terça-feira, abril 04, 2006

O Olhar de Arminda (X)

Na origem do topónimo Espinhosela está a palavra latina Spirum, que significa Espinho, derivando depois para Espinhosela. Diversos achados arqueológicos colocam a sua origem em épocas muito recuadas, por alturas da idade do ferro.
Hoje em dia, a aldeia não tem 300 habitantes, continuando a viver, a maioria deles, da agricultura, em especial da produção de castanha.
Não são muitas as habitações, a maioria espalhadas ao longo da estrada principal e rodeadas de campos cultivados, que as chuvas de início de primavera tornaram particularmente verdes.

Estacionei junto à Igreja Matriz e fui até ao Cruzeiro, bem no centro do largo da aldeia. À minha frente, podia ver a Bedford de Laureano, rodeada pelas mulheres que se aproximavam. Lá estava a jovem Arminda, no adro da igreja, aguardando o momento de receber as suas revistas.
Trinta anos depois, pouco parecia ter mudado em relação à memória que ela guardava do local e que me tinha descrito há duas semanas atrás, bem longe dali.
A conversa que tinha tido com ela não me saíra da cabeça. Nada lhe disse, mas tinha decidido procurar a sua mãe. Agora, ali, questionava mais uma vez o direito que eu, um estranho, tinha de interferir na vida destas duas pessoas. Afinal, aquela mulher apenas tinha desabafado comigo, nada me pedira.
Ou teria pedido, ainda que por outras palavras? Não alimentaria ela a esperança de que eu fizesse alguma coisa quando me contou a mágoa que tinha por se ter afastado da mãe, a única pessoa em toda a sua vida por quem tinha conseguido sentir amor?

- Sabes, tive muita gente a gostar de mim. Muitos homens fizeram-me juras de amor, prometeram tirar-me desta vida e amar-me incondicionalmente. Recomeçar de novo… Nunca lhes disse mas, dentro de mim, não há amor, nada… apenas um grande deserto de sentimentos para com as outras pessoas. Sequei, sabes? Não te sei explicar, mas sou incapaz de uma relação. Ao fim de pouco tempo só consigo sentir repulsa pela pessoa… não penses mal de mim…

Eu não pensei, apenas tive uma pena imensa dela.

No café “Cova da Lua” indicaram-me onde Francelina morava. Estava viva e de saúde, segundo me contaram. Vivia ainda na mesma casa de onde, um dia, a sua filha tinha partido.
Entreabriu a porta desconfiada; o olhar era muito vivo e penetrante para alguém já com setenta anos. Mirou-me de alto a baixo antes de aceitar falar comigo.

- Ao que vem vossemecê?
- Queria falar consigo… sobre a sua filha.
- O que tem a minha Arminda? – Havia ansiedade no seu rosto.
- Não se preocupe, ela está bem. É que eu conhecia há pouco tempo.
- Esteve com a minha menina?

Entrei e, com Francelina sentada junto à janela a olhar para o exterior, contei-lhe como, por acaso, me tinha encontrado com a filha na Holanda. Que ela estava muito bem, continuava bonita, que era uma mulher de negócios – omitindo, claro, o ramo de actividade -, que estava muito bem na vida. Nunca tinha casado e não tinha filhos.
A velhota escutou-me em silêncio, nunca me interrompendo. Apenas quando terminei me dirigiu a palavra.

- Vossemecê tem que me desculpar, nem lhe ofereci nada para comer ou beber. Tenho aqui um salpicão como nunca provou.
- Não se incomode, eu estou bem. Aceito é um copo de água.
- Sabe, naquela altura, quando ela saiu de casa, ouvi muitas histórias… que ela não estava no Porto, que tinha ido para Espanha, para uma casa onde… como é que eu lhe explico?

Fiquei a saber dos boatos que, nos primeiros tempos, correram sobre a filha, sempre nas suas costas, sempre à boca pequena. Francelina nunca lhes deu importância, nunca lhes respondeu; como o poderia fazer se eu não tinha como saber a verdade? Tinha rezado muito, que era a única coisa que estava nas suas mãos.
No seu íntimo, disse-me, sentia que os boatos podiam verdadeiros; sabia que havia muita gente ruim no mundo capaz de se aproveitar da ingenuidade e inocência da filha.

- Não pense que eu acho que era uma santa, porque não era. Havia algo nela, sabe, algo que lhe veio do pai… um desassossego, não sei que outro nome lhe dar. Lidei com ele pouco tempo, mas o suficiente para o conhecer bem… Ela tinha o olhar do pai, sempre lá longe… eles viam outras coisas, queriam outras coisas.

