quinta-feira, abril 20, 2006

Uma Vida Demorada (2)

Nem sempre fui uma pessoa mal-humorada e de trato difícil, mais novo, era apenas um miúdo triste. À medida que cresci, cresceu comigo uma revolta, algo que me fazia estar de mal com o mundo, estar de mal comigo. E assim, tornei-me numa pessoa amarga. À minha volta, apenas terra queimada. Nunca deixei ninguém aproximar-se, nunca fui capaz de uma verdadeira relação, fosse ela de amizade, ou mais sentimental.
A Leonor foi a primeira pessoa a, verdadeiramente, conseguir aproximar-se de mim, a ver algo mais, algo que, confesso, nem eu próprio consigo descortinar muito bem.
Ela diz que eu me expresso bem pelas fotos que tiro – não tanto as de trabalho, que essas são mais formatadas por obedecerem a um critério -, mas nas outras, nas que faço por prazer; essas, revelam de mim o que mil palavras não conseguiriam dizer.
Tem mesmo uma teoria para o meu comportamento: perdi os meus pais era muito novo, o meu pai num acidente de trabalho e a minha mãe, com o desgosto, suicidou-se pouco tempo depois. Fui então adoptado por um casal, em 1969, ligado ao regime político da altura – o meu pai adoptivo era director-geral de um organismo público, a minha mãe adoptiva, doméstica. Com o 25 de Abril o meu pai é saneado, perseguido e chega a estar preso durante alguns meses. Perderam quase tudo o que tinham, inclusivamente o prazer de viver. Ele entra em depressão profunda e arrasta a minha mãe. Em poucos anos definham e, em 1983, tinha eu dezoito anos, morreram com poucos meses de intervalo. Eram ainda pessoas novas.
A Leonor diz que eu, com o receio de voltar a perder pessoas de quem gosto, não deixei mais ninguém aproximar de mim.
Nunca tinha pensado nisso assim, nunca procurei razões para o meu comportamento e, inclusivamente, disse-lhe que a teoria dela era um disparate. A verdade é que fiquei a pensar naquilo. Talvez ela tivesse alguma razão, talvez eu não consiga suportar novamente o voltar a ficar sozinho.

Mudei imediatamente de estação de rádio, já chegava de bacalhau por um dia. Procurei uma sintonia que tivesse música de que gostasse, mas sem sucesso. Vasculhei o porta-luvas em busca de algum CD, era o carro da Leonor, um Peugeot 407 SW – grande demais para as necessidades dela, mas “com estilo” – e acabei por encontrar dois: Jane Monheit e Madeleine Peyroux. Não conhecia tais nomes, mas percebi logo que não tinham nada a ver comigo. Lembro-me de ter ficado a pensar que, de facto, tinha tão pouco em comum com ela, que talvez a coisa entre nós pudesse dar certo.
Já com uma ponta de irritação a aflorar-me a pele, acabei por voltar à TSF. Se aquele dia estava a ser dedicado ao esforço de mudança, então que me esforçasse mais um pouco.

Decididamente, mais do que nunca, o meu passado perseguia-me. Havia uns meses que, quais fantasmas, memórias da infância que eu sempre mantive arrumadas bem fundo dentro de mim, coisas que me esforcei muito por esquecer, me assaltavam o espírito.
O meu pai biológico era pescador de bacalhau. Natural da Fuzeta, nascido numa família de pescadores, manteve a tradição. Ausentava-se por longos períodos de tempo, na Terra Nova. Morreu no mar quando, no regresso, porões carregados, o barco não suportou uma violenta tempestade e afundou. Já o meu avô paterno tinha morrido no mar.
Quando a minha mãe não suportou a perda do marido e se matou, deixando-me entregue à minha sorte, não fui capaz de perdoar ao peixe. Acho que, assim, foi mais fácil: perdoei o infortúnio do meu pai e o egoísmo da minha mãe; concentrei o ódio, a amargura e o remorso no elo mais fraco, na origem de tudo, no bacalhau.

