quarta-feira, abril 26, 2006

Uma Vida Demorada (3)

Uma semana depois continuava a não dormir mais do que quatro horas. Sonhava o mesmo sonho e, nas horas que me sobravam até ter mesmo que sair da cama, pensava na possível existência de uma gravação da minha mãe.

- Que se passa João, andas muito estranho ultimamente. – Leonor olhava-me por cima da Ementa plastificada do nosso restaurante favorito, o 1º de Maio, no Bairro Alto.
- Nada, miúda – respondi sem grande convicção. – Já escolheste?
- Se não me contas o que se passa, peço as Pataniscas. – Disse ela, sorrindo.

Acabei por lhe contar, na verdade, era o que mais queria, apenas não tinha conseguido ainda a coragem de ser eu a abordar o assunto. Não queria que lhe parecesse fraqueza minha ao demonstrar aqueles sentimentos.

- Claro que fazes bem em querer saber mais sobre os teus pais.
- Mas agora, ao fim de tantos anos? Não achas isso mais próprio de um adolescente?
- Disparate, João! Nunca é tarde para sabermos mais sobre nós próprios.
- Sobre nós próprios?
- Não te parece que se ficares a saber mais sobre os teus pais biológicos, com quem viveste até aos cinco anos, que isso é importante para te conheceres melhor? Aquilo que eu sou hoje, por exemplo, devo-o, também, ao facto de os meus pais terem sido como foram para comigo: um casal que sempre me protegeu excessivamente.
Sabes, eu acho que, em grande medida, esses teus problemas de comportamento têm a ver a falta de um passado sólido, de raízes. A tua infância foi mais traumática do que tu julgas e talvez isso se projecte agora na idade adulta… e depois, há esse grande medo da perda.
- E eu que pensava que andava a sair com uma advogada, afinal…
- Nem te passa pela cabeça as vezes que temos de fazer de psicólogos.

No dia seguinte enviei um mail, explicando sucintamente a situação, para o endereço geral da RDP sem grande esperança de uma resposta. Fi-lo porque assim evitava um eventual remorso de nunca ter tentado.
Mas três dias depois recebi uma resposta: que a RDP não tinha os arquivos áudio referentes à chamada Hora da Saudade devidamente organizados, que não havia procedimentos que permitissem o acesso do público a esse tipo de material, mas que tinham disponibilizado esse material aos investigadores do Museu Marítimo de Ílhavo e que eles tinham feito cópias das gravações existentes. Seriam eles as pessoas indicadas a contactar.
Tiveram ainda a gentileza de enviar o contacto da pessoa a quem me deveria dirigir: Dr. Alberto Cosme.
Reenviada a correspondência trocada com a RDP para o Dr. Alberto Cosme, no mesmo dia recebo resposta: que a minha história o tinha interessado muito e que teria todo o gosto em me facultar acesso às gravações, que era apenas uma questão de compatibilizar agendas.

- Vês, eu não te disse? Se não tentarmos é que nunca conseguimos. – Leonor estava visivelmente entusiasmada. Mais do que eu, confesso. – Se puder, vou contigo.
- Até parece que consegui alguma coisa. Apenas vou poder ouvir umas quantas gravações, mais nada, dificilmente existirá uma gravação da minha mãe.
- Vais quando? – Pergunto-me ela, ignorando o meu pessimismo.

Isto de ser trabalhador por conta própria tem que se lhe diga. Para além das evidentes vantagens de não se ter um patrão a quem responder, não deixa de comportar riscos acrescidos, como a falta de segurança no trabalho e a necessidade de estar sempre disponível para aceitar tudo o que possa aparecer. Se recusamos um trabalho, corremos o risco de que quem o fizer no nosso lugar apresente melhores condições e, assim, fique com outros trabalhos.
Como não posso correr esse tipo de riscos, não foi fácil encontrar disponibilidade para me ausentar, ainda que por um dia.
Felizmente, no dia em que me dava jeito ir a Leonor tinha um julgamento. Antes assim, eu preferia ir sozinho e fazer as coisas à minha maneira. Se, no último momento me arrependesse, podia sempre dizer que não tinha encontrado nada sem outras explicações.