Contou-me como o tinha conhecido, da gravidez e consequente desaparecimento dele. Contou-me de como tinha inventado a sua morte, algo que a filha desconhecia. Foi melhor para todos.

Mais uma vez me eram confessados segredos há muito guardados. Também aquela mulher tinha necessidade de falar. E fê-lo como se eu ali não estivesse. Olhava pela janela e como que pensava alto.

Uma inquietação tomou conta de mim quando Francelina falou do olhar da filha. Um arrepio percorreu-me as costas.
Recordava a intensidade do olhar de Arminda quando, no café, reconheceu o velhote. Uma intensidade que eu nunca vira antes, era como se, subitamente, dois faróis se tivessem acendido. Mas, ao mesmo tempo… onde é que eu já tinha visto essa mesma intensidade?

- Quer ver uma fotografia dele? – A pergunta apanhou-me distraído.
- Desculpe, não percebi.
- Perguntei-lhe se quer ver uma fotografia do pai da minha menina.

Revolveu várias gavetas para achar a foto. – Esta minha cabeça, já ando muito esquecida.
A minha fervilhava. Conseguia disfarçar mal alguma excitação. A história daquelas pessoas revelava-se mais complexa do que parecia.

- Encontrei-a, está aqui! – Exclamou a mulher, segurando um pequeno pedaço do que me pareceu ser papel vegetal, que me passou para a mão.
Desembrulhei cuidadosamente a foto. Dava ideia de não ser mexida há muito tempo.
Um quadrado de papel amarelecido apareceu, nele, umas letras azuis de carimbo, já muito sumidas, mas que ainda permitiam ler: Foto Matos – Chaves.
O rosto era o de um jovem muito bem parecido. O olhar, eu já o tinha visto. Naquele momento eu soube: era o olhar do velhote quando, em Amesterdão, reconheceu a mulher que gritava para ele, o homem que tinha comprado Arminda e que a tinha iniciado na prostituição. O pai dela.

O empregado do café, tinha-nos contado que o velhote era visita habitual há uns anos, que vinha várias vezes buscar algumas sobras de comida. Certa vez tinha-lhe contado que era perseguido no seu país: um negócio de importação que tinha corrido mal e que, como era na Holanda que se abastecia – um país que conhecia bem -, tinha-se mudado para lá com o pouco dinheiro que tinha conseguido salvar.


- Que foi homem, parece que viu um fantasma, vossemecê está branco.
- Ah… não, não é nada… mais alguma vez soube dele?
- Uns anos depois o meu irmão voltou a vê-lo em Chaves, num grande carro. Parecia que a vida lhe corria bem. Mas foi só isso.

Não fui capaz de lhe contar. Precisava pensar. As coisas eram bem mais complicadas do que eu podia imaginar. Não tinha sido boa ideia interferir.
Pedi desculpa, que já estava atrasado para um compromisso urgente, disse que voltava no dia seguinte e saí.
Francelina ainda me perguntou o que tinha eu lá ido fazer, mas eu não lhe respondi. Naquele momento, não tinha resposta para lhe dar, também eu não sabia.

Fui ao sítio que Arminda me contou ser o seu preferido, bem no cimo da Serra. É aqui, sentado num calhau, a olhar para norte, perante a paisagem que a fazia sonhar, que escrevo estas palavras.
Não consigo deixar de pensar nos caprichos da vida: naquilo em que se tornam os sonhos de uma miúda que era maior que o local onde nascera e crescera e em como fizeram de mim o elo de ligação entre a vida dela, da mãe e do pai. Está nas minhas mãos o fio condutor que pode fazer com que cada um saiba do outro.
Seria mais fácil se se tratasse simplesmente de reunir uma família que o tempo tinha separado. Era bem mais complicado que isso, havia muito mais em jogo.


É um direito que eu tenho, ou um dever? O que faço eu com aquilo que sei?
Não quis nada disto mas, ao procurar Francelina, acabei por me envolver. Agora não posso fingir que não é comigo.
Não sei o que faça, sei apenas que não tenho muito tempo para decidir.

Neste local, é fácil perceber como a rapariga descia à aldeia com o horizonte no olhar. Mas esse horizonte há muito que se desvaneceu. Agora, o olhar de Arminda não ia para além do tecto.

Fim.

28 comentários:

Sofia disse...

