terça-feira, maio 23, 2006

Uma Vida Demorada (11)

O nome alterado pelos meus pais adoptivos! O João Carlos Saraiva Vicente tinha dado lugar ao João Vicente Medeiros Antunes. Isso quereria dizer alguma coisa ou revelava apenas o desejo dos meus pais, quando me adoptaram, em me dar o seu nome? A lei permite-o. A verdade é que, pensando agora nisso, nunca fui por eles habituado a usar o meu nome completo.
O balanço que eu conseguia fazer da visita à Fuzeta não era brilhante: neto do Corneta, filho do Pirola, ambos comunistas empedernidos, o nome mudado. Mais uma vez, foi Leonor quem colocou as coisas em perspectiva para mim.

- Começa a fazer sentido aquela mensagem da tua mãe. Quando falava do tempo estava a avisar o teu pai, ela deve ter sabido de alguma coisa. E essa história do nome, hmmm, não sei. - Estávamos no carro, à porta de minha casa, acabados de chegar do Algarve. Sem qualquer interesse em continuar aquela conversa, tentei despedir-me, o cansaço pedia-me um banho demorado, sozinho, mas Leonor insistiu em subir.

Não me saía da cabeça o facto de descender de uma família de arruaceiros inconformados, de uns revolucionários de meia-tijela que sempre se tinham oposto à lei e à ordem. A minha mãe incluída.
Um pensamento recorrente apoderou-se de mim: teria valido a pena ter-me metido nisto? Sentia-me confuso, a minha origem parecia em tudo contradizer a educação que tive e aquilo em que me tornei. A consciência de que, caso tivesse continuado a viver com a minha mãe biológica, me teria tornado, certamente, numa outra pessoa, muito diferente do que era hoje, perturbava-me seriamente.
É que uma das poucas certezas que eu tinha até há bem pouco tempo, era daquilo que eu era, das coisas em que acreditava; e ser revolucionário, contra a ordem estabelecida e instigador de conflitos, não era, definitivamente, uma dessas coisas.
Estaria eu a trair a minha génese? Estaria aí a origem para o meu comportamento conflituoso, a minha dificuldade de adaptação a outras pessoas? Ou, antes pelo contrário, era o meu passado que me atraiçoava agora, depois de tantos anos?
Fosse o que fosse, todas estas dúvidas, o conflito interno, era derivado das minhas atitudes, da procura de respostas. Concluí que há coisas nas quais não se deve mexer.

- … abri a caixa de Pandora, Leonor. Agora pago as consequências disso. Não fiquei a saber nada que contribua para a minha felicidade, antes pelo contrário.
- Que disparate, João. Não sejas tão dramático. Sempre a lamentares-te. Não consegues ver o mais óbvio? – Continuou sem esperar por uma resposta. – Não percebeste ainda o mais importante, algo que pode fazer com que tudo isto valha a pena.
- Confesso que não…
- Que a tua mãe pode estar viva!?

De facto, podia. Tudo o que se soubemos apontava nesse sentido, ou melhor, nada descobrimos que validasse a morte dela.

- Aposto que tens alguma ideia sobre o que fazer a seguir. – Disse eu sem grande convicção, prostrado no sofá da sala. – Mas digo-te já que não sei se quero avançar, tenho receio de que possamos ter sucesso.
- Não viemos até aqui para parar agora. – A expressão dela não deixava dúvidas, parecia estar a apresentar um caso complicado a um júri colectivo, em tribunal. – É algo que vamos fazer juntos. O que houver para enfrentar será enfrentado pelos dois.

Acenei que sim com a cabeça, tinha cada poro do meu corpo a pedir água, deixando-me sem forças para a contrariar.
Ela explicou-me o que iríamos fazer: a) procurar o nome da minha mãe na lista telefónica; b) usar um contacto dela na Direcção Geral de Viação; c) em último caso, ela falaria com alguém que, por sua vez, tem um contacto na Policia Judiciária - Arquivo de Identificação. Simples.

- Eu procuro no Google. – Disse eu, estupidamente. Leonor não gostou e saiu sem se despedir.