No rádio, um ex-pescador explicava como o Estado tinha criado a chamada Tropa do Bacalhau, composta por homens que, a troco de umas quantas campanhas de pesca, se livravam da ida à tropa em tempo de guerra colonial. Dizia ele que a violência da actividade era tal, que muitos se arrependiam da troca.
A reportagem era sobre a recolha de testemunhos de ex-pescadores levada a cabo pelo Museu Marítimo de Ílhavo, no sentido de preservar uma memória do que, em tempos, tinha sido uma actividade importante da economia nacional.

Leonor, entretanto desperta sem que eu desse por isso, passou-me a mão pelo cabelo. – Que coisa, João, mais bacalhau. E tu a ouvires.

- Começo a achar que não é por acaso, sabes? – Ficámos a ouvir em silêncio. Ela cheia de vontade que eu me explicasse mas, conhecendo-me, sem nada dizer, dando-me tempo.

Nessa noite não fiquei com a Leonor, desculpei-me com uma dor de cabeça e cada um foi para sua casa. Queria, precisava, ficar sozinho. Havia algo que tinha ficado daquele dia que me perturbava.
Tirei a garrafa de Bushmills do armário e servi uma dose generosa. Sentado na escuridão da sala, fiquei com o copo na mão, a sentir o perfume da bebida… da tentação. Queria pensar em algo que não sabia muito bem o que era, mas não me conseguia concentrar. Ponderava se havia de beber ou não.
Havia um detalhe da reportagem que não me saía da ideia: naquela altura, a RDP tinha um serviço, conhecido como a Hora da Saudade, que permitia às famílias dos pescadores o envio de curtas mensagens para os familiares embarcados. Um pouco à semelhança do que a RTP veio a fazer, poucos anos depois no sentido inverso, que era o envio de mensagens dos soldados em África para as famílias - adeus, até ao meu regresso.
Não conseguia deixar de pensar na possibilidade de existir algum telegrama falado da minha mãe para o meu pai.
Na reportagem, tinha sido dado particular destaque à Fuzeta, minha terra natal, que deu muitos dos seus filhos ao mar. Era das principais localidades ligadas à pesca longínqua e muitas das gravações existentes tinham sido lá feitas. Deveria eu procurar? Afinal, eram apenas breves segundos de palavras ditas à pressa, com péssima qualidade de som.
Até esta altura, com 41 anos, nunca tinha sentido necessidade de saber mais sobre os meus pais biológicos, na verdade, por muito que custe admitir ou mal que possa parecer, sempre considerei como meus verdadeiros pais a família de adopção.
Por eles, senti ódio aos revolucionários de Abril. Devolveram-nos a liberdade. Mas que liberdade? A de, impunemente, acabar com a vida de um homem honesto e trabalhador, que nunca tinha feito mal a ninguém?
Lembro-me de ter proposto a ida para o Brasil, muitas das pessoas ligadas ao Regime estavam a partir e nós podíamos ir também, começar lá de novo. Mas o meu pai recusou terminantemente essa hipótese, dizia-se de consciência tranquila, que não tinha razões para fugir do seu país, pelo qual tinha dado tanto. Mal sabia que seria preso poucos dias depois e que isso o destruiria, condenando-o a um estado apático e de prostração do qual não recuperaria.
Mas agora, apresentava-se uma chance de saber algo mais dos meus pais naturais. Deles pouco sabia: nome, local de residência, nome do barco em que o meu pai perdeu a vida, data da morte da minha mãe, pouco mais que isso. Coisas que me tinham sido contadas pelos pais adoptivos, que nunca me esconderam nada sobre o assunto.
Memórias dessa altura não guardo, apenas uma ténue ideia da minha mãe, de uns cabelos longos e negros, de sofrimento, de dor. Associo esse período a choro, a uma urgência que não consigo explicar nem entender. Recordo-me de haver pressa.