- Prometes que me vais mantendo informada de tudo?
- Prometo. Até te telefono para ouvires as gravações, se quiseres.
- Palerma!

No dia combinado, uma quinta-feira, às 10h00 em ponto, entrei na Biblioteca do Museu Marítimo de Ílhavo. Constituído por cerca 8000 monografias e cerca de 2000 publicações periódicas, o espólio da Biblioteca foi, em grande medida, doado e está relacionado sobretudo com temas relacionados com o mar e a pesca, em especial a do bacalhau.
Um rapaz com uma cabeça muito redonda, completamente calvo, óculos redondos e um sorriso genuinamente simpático, veio ter comigo.

- Deixe-me adivinhar, João Vicente!?
- Correcto. É o Dr. Cosme, presumo.
- Presume bem. Seja bem-vindo. – Fez-me sinal para que o acompanhasse. – Sabe uma coisa? Fiquei muito interessado na sua história. Não conhecer os pais que eram da Fuzeta e ouvir a reportagem… fantástico, hein, fantástico.
- Pois eu…
- Bem sei que não quer dizer que vá encontrar o que quer, mas não deixa de ser fantástico. – Falava muito rapidamente e gesticulava com movimentos rápidos.
Estivemos largos minutos à conversa – na verdade, foi mais um monólogo que outra coisa -, tendo o Dr. Alberto Cosme explicado o alcance do trabalho que estava na origem da reportagem da TSF. Eu estava impaciente e quase não me segurava na cadeira, por pouco não o mandava calar.

- Bom, bom, e agora vamos ao que interessa, não o massacro mais com a conversa. Eu entusiasmo-me, e depois… uma tragédia.
Levou-me para uma pequena sala na zona de Arquivo do Museu. Em cima de uma mesa, uma garrafa de água, um copo de plástico, um bloco de apontamentos, um lápis e um leitor de cd’s.

- Não imagina o trabalho que foi passar estas gravações em vinyl de 78 rotações para cd. A qualidade de som é má, mas isso você já sabe.

Não estando catalogadas, a única maneira de encontrar o que queria, era ouvir todas as gravações. No início de cada uma, uma voz masculina anunciava o nome de quem iria falar, para quem se dirigia a mensagem e o navio a bordo do qual o homem navegava.
Após duas horas pensei em desistir. Era, com certeza, um esforço inglório. E depois, o que me adiantaria tudo aquilo?
As mensagens não variavam muito de conteúdo, eram principalmente mulheres que, em breves segundos, diziam a saudade que sentiam dos maridos. Ocasionalmente, uma ou outra novidade familiar: um filho que nasceu, um primeiro dente ou primeiras palavras das crianças, a saúde de todos mas, acima de tudo, a saudade.
A partir de certa altura comecei a divagar, tudo aquilo me transportava para a infância. Tentava encontrar algo a que me agarrar, uma ponta que me permitisse desenrolar a meada das minhas recordações, mas sem sucesso. Tudo o que sabia tinha sido contado pelos meus pais adoptivos: nasci em casa, na Fuzeta, filho de uma família de pescadores; o meu avô paterno morreu no mar durante a II Guerra Mundial, ao que consta afundado por um submarino alemão, a minha avó paterna pouco tempo lhe sobreviveu, com tuberculose. Dos meus avós maternos pouco ou nada se sabia, apenas que viviam na serra algarvia e por lá viveram sempre. Do meu pai e da minha mãe, apenas o seu destino. Era pouco, mas sempre tinha chegado.

A princípio nem liguei, tentava perceber se realmente me lembrava de algo em concreto em relação aquele período da minha vida ou se seria tudo imaginação, estava distraído, era apenas mais um nome de mulher. Subitamente, algo me chamou a atenção e voltei atrás na gravação.

- Alda das Dores Saraiva, para o marido, Celso João Vicente, a bordo do Aliseo, na Terra Nova. – Pausa. Era o nome da minha mãe e do meu pai! Fiquei a olhar para o leitor de cd’s, sem reacção. Teria conseguido?
Hesitei quanto a voltar a ouvir a gravação. Precisava mesmo daquilo?