Os dias passaram e as “buscas” revelaram-se infrutíferas, nenhuma Alda das Dores Saraiva tinha telefone em seu nome, ou carta de condução – ainda telefonámos para algumas senhoras com nomes parecidos, uma delas a viver em Olhão, mas nenhuma era a minha mãe.
O contacto na PJ revelou-se um daqueles casos em que o amigo bem colocado, que está sempre a disponibilizar ajuda quando ela não é necessária, afinal se vem a saber não ser assim tão amigo, na hora da verdade. Pelos vistos o contacto, era um inspector que tinha sido transferido.
Mais duas semanas passaram e outros assuntos foram ocupando as nossas vidas. Perdi a pouca esperança que tinha e desmotivei.
Continuava a sonhar todas as noites com o naufrágio, com aquela luz que aparecia. Dormia pouco e a cada dia sentia-me mais cansado, agoniado e oprimido. As horas pareciam dias e o apelo do álcool voltou a fazer-se sentir.
Este período coincidiu com a paragem dos campeonatos desportivos e o consequente decréscimo de trabalho. Fiquei com mais tempo para mim, o que foi péssimo.

- Tiramos a primeira quinzena de férias, vamos para o Algarve. – Leonor tentava animar-me. – Vai ser bom, vais ver.
- O Algarve é caríssimo nesta altura do ano, sabes isso, eu não tenho hipótese…
- Não te preocupes, o Afonso já me ofereceu o apartamento dele em Vilamoura, ele vai estar nos Estados Unidos.
- Não sei como é que foste encalhar num tipo como eu, merecias melhor.
- Recuso-me a ter esta conversa contigo. Ultimamente, fazes-me lembrar o João de há uns meses. Ficas a saber que não tenho saudades nenhumas dele. Liga-me quando mudares de atitude.

Estivemos dois dias sem falarmos. Acabou por ser ela a ligar-me.
Comi um caldo verde e uma bifana no Beira-Gare, junto ao Rossio, tendo regado tudo com três imperiais pretas e tomei a direcção do Largo da Anunciada, objectivo, fotografar o Elevador do Lavra, o mais antigo de Lisboa, e sentar-me a uma sombra no Jardim do Torel.
Dobrei a esquina junto ao Solar dos Presuntos, um miúdo correu para o Elevador que estava prestes a partir. Tirei a câmera da mochila e fiz várias fotos. A luz daquele início de tarde não era a melhor. Preparava-me para entrar na carruagem quando o telemóvel tocou, era Leonor.

- João… - Estava ofegante, parou para recuperar o fôlego. – Nem sei como não me lembrei disto antes…
- Calma miúda, fala mais devagar.
- Acabei de subir ao quinto andar do Tribunal Criminal… pelas escadas… os elevadores estão avariados… - Nova pausa. – Mas valeu a pena, foi agora mesmo que me lembrei de uma coisa…
- Estou com medo.
- A tua mãe… já sei como a vamos encontrar.

Uma campainha fez-se ouvir. O Elevador chiou nos carris e deu um pequeno solavanco para a frente.
Fiquei imóvel, de telemóvel colado ao ouvido, vi-o iniciar mais uma lenta subida da colina. Sem mim.

33 comentários:

Sea disse...

Primeirissima a ler!! Mas... não... desta vez... Calada! Nem um piar de teclas!

Anónimo disse...

A analogia com a caixa de pandora é genial! Estou a adorar!

inBluesY disse...

ai homem o jardim do Torel ó francamente ...!

Gosto da Leonor :)

e continuo sentada a aguardar.

Inês Diana disse...

Ai!.. É desta que sai o livro!! :D

Beijo!

(Eu fico já aqui na bicha, pode ser?? ;))

Inês Diana disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

... muito bom ;-)
aguardo continuação.
Beijinhos.

alice disse...

querido rui,

espero que estejas bem

devido a uma série de problemas no meu blog, demorei-me a viver os teus posts...

mas agora que repus a verdade, vim aqui a sorrir ler-te

um grande beijinho

alice

Polly Jean disse...

Aqui alguém sabe escrever...bem!!!
Não precisas de tanta protecção assim:)

sofyatzi disse...

E venha o livro! Adorei!!!!


Bjs

Vanda disse...

e nós a agonizarmos na fila.
do outro elevador.
deste que o menino vai escrevendo.
contigo, aqui estou.

;)

Van

Sofia disse...