E pronto Rui, ja me fizeste chorar.... e logo hoje....

bem que desconfiei que o pai ia aparecer nesta historia. que historia Rui, que triste, que vida.....

desculpa hoje n dá pra mais...

bjs

Maria Liberdade disse...

E que tal contar ao pai? Merecia-a acabar a vida com um peso desses.

Gostei muito, mesmo.

Anónimo disse...

Um abraço Rui.

Martini_Lady disse...

Fim?! Como fim?! Não me digas que não vais continuar a história :-(
Espero que voltes atrás...
Bjnhs

Anónimo disse...

Mas o que é que o pai estava a fazer em Amesterdão?

Dani disse...

Nã, nã, isto não pode acabar aqui! Então e uma certa coisa no chão?

rafaela disse...

não sei porque mas ja estava a espera que o pai fosse o homem do carro grande.

Muito bom, porque que não continua?

=)

Vanda disse...

Rui, tanto que a Arminda ja olhou e eu há uma semana que não te leio :( mas a vida é mesmo assim, há momentos em que as palavras são para se dizerem e não para se escreverem...

Volto uma destas noites, para te ler...até lá aqui fica um beijo meu!

Rui disse...

A Zeni tem razão, faltava ali um parágrafo em que era dada uma explicação para a presença do velho em Amesterdão.
Algures entre copy/paste perdeu-se o texto - nem vocês calculam como eu funciono.
Enfim, texto perdido, fiz ali um enxerto à pressa o mais próximo que me lembrei do original.

Salseira disse...

Rui,

Gostei muito da história! Custa ver agora o Fim porque gostava de saber o que ele vai fazer. Mas faz sentido que termine assim!

Parabéns!!

Anónimo disse...

Esclarecida!!

"negócio de importação" que correu mal e foi perseguido? Abastecia-se na Holanda? Droga??

É coerente com o perfil dele...

Paixão disse...

Li tudo... tal como disse que faria. Estou encantada mas melancólica. Adorei a tua escrita. Os meus sinceros parabéns...

Beijo

919 disse...

como sempre, uma valente surpresa no final... o pai dela?!!!... e a decisão final, a que não foi tomada, não é fácil de tomar, não!... merece outro conto...

Vanda disse...

Gostei, Rui!
Gostei da historia sem cor-de-rosa.
Gostei de te ver partir por esse mundo fora, no olhar da Arminda e te ver terminar com o olhar vazio, num tecto...

Triste, mas real.

Parabéns!

Mãe disse...

Adorei.
Tudo.
Mesmo.
Fez sorrir,emocionou, arrepiou.
Continua. Por favor.

Isa disse...

liiiiiiiiiiiindo! Rui, altamente. mts parabéns mesmo! bjs

Mipo disse...

ai que triste...

viveremsegredo disse...

escreves bem, gostei do que li :)

Anónimo disse...

Adorei!... até fiquei sem palavras.
Bjs. Jaqui.

Sara MM disse...

e quantas maldades dessas não há na vida real!!? realmente, às vezes parece que os humanos não deviam existir....!!!!

mixtu disse...

Rui...
excelente, excelente...
E agora as tuas responsabilidades aumentaram...
cumprimentos monárquicos

lena disse...

como me prendeste até ao fim, viajando e tentando imaginar sentimentos tão difíceis e muito bem descrito

excelente o que li

parabéns Rui, adorei acompanhar-te neste desenrolar de episódios onde a Arminda foi a “atriz” principal de uma "novela" real

beijinhos para ti, vou esperar por outra história


lena

amigona avó e a neta princesa disse...

E porque não continuas?

Medusa Azul (Zuli) disse...

Olá Rui,

Passei finalmente por aqui.. e estou a ver que tenho muito para ler :)

Beijinhos

Medusa Azul (Zuli) disse...

Ah! partilho contigo o gosto (o meu é gigantesco!) por antony and the johnsons!!! :)

isabel disse...

Finalmente li!
Que estória tão bem contada, tão pormenorizada e tão bem escrita!!!
Estou ainda emocionada, tocas nos pontos nevrálgicos como ninguém.
Hoje não consigo dizer mais nada, apenas que vou imprimir e fazer um livrinho, só queria que depois o assinasses.

Beijinhos
e uma boa noite

Mãe disse...

Já temos saudades de te ler...

Vanda disse...

Cansado? Ou a Arminda ainda anda por aí? às vezes temos que nos despir delas e deles...

Um beijo e fico à espera :)