sexta-feira, maio 26, 2006

Uma Vida Demorada (12)

Enquanto esperava por ela, contei seis. Reflectidos nas janelas azuis escuras, cruzavam o edifício numa diagonal descendente, aparecendo e desaparecendo ao longo da fachada.
Entre cada passagem naquele gigantesco espelho azul, eu observava o piso térreo do edifício vizinho, composto por uma porta de vidro - cruzada por barras de ferro branco, metade na vertical, metade na diagonal -, centenas de azulejos dos mais variados feitios e algumas formas em relevo.
Os azulejos, de todas as cores, formam várias imagens em que homens mulheres e crianças estão envolvidos em várias actividades: agrícolas, industriais ou simplesmente a ler. São várias as pombas brancas que esvoaçam pelo mural e os arco-íris que brilham. A mensagem era óbvia.

O sétimo avião ouviu-se ao longe. Virei-me para o edifício azul para ver passar o seu reflexo, Leonor estava ao meu lado. Estremeci.

- Então, entramos? – Perguntou-me ela, sorrindo.

Estávamos os dois em frente à sede do Partido Comunista Português, na Rua Soeiro Pereira Gomes. A fantástica ideia de Leonor era simples: segundo ela, o meu pai tinha sido comunista e a minha mãe também, logo, existia uma ficha de inscrição de cada um deles nos arquivos; no caso da minha mãe estar viva, com dados actualizados.
Desta vez não protestei, não a contrariei, guardei para mim os muitos argumentos que tornavam aquela ideia em algo muito próximo do disparate.
Bebi uns whiskys a seguir ao almoço para me anestesiar um pouco mas, tudo o que consegui, foi ficar indiferente ao objectivo que ali nos trazia e propenso a implicar com tudo e com todos. Sentia-me preparado para o confronto.

- Vamos a eles. – Respondi-lhe.

A porta estava fechada. Empurrei uma segunda vez e um som estridente e contínuo ouviu-se. Alguém a tinha destrancado.
Uma lufada de ar fresco enlatado fez-se imediatamente sentir, contrastando com o ar quente do exterior. Leonor agarrou-me pelo pulso: - Não vai ser fácil, mas tenho esperança que se comovam com a tua história.
- Nem penses que lhes vais falar da minha vida, não te atrevas; deixa que eu sei bem o que lhes vou dizer.

Atrás de uma secretária, à esquerda, uma mulher anafada e detentora de uma expressão forjada a chumbo, observava-nos.
- Bem vindos à União Soviética. - Murmurei para Leonor, que me mandou calar.
Aproximamo-nos. Em cima da secretária, apenas um telefone e as mãos gorduchas da mulher: a esquerda em cima da direita.

- Boa tarde. – Leonor fez o seu melhor sorriso.
- Boa tarde. – Respondeu a mulher praticamente sem mexer os lábios.
- Nós pretendíamos…
- Se não te importas, falo eu. – Calei Leonor, que ficou mais vermelha que a bandeira do partido que esvoaça na varanda do último andar do prédio. – Com quem é que nós podemos falar sobre um dos membros do vosso partido?
- Qual é o assunto em concreto? – Era espantosa a capacidade daquela mulher em falar sem, aparentemente, mover um músculo da face.
- É consigo que se tratam os assuntos relativos a membros?
- Não, mas…
- Então chame lá o controleiro que trata desses assuntos. – Disse eu o mais rispidamente que fui capaz.
- João…
- Calas-te, sim? – Leonor engoliu em seco e fez um esforço por se controlar. A situação, essa, caminhava para o descontrolo.

A estátua mexeu-se, por fim. Marcou três números no telefone e disse qualquer coisa imperceptível.
- É favor aguardarem, o meu camarada vem já falar com os senhores. – Indicou-nos umas cadeiras, perto da porta.

- Tu não te podes descontrolar assim. – Leonor falava baixo e procurava os meus olhos. Desviei-os. – Anda, senta-te.
- Não, estou bem de pé. Esta malta complica-me os nervos, o que queres? - Ela ia dizer o que queria, mas calou-se. Percebeu que não ia adiantar.