Vamos, tá quase né? Pa sabermos a verdade? Se a mae ta viva? E tudo o resto? Ta quase ne?
Puxa Rui, publica lá mais outro post que eu sei q o tens aí, guardadinho no teu pc, e nos estás é a fazer sofrer com a ansiedade.
Olha digo-te já, se fosses um livro hoje nao ia dormir enquanto nao te acabasse.

;)

bj

Isa disse...

podes crer sofia, podes crer. ipsis berbis ao teu comentário... rui, tem piedade, posta, posta posta!!! pleaaaaaaseeeeee!!! bjs

Anónimo disse...

Ai....
Que suspense! Qualquer dia deixo de comentar! Já não sei que te diga...Bah odeio to be continued!!!
Beijos :)

Wisper disse...

oh páaaa! termina sempre na parte mais emocionante!!!! rsrsrsrs

fico à espera do desenvolvimento...

beijinhos

segurademim disse...

... cada vez gosto mais dessa tua Leonor pragmática, cheia de energia!
vá lá João pai e mãe são o que são, nada de medos... agora também não descanso enquanto não conhecer a Alda

beijo

as velas ardem ate ao fim disse...

adoro ler te e estou curiosa! esta viva?

Madame Pirulitos disse...

Muito interessante.

mixtu disse...

bom... isto está a transformar-se num caso muito complicado... tribunal criminal... ummm, tadinha... Custóias? Não, não acredito, e procuraste bem no google?
Em resumo excelente e para isso li o 10
sim senhor... mas olha ainda vbem que estás com dificuldade em encontrar, assim me acontecia com os cromos raros e tu sabes quem é o culpado, yaya
cumprimentos monárquicos,

mixtu disse...

Fui ao google, tens lá a Alda, mas refere-se ao teu blog, pelo menos já tem direito a estar no google, yaya

Martini_Lady disse...

Bolas, este suspense dá cabo de uma pessoa... mais valia ler os posts todos de uma única assentada, mas o pior é que não dá para resistir a ler as tuas palavras, mesmo que seja pedacinho a pedacinho :)

Bjnhs

919 disse...

é curiosa a perspectiva que, numa situação destas, um filho pode ter!... foi inesperado para mim, quando, estando eu como leitora no papel do João, me deparei com a desilusão dele contra a minha admiração pelos seus ascendentes... como se de repente algo dentro de mim me chamasse a atenção para o facto de que a história é a do João e não a minha... leitura interessantíssima...

Susie disse...

Ovos e torradas? It´s a deal! ;)

Salvador disse...

A tua historia está viva
a tua historia é vida...

alice disse...

bom dia, rui ;)

sabes, adoro as tuas visitas

parcas palavras que dizem mais do que eu em muitas

um dia, ainda aprendo contigo

um grande beijinho

e obrigada

alice

Gina disse...

"I will wait for the rest of my life..."
Beijinhos

Margarida Atheling disse...

Penso muitas vezes nisso, naquilo que nos tornámos pela educação, ou pela vida que tivemos e, se isso, é coerente com o que somos, genéticamente, e com a nossa herança cultural e social.
Em muita gente percebo que não, noutras que sim. Em mim... não sei bem, mas acho que eu mesma me esforço por fazer coincidar as coisas.

Dani disse...

Estas visitas guiadas por Lisboa, são uma delícia! ;)

Anónimo disse...

Como vês Rui, são muitos, cada vez mais a corrente aumenta. Espero que arranjes tempo, e avances. Como te disse em tempos, aguardo para que possa calma e gostosamente beber em livro as tuas palavras. Um abraço

th disse...

Sem tempo...um beijo, th

Vanda disse...

Abracadabra para ti tambem, para ler o 12º !!!!

:D

Unknown disse...

Força para o livro... eu continuo aki ansiosa à espera de novo post....é sempre tao bom ler estes posts....
Parabéns

poca disse...

um livro ao dispor na net... cuja história se desenvolve qual telenovela... parece-me bem...
mas também.. acho que já cheguei tarde..
quem sabe um dia...

Alberto Oliveira disse...

... se me atraso um bocadinho lá fico a ver navios... ou o elevador do Lavra...
Mas o atraso tem justificação. Só por breves momentos é que não nos encontrámos no Beira-Gare. Lamentavelmente o bitoque que pedi demorou uma eternidade...

... e aí vou eu para o capítulo 12. O melhor mesmo, é apanhar um táxi no Rossio, se não acontece-me o mesmo que a este...