Bebi de um trago o conteúdo amarelado do copo e fui despejar o líquido da garrafa na sanita.


A reportagem da TSF é real, chama-se “Pescadores de Memórias” e pode ser ouvida aqui.


23 comentários:

Martini_Lady disse...

Gosto do modo como abordas temas de forma inteligente e subtil e de como vais dando pequenas dicas de possibilidades do desenrolar da história... faz crescer água na boca pelo advir da continuação :-)

Bjnhs

Sea disse...

continuo a ler-te, sem comentar... Estou expectante pelo desenrolar.
Um beijo para ti :)

rafaela disse...

espero pela continuação.

Medusa Azul (Zuli) disse...

:) também fico curiosa..

as tuas histórias têm algo de cinematográfico.. ou bedéfilo. gosto! :)

Fátima Santos disse...

gosto da tua escrita. gosto de te ler. prendes a atenção. é ficar aqui de olhos postos a ler os dois ou tr~ês episódios. o melhor é vir todos os dias rsss

Isa disse...

mto fixe, mto fixe. é bom ouvir alguém falar do outro lado da barricada de abril! gostei mt. bjs

Vanda disse...

Estou a gostar da demora, saboreio-a.

(e acho que não é preciso dizer mais nada)

Um beijo para o vizinho que tive...

Fortunata Godinho disse...

hum... And i wonder where this is going...

Ana P. disse...

Sabes uma coisa?

Agora aperto a minha curiosidade e só leio os teus post no fim, mas no fim de todos.
É que assim, não me deixas remoendo de como vai acabar a história...

(para a próxima, relatas-me os acontecimentos lá "no outro lado")

Sofia disse...

excelente, como era de esperar. fico a espera da continuação.

bj

Mãe disse...

Prometo voltar com tempo para ler e saborear, do início. Ainda tenho as malas para desfazer :)

Sea disse...

Bom fim de semana Rui, um beijo :)

Anónimo disse...

Neste mundo nada é perfeito. Que me perdoe, mão fico nada impressionado com o sofrimento dos seus pais. Se eles sofreram quando o país entrou numa democracia era porque foram felizes quando todo o país sofria entregue a uma ditadura sanguinária.
E que dizer do sofrimento dos filhos e esposas dos portugueses encerrados nas prisões do estado novo, só porque não concordavam com a ordem natural das coisas?
Viva a democracia, viva a liberdade, viva o 25 de Abril.

Anónimo disse...

Então fui eu que li mal e apressadamente ou confundo ficção com realidade. As minhas desculpas!

hala_kazam disse...

é sempre um grande prazer ler as tuas palavras...palavras essas que roubam as minhas

*beijos*

isabel disse...

Não há como comentar. Palavras bem escritas, bem jogadas. Aliás, como sempre.

Tem uma boa noite
Beijo

Anónimo disse...

Voltei. Hoje com tempo. Com olhos de ver. Com vontade e sede de ler.

Valeu a pena, como sempre. Adorei. É já um vício...

Anónimo disse...

Que fervilhar de ideias, que imaginação, que criatividade...fazes me lembrar a mim mesma aqui á uns anos, escrevia compulsivamente :)
Muito bom beijos

Salvador disse...

Bom, muito bom para não variar

alyia disse...

Raio do trabalho não me deixa vir mais vezes e depois quando venho... perco-me por aqui :)

virilão disse...

Continuas a surpreender-me...os teus personagens são tão bem feitos que um tipo perde-se, sobre a possivel realidade e a verdadeira ficção.

Sara MM disse...

UAHU!
que vidas... bolas! coitados... coitados dos pais, dos pais biológicos, dele, e do bacalhau!!!!! :o|

Bjss

Isa e Luis disse...

Olá,

Gosto de te ler, tens uma boa imaginação que nos leva a querer mais e muito mais.

Beijinhos muitos


Isa