Passaram-se cinco minutos e nada aconteceu. Nenhum dos três se mexeu, ninguém entrou, ninguém saiu. Apenas um ligeiro zumbido vindo do ar condicionado se fazia ouvir. Sentia os nervos em franja.
Foi Leonor quem quebrou o silêncio.

- Sabes quem foi Soeiro Pereira Gomes?
- Algum comuna, só pode.
- Sim, foi membro do Comité Central, nos anos quarenta. Apesar da pouca obra publicada, ficou conhecido como escritor. Foi um dos fundadores do neo-realismo em Portugal.
- As coisas que tu sabes.
- Morreu novo, na clandestinidade, com tuberculose.
- Olha que pena.
- João!
- Sim, está bem.
- Não leste o Esteiros?
- Não sou muito dado a livros, sabes isso, especialmente de autores… - Calei-me.
- Devias ler. O livro é dedicado “aos filhos dos homens que nunca foram meninos”. Conta a história de um grupo de miúdos pobres que têm de trocar a escola pelo trabalho numa fábrica de tijolos. Relata a violência do sistema social, a exploração dos trabalhadores, a falta de compaixão. Revela como o ser humano cria uma armadura para sobreviver. É muito contundente o livro. – Fez uma pausa na esperança que eu dissesse algo. – Não te lembra nada, a história?

Fez-me lembrar o meu pai, mas não o disse. Ia antes dizer que a brilhante advogada, com casa na Expo e carro todo catita, se estava a revelar uma profunda conhecedora das amarguras do proletariado, esmagado pelo capitalismo que ela tão bem representava, mas uma figura que surgiu ao fundo do corredor, em contra-luz, impediu-me de o fazer.
Era um homem, magro, que tinha uma farta cabeleira e caminhava lentamente. Só quando chegou perto de nós lhe pude ver a expressão. Aparentava uns setenta anos, tinha a pele do rosto macilenta e, por baixo do queixo, uma prega de pele balançava. Tinha o cabelo todo branco e uns olhos de um azul ainda vivo, como que reflectindo o azul do céu no fundo de um poço, de tal maneira estavam enterrados na sua cara.
Calçava uns sapatos de camurça castanha e vestia calças de bombasine, também castanhas. Tinha uma camisa de flanela cinzenta e, pendurados num fio, uns óculos pendiam-lhe no peito. Deve estar a morrer de calor, pensei.
Era, no mínimo, uma figura esquisita.
Trocou um breve olhar com a recepcionista e dirigiu-nos a palavra, estendendo-me, ao mesmo tempo, a mão: - Boa tarde, o meu nome é Evaristo Cordeiro.
- João, Leonor. – Disse eu, surpreendendo-me com a firmeza do aperto de mão do velho.
- Em que os podemos ajudar? – Pelos vistos, a nossa conversa ia decorrer ali mesmo.
- É o seguinte, eu sou jornalista e… er… somos jornalistas… estamos a investigar a pesca do bacalhau, antigamente… a fazer um estudo… isto é, uma reportagem,
juntamente com o Museu Marítimo de Ílhavo, sobre os pescadores que iam para a Terra Nova. – A boca secara-me num instante. Leonor mordia o lábio inferior e não tirava os olhos de mim. – Descobrimos que um desses pescadores, da Fuzeta, no Algarve, era do Partido… seu camarada… mas já morreu… o que nós queríamos era saber da mulher dele, se também era… queríamos encontra-la, falar com ela.
- Não sei se entendi.
- Queremos saber se uma tal de Alda das Dores Saraiva é, ou foi, membro do Partido.
- Trabalham para que órgão de comunicação?
- Er… para o jornal A… Público.
- Posso ver a vossa identificação? - Saquei da carteira e mostrei rapidamente o cartão que me dá acesso aos recintos desportivos. – Bom, os arquivos do partido, como devem calcular, são reservados, nós não podemos…
- Eu sei, eu sei… - A impaciência tomava conta de mim. – Nós só queremos saber se a Alda das Dores Saraiva é membro, falar com ela. Pode dizer-me isso?
- Eu não lhe sei responder e a militância partidária é algo que só a própria pessoa pode revelar.
- Ouça… - Inconscientemente, coloquei as mãos nos ombros do velhote, que deu dois passos atrás. A recepcionista ergueu-se como se tivesse uma mola.
- João, por favor. – Senti a mão de Leonor no braço.
- Eu só lhe peço que me diga se essa mulher existe.
- Mas como quer que eu faça isso?
- Quero que vá procurar aos arquivos, agora. – Larguei o homem, mas ele, apoiado que estava em mim, não se aguentou de pé e caiu. A recepcionista e Leonor precipitaram-se imediatamente para o homem, ajudando-o a levantar. Eu tentava perceber o que tinha acontecido, quando dois homens surgiram não sei de onde e me agarraram.

