terça-feira, abril 18, 2006

Uma Vida Demorada (1)

A escura parede líquida aproxima-se rapidamente. Entre o cinzento carregado da água e o do céu, uma fina linha branca de espuma no topo da vaga.
Balançando suavemente, o barco aguarda o embate iminente. Na ponte, o Mestre da embarcação, olhar perdido que já nada vê para além do vidro encharcado à sua frente, nada mais pode fazer e o Segundo Oficial, agarrado ao leme, reza de olhos fechados e cabeça baixa. Os restantes homens aguardam o seu destino no interior da embarcação, em silêncio.
Subitamente, são sacudidos com violência e ninguém consegue manter o seu lugar; alguns rebolam no chão de madeira. Objectos são lançados pelo ar.
Impotente perante tão grande massa de ar, cede. Há água por todo o lado; a casa das máquinas é inundada e o motor pára. Sem controlo, o barco está perdido. Chegar aos Dóris é impossível e também não adiantava, todos sabem disso.
Ouvem-se gritos de desespero. Alguns, num derradeiro esforço, tentam alcançar o convés.
A água invade todo o espaço em segundos, o barco afunda-se levando consigo a tripulação. O último centímetro cúbico de oxigénio é empurrado para fora. A luta pela vida está a terminar.
E depois, lá estou eu, sentado num beliche, assistindo a tudo, tranquilamente. Não me estou a afogar, sinto-me seguro.
Sinto, então, uma mão que, vinda das profundezas, se agarra à minha canela. Puxa-me para baixo. Sou tomado pelo pânico, debato-me com quanta força tenho, tento agarrar-me a algo, mas não consigo, aquela mão é poderosa e leva-me com ela para o fundo. Afogo-me também.

Engasgado com saliva, acordo a tossir violentamente, completamente encharcado em suor. Tacteio à procura do interruptor e acendo a luz. O relógio marca 4h07.
Dormi pouco mais que três horas e sei que não vou dormir mais. Há já vários meses que é assim.

* * *

Tudo começou quando me ofereci para ajudar. A minha cabeça estava longe dali mas, pela Leonor, fiz o impossível por me integrar, por ser simpático, por participar, em vez de, como é habito, pegar na bebida mais alcoólica à disposição e enfiar-me em qualquer canto onde, espero, ninguém me chateie. Percebi, há algum tempo, que o álcool ajuda o tempo a passar.
Mas, daquela vez, decidi fazer um esforço sério para que fosse diferente. A Leonor vinha a pedir-me isso há mais de uma semana e levou toda a viagem de Lisboa ao Bombarral a implorar-me para que fosse “minimamente sociável” com os seus amigos.

- Há alguma coisa em que possa ajudar? – Perguntei eu à porta da cozinha. Fez-se silêncio, todos pararam olhando na minha direcção. A estupefacção era geral.
- Bom, podias desfiar estas postas de bacalhau. – Respondeu a Matilde, um pouco hesitante, sem saber se eu estava a falar a sério ou já tocado pela bebida.

A Leonor tentou intervir, oferecendo-se para ser ela a desfiar o peixe enquanto eu tratava da salada, mas não aceitei a troca. Se é para “socializar”, então que faça o que me é pedido… por muito que isso me custe.
Isto porque eu odeio bacalhau! Não falo em o comer, coisa de que não me lembro de alguma vez ter feito (mas que sei que fiz em pequeno). Eu não suporto sequer a ideia de olhar para ele. No supermercado, evito sempre passar pelo sítio onde está exposto e, há umas semanas, durante um noticiário televisivo, mudei de canal quando a reportagem foi sobre o perigo de extinção da espécie. A notícia agradava-me, as imagens causavam-me repulsa.
E agora, prova suprema, ali estava eu, o namorado mal disposto, antipático e insuportável, tolerado apenas porque andava com a Leonor – uma jóia de pessoa -, tentando, pela primeira vez, mostrar que era mais que isso, sujeitado a tão duro teste.
Aceitei-o, havia que mostrar que alguma coisa a Leonor tinha visto em mim para que me aturasse há mais de dois anos.
Se me recuso à desfia do bacalhau ia ter que explicar esta minha estranha aversão. A juntar a todos os outros defeitos, ia passar a ser também maluco, o que, não sendo absolutamente errado, é manifestamente um exagero.

