não?

Isa disse...

isso das palavras que te escaparam é um pormenor sem importância comparado coma história. então a mãe sempre tá viva??? bjs

Martini_Lady disse...

Continuo a ler extasiada! Next please ;)

Bjnhs

Rui disse...

É claro que isto não acaba assim. O autor é destravado, mas não tanto. :))

poca disse...

cilício por aqui?

CS disse...

O lapso torna-te mais próximo ;)
O inferno são os outros, sobretudo os que nunca falham ;)))))

Pearly Dewdrops drop. Lindo. Já não é cocteau twins, embora seja cocteau. Parece uma charada mas não é.

Gosto de festas, não precisam de ser especiais. Gosto de ocasiões. Conta: já tens festa?

Anónimo disse...

Interrogo-me por que ficou a mãe tanto tempo sem aparecer, uma vez que os pais adoptivos estão mortos. Se tivesse passado à clandestinidade, era natural que desaparecesse, mas os tempos da ditadura pertenciam ao passado. Porque não apareceu antes?

Paixão disse...

Ai a mãe! E eu a pensar que era a Leonor que estava preocupada...

E agora?!
Aposto que lhe passou a bebedeira num instante! eh eh

Beijocas... de ostra;)

Sara MM disse...

Ainda bem que não estava aquela senhora "do costume" lá sentada naquela fonte do Colombo à porta do continente :o) :o)
De coisas fortes já bastou a mãe ter caído sdo céu... (literalmente... ou não!??!)

BJss

alice disse...

querido rui,

confessa, a tmn patrocina???

lol

como estás, papá???

beijinho enorme

obrigada!

Mipo disse...

desde que te penitencies, não tem qualquer problema! :-D

Anónimo disse...

Ocasiões especiais são todas =D
Sorrisos e beijos

manhã disse...

vinhos e ocasiões especiais, beber para esquecer, mas porquê a mãe, a voz da consciência etilizada?

as velas ardem ate ao fim disse...

sempre fantastico.
1bjo

inBluesY disse...

jinhos do tamanho da lua q estou assim, mãos largas !

ora já temos pataniscas, imperial, falta panito azeitonas frango assado Lolll eu faço uns doces BOA ???

hehehe tás perdoado homem e espero-te de PARABÉNS!


:) e o pessoal quer é festa!

Wisper disse...

a tua historia está cada dia mais interessante... adorei

beijinhos

segurademim disse...

... a mãe! finalmente... oxalá a Leonor volte