- Vou ter que lhe pedir que saia. – Disse-me um deles, arrastando-me para a porta.
- Eu não tinha intenção…
- Lá para fora.
- Deixe-me explicar. – Uma mulher entrava nesse momento, trazendo um enorme ramo de flores. Fui contra ela, quase fazendo-a cair.
- Fora! – Fui posto porta fora. Leonor saiu atrás de mim, desculpando-se às pessoas. Chorava.
- Tens que acreditar em mim, eu não queria…
- Deixa-me João, por favor. – Passou sem olhar para mim.
- Foi sem querer, acredita.
- Também foi sem querer que contaste aquelas mentiras? – Tinha-se voltado para trás. Grossas lágrimas caiam-lhe pela face. – Explica-me como é que pensas chegar à verdade através da mentira, és capaz?
- Como é que querias que nos deixassem ver o arquivo, bastava aqui chegar e estendiam-nos a passadeira? Logo esta gente…
- Não, explicávamos-lhes a situação, pedíamos que, caso existissem dados sobre a tua mãe, nos dessem o contacto dela. – Um táxi apareceu no início da rua, Leonor fez-lhe sinal e abriu a porta.
- Desde o início que isto sempre foi a tua busca, não a minha. Eu nunca acreditei que encontrássemos a minha mãe. Não acho que haja alguém para encontrar.
- O livro de que te falei há pouco, lembras-te? Os miúdos tinham a vida mais difícil que possas imaginar, mas uma coisa nunca lhes conseguiram tirar. – Olhava-me intensamente. – A capacidade de sonhar. – Entrou no táxi e partiu.

Desta vez eu tinha conseguido magoá-la a sério. Um enorme vazio abriu-se dentro de mim.
O telemóvel tocou, era do jornal. Não atendi, com quanta força tinha, atirei-o à parede. Mil pedaços saltaram.
À porta, Evaristo Cordeiro e uma mulher segurando um enorme ramo de flores, olhavam para mim. Havia pena no seu olhar.

26 comentários:

Anónimo disse...

ok! ok! é pra ficar em pulgas todo o fds a espera da continuação ;-)
Bjs grandes e optimo fds

Canephora disse...

Está excelente, empolgante esta história...
Quando quiseres editar os teus contos, avisa amalta, eu quero ter um exemplar encadernado destes teus trabalhos.
Continua por favor.

nocAs disse...

Está pois...
Enredo fantástico, história empolgante, personagens fortes e com capacidade para revelar «como o ser humano cria uma armadura para sobreviver».
Fiquei fã! Adoro, adoro, adoro!

Só espero é que os próximos "episódios" não façam a regra e que não demorem tanto tempo a chegar...
Claro que a ansiedade torna a história ainda mais apetecível, mas...mas...mas nada!Vamos lá actualizar rápido para todos vermos o desenrolar da história :D

Bj a todos * bom f-d-s

Anónimo disse...