22 comentários:

inBluesY disse...

precisava sim... natural a falta de ar, a angústia, mas só o facto de ter ido até lá só, significa isso mesmo, queria saber. Hesitava é normal ... o passo de gigante nunca foi aparentemente fácil, contudo o meio já tinha sido preenchido apenas ele não via.

Aguardarei pacientemente pelo 4.

Um BJ

th disse...

Amigo, em relação à Fonte da Telha, a mim me pareceu igual, mas dantes eu costumava ir para o fundo de tudo, onde raros carros se atreviam a ir e onde inclusivé se podia fazer nudismo. Esse sítio não sei se está igual.Eu é que estou definitivamente diferente.
Abraço, th

rafaela disse...

Areepiante. Boa tecnica essa de nos deixar a espera de mais, a querer mais.

=)

Sea disse...

Continuo sossegada com os dedos, apenas a ler-te nesta vida demorada.
Um beijo

Isa disse...

claro que precisas por amor de deus... e nós também... :-) bjs

Anónimo disse...

Já que chegou até ali, que ouça tudo!

Paixão disse...

Tem de precisar porque agora quero saber!
Ai...sabes deixas as pessoas em suspenso... E eu gosto disso:)

Continua...:)

Beijos

Anónimo disse...

Tudo vale a pena quando a alma não é pequena...já dizia o poeta. Muitas vezes substimamos a capacidade de tornar os sonhos realidade...
A vida é cheia de surpresas!
Bom enrredo, excelente capacidade de nos agarrar à leitura :)
Beijos

Sofia disse...

Grande dilema, não é? Ás vezes é preferivel esquecer certas coisas que só a sua memória já nos causam tanto sofrimento mas....

Pede-lhe que ouça. Fiquei curiosa!

bjs

Alberto Oliveira disse...

Uma vez que regressei hoje ás lides, estive a pôr o "correio" em dia; ou seja, ler algumas coisas que ficaram para trás, dos bloggers que frequento. No teu caso, mais complicado, porque escreves em capítulos e eu tenho por princípio (a quem comento) ler tudo. De modo que já estou em sintonia com esta nova história, que como nos habituaste em anteriores, revela-se muito interessante e que contém pedaços da história recente do nosso país. Espero os capítulos seguintes...

Mipo disse...

tchanam!

Vanda disse...

adivinho que sim...

e fico, como sempre à espera de mais :)

ler-te também é um prazer...ha dois meses que não compro livros :)

beijokas

Van

Fátima Santos disse...

já li. espero por mais Boa noite

amigona avó e a neta princesa disse...

Espero a continuação...boa noite para ti...

Medusa Azul (Zuli) disse...

sabes bem como manter o suspense... assim "não dá"! >:)

depois do 1º capítulo pensei: vou esperar pelo último e depois leio tudo de seguida... mas não consigo, fico curiosa :)

beijinho!

Salvador disse...

Já li e para não variar soube-me a pouco, venha o capitulo 4 q o 3 já o "devorei"

virilão disse...

faz como o João da estoria...vai á procura...a TVI anda á procura de ficção nacional e esta até mete bacalhau e bacalhau trás audiencia...arrisca!
Aposto em ti
Fã numero:2,3,4,5

sofyatzi disse...

Agora fiquei curiosa...
Tem de ouvir, mesmo!!!

Parabéns pelo blog

Sea disse...

vim "cuscar", para ver se havia desnvolvimentos :)
Um beijo (sem Beth Gibbons)

Vanda disse...

ainda não há 4???? :)

tas a molengar ;)

assim não te deixo beijinho nenhum!

-e ele ralado ;)

Van

Sara MM disse...

Oh! Claro que agora não é hora de voltar atrás!!

bjss

Inês Diana disse...

Ai jasus!!
A ideia do virilão fez-me pensar logo em "morangos com bacalhau" :S
(até fiquei agoniada, ehhehehe)

Bom... pensando naquilo que escrevi ontem lá na minha "casinha", uma frase tua pareceu-me algo familiar: "Se não tentarmos é que nunca conseguimos" ;)
Butes nisso!

Beijo grande