- Ora venha de lá esse bacalhauzinho. – Disse eu, tentando controlar as tripas e a respiração pela boca. – De desfiar não me importo, mas de comer não sou capaz, fico-me pelo prato de carne, vão ter que me perdoar.

Perdoaram e, modéstia à parte, fiz um bom trabalho. Durante a refeição estive atento e apenas vi duas espinhas pequenas serem encontradas no Bacalhau com Natas. Peles do gadídeo, nem vê-las.
Também me portei bem na confraternização. Participei nas conversas, misturei seven up no vinho e na cerveja, rejeitei o whisky digestivo. Confesso que, ao contrário das outras vezes, até achei os amigos da Leonor pessoas respeitáveis. É que o álcool não ajuda só o tempo a passar mais depressa, pelos vistos, distorce também a percepção que temos dos amigos das nossas namoradas.

A Leonor estava no céu, claro. Não a via sorrir tanto desde o início da nossa relação. Achei-a mais linda do que nunca, o que, se não fosse por mais nada, já tinha valido o meu esforço em ser simpático e em ter desfiado o bacalhau.
Conhecia na redacção do jornal. Eu tinha ido entregar as fotos em mão, o que é muito raro, e ela lá estava. Trabalhava para o escritório de advogados do jornal e tinha lá ido falar com um jornalista por causa de um processo de liberdade de imprensa em que ele era arguido.
Era também muito raro o advogado ir à redacção e isso ajudou-me a convencer que o nosso encontro não fora só uma coincidência.
Dois anos e meio depois, continuava a ser para mim um mistério o que aquela advogada de sucesso e extremamente bonita, tinha visto num tipo como eu, um mísero fotografo free-lancer, especializado em fotografia de desporto, sem qualquer vida social, com problemas de relacionamento – excepto com o álcool -, de feitio difícil, mal disposto, antipático e, geralmente, insuportável… sim, os amigos dela tinham razão, admito-o.
Pela aparência também não podia ser, que estou longe de qualquer ideal de beleza. Durante muito tempo, achei que era por eu ser mais velho. Tinha, na altura em que nos conhecemos, 39 e ela 35. Ela sempre contestou isso. - O que quer que seja que eu sinto por ti, não se explica, sente-se. - Responde-me sempre ela.

Naquele final de tarde, no regresso a Lisboa, enquanto eu conduzia, olhei para ela. Dormitava ao meu lado, os últimos raios de um sol primaveril batiam-lhe de frente, realçando as dezenas de pequenas sardas que lhe salpicavam o nariz e a as bochechas; o cabelo castanho claro cai-lhe pela face. Parecia sorrir.
Sabia-a feliz e prometi a mim mesmo fazer um esforço sério para merecer o que quer que fosse que ela sentia por mim.
Liguei o rádio, coloquei o som baixo e sintonizei a TSF, eram 20h00 e queria ouvir as notícias.
Nada se tinha passado naquele último domingo de Abril. Acabei por me distrair e deixei de prestar atenção ao rádio, até que, minutos depois, algo chamou a minha atenção: alguém parecia estar a tentar colocar uma cassete no leitor, só que o carro tinha leitor de cd’s.
Olhei para a Leonor, continuava a dormir. Uma voz rouca de homem começou a cantar. Percebi então que o som vinha das colunas, era o início de uma reportagem da TSF. Nada mais, nada menos, que sobre a pesca de bacalhau!

30 comentários:

Ana P. disse...

Agora que já consigo comentar, sou logo a 1ª!!!!

Não li o texto, não tou com cabeça...

Beijinhos

Anónimo disse...

Hummmmmmmm, cheira-me a bacalhau...

Já agora tens alguma foto da carolina na catedral com uma camisola rasca onde se lia ( orelhas estou aqui )?