Depois deste episódio vou ressacaro fds tudinho à espera do proximo...ai ai ai! Isso não se faz!!! :D
Bom fds! Beijos (sem recibo verde :D)

alice disse...

depois de almoço, nada melhor do que vir ler-te...

desejo-te um óptimo fim de semana

um grande beijinho

alice

Unknown disse...

Completamente, e cada dia k passa esta estória tá cada vez mais emocionante, adorei o relato do Partido, é muito real e muitos de nós possivelmente reagiriamos assim.... mas a Leonor tem razão em ficar magoada.... Continuo aki à espera de novo post, cada vez mais entusiasmada. Bom fim de semana

Anónimo disse...

Rui, tens de publicar esta história! É divina. Estou comovida com a sua humanidade (e com o que tu sabes do assunto! :))

Alberto Oliveira disse...

... ora já cá estou enfim, que o taxista veio por um caminho que só visto*!

Bom. Este capítulo foi um bocado surpreendente e de grande conflitualidade; parece que o João se passou dos carretos... Aguardo o seguimento.

Isa disse...

eles sabem quem é a mãe do joão? sabem? sabem que já morreu tb? hã? responde!!! bjs e bom fds.

Vanda disse...

e com pena cheguei ao fim do 12º...

um beijo, Rui, e ca estou para as cenas dos proximos capitulos :)

Van

919 disse...

pois... enquanto andávamos todos à procura da mãe e do pai, do porquê do ódio ao bacalhau, enfim, das origens do João, esquecemo-nos que decorria a construção de uma relação entre ele e a Leonor... de repente voltamos ao presente e aparece a dúvida se este não será mais importante que o passado...

Sea disse...

just readding... :)

Martini_Lady disse...

Bem... e cada post traz uma inovação não só da história como da escrita :) Sinceramente, acho que tás cada vez melhor e é realmente um bom momento que nos proporcionas com a leitura dos teus textos. Faz esquecer tudo o que nos rodeia e embrenharmo-nos na história por completo.

Bom fds
Bjnhs

alyia disse...

Eu sei que já perguntei mas... porque não pensas em tentar publicar um livro?! Era uma boa ideia!

CS disse...

Continuas inigualável!

Mas... o telefone é assim tão fácil de converter em mil pedaços?

Anónimo disse...

Só agora consegui vir espreitar os meus blogs favoritos! Um delicia!
Beijos! ;)

filomena disse...

Cativante esta história.

Beijinhos

segurademim disse...

... então? ainda não aprendeste que sem mel não se apanham moscas?

descontrolaste-te! que cena mais triste... e que pachorra a da Leonor!

veremos o que o Evaristo e a Senhora das flores ainda irão render... nem tudo está perdido

beijo, bom domingo

alice disse...

os teus textos é que são as flores, rui

bem hajas

um grande beijinho

alice

Wisper disse...

esta historia está cada vez mais interessante... já estou a ficar viciada... para quando o próximo capitulo?

beijinhos

Paixão disse...

Ai João, João...
Este rapaz é um impaciente. Mas percebo-o bem... ferve-lhe o sangue!
Continua, continua...

Ah! Bela resposta lá no meu post ;)

Beijos

Lagoa_Azul disse...

E um livrinho não saia ja já Rui???!!
Bem esta cativante,

Um beijo com carinho

Sofia disse...

perdeu o controlo, tadito! até a mim ja me apetece atirar com o telemovel ao pc. acabas ou nao esta agonia?????????

;))))

bjs

Anónimo disse...

mais uma vez parabens pelos teus escritos...são absolutamente bestiais....eras bem capaz de fazer um filme....beijito

Gina disse...

Amigo tb. li os "Esteiros" no liceu, lembro ke o livro me marcou e nem sabia muito bem porke, o relato dakeles miudos sem eira nem beira xocou-me imenso...akeles pés descalços metidos na lama.
Tou aki... kero ler-te...
Beijinhos

Afrodite disse...

É um prazer ler-te...
So falta um... amanhã.

Beijinho