Um abraço

inBluesY disse...

e coincidências não existem meu caro :)))

saudades

Isa disse...

demorô, meu caro, demorô!!! mais, mais, mais!!! tb sou como a outra, n acredito nadinha em coincidências!!! bjs

Martini_Lady disse...

E pronto, o filho pródigo a casa volta e pelos vistos transpuseste (e bem) as tuas ideias :-)

Bjnhs

919 disse...

Rui, lamento (que menti'osa que eu sou!...) que as tuas férias tenham acabado e verifico que não te estragaram! Como disse, ou quase, a Akasha, o filho pródigo na casa do pai entorna... É bom, muito bom, ler o que escreves e este "vida demorada" já promete!...

Medusa Azul (Zuli) disse...

estou a gostar de ler-te..
conhecer-te.. :)

beijinho

rafaela disse...

é preciso ter azar, bacalhau também na tsf.

é bom voltar a ler-te agora, desde o inicio, a acompanhar o crescimento.

=)

amigona avó e a neta princesa disse...

É sempre bom voltar par te ler...

CS disse...

Difícil comentar a tua escrita. Venho cá só ler e deixo beijinhos, tá?

Anónimo disse...

Para onde nos levas desta vez?!

Já embarquei...

inBluesY disse...

continuando nas coincidências, e depois da ausência a escrita surge quase como o prolongamento, da ausência leve e linda como se espera da primavera

kiss

Sea disse...

eheheheh... as mini-férias da Páscoa, deram bons frutos. Bem hajas pelo excelente texto que, por isso, não vou comentar, sou pequenina demais para isso.
beijo

Paixão disse...

Uma história nova! Yupi!!!
Já estou a gostar:)

Beijinhos

Sofia disse...

Isto promete!

jinhos

Gina disse...

Komo te disse...
Tás como o Vinho do Porto meu kerido...
Vá lá kero mais.
Beijinhos

Gina disse...

Upssssss , mas o vinho embebeda poças ehehehe

Legionaria disse...

:)) Rui, pois existe...

Dani disse...

Bacalhau... também não sou dos melhores apreciadores... terei que começar a pensar em rever as minhas atitudes? :)

Salvador disse...

Tenho muito gosto em ler os teus textos.

És um escritor

Anónimo disse...

Rui, há algo que me inebria de certa forma na maneira como combinas a realidade com a ficção. Nunca se consegue perceber se o que contas é baseado na tua história, na de alguém ou simplesmente pura ficção...é genial. Tocou-me profundamente uma frase: "o que quer que seja que sinto por ti, não se explica, sente-se"...esta frase tal e qual foi dita por mim há quase um ano e entendo tão bem o seu significado. Fez me sorrir! Obrigado :)
Beijos

P.s: Ah! Quanto aos códigos de que me falaste...pois agradecia :)

Anónimo disse...

Começa a curiosidade =P
Sorrisos e beijos

isabel disse...

És incrível, consegues sempre deixar-me a pensar.
Admiro imenso a tua forma de escrita, a tua sensibilidade. Não desperdices esse dom que Deus te deu.

Bons sonhos
Beijinhos

Vanda disse...

Dizem que ha mil maneiras de o cozinhar...é como as historias...e das tuas, gosto muito!!!

Viajemos, então :)

Mipo disse...

fobia a bacalhau é fantástico! :-)

Sea disse...

aguarda-se a repostagem sobre a pesca do bacalhau...
Beijo e boa tarde

Sea disse...

hum... era mais reportagem...

virilão disse...

Começo a achar que tenho que te conhecer melhor...;-)
Aquele abraço

Sara MM disse...

EHEH!
só tu, para ires de lisboa ao bombarral, com tsf e amigos e namorada e bacalhau, tudo à mistura ! :o)
muito giro, por enquanto, deixa lá ir ler o resto.....
BJs

Inês Diana disse...

Essa "mão vinda das profundesas" às vezes também me visita... :S

Outras vezes é só um tubarãozinho, com ar guloso, a mordiscar-me as canelas! ehehehe

Beijo, padrinho :P