sexta-feira, outubro 28, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 1)

Sirvo para uma coisa muito simples. Apesar disso, não sou simples, antes pelo contrário, sou o resultado de uma complicada mas harmoniosa conjugação de dezenas de peças, muitas delas móveis.
Sou fruto da inspiração de uma mulher apaixonada e da habilidade de um homem, também ele apaixonado.

Assinalo a passagem do tempo, sou um relógio.

Fui criado em Genebra, em 1917, resultado da habilidade – do génio – de Mr. Adrien Philippe, mestre relojoeiro de excepção, homem apaixonado pelo seu oficio.
A inspiração deu-a Frau Lea Abendroth que, por ser de uma família abastada de Munique com contactos em vários países, conseguiu chegar até ao sogro de Mr. Philippe, pedindo-lhe que intercedesse a seu favor junto do mestre relojoeiro, o mais conceituado do seu tempo.

Adrien Philippe hesitou, afinal, sempre tinha sido ele o criador das suas peças, sempre tinha feito questão disso, era a parte do processo que mais prazer lhe dava. De espírito criativo, procurava sempre inovar, introduzindo novidades a cada novo modelo produzido.
Ao ler as indicações de Frau Abendroth, considerou-as um desafio e aceitou a encomenda.
Eram muito simples de enumerar e difíceis de concretizar: seria um relógio de bolso em prata, com tampa, em que nesta fosse gravado uma runa simbolizando a boa sorte
e que, no seu interior fosse colocado o encaixe para uma foto; para além das horas, o relógio deveria ter cronómetro, regulação fina e bússola; deveria ter também um mostrador onde fosse indicado o nascer e o por do sol; por último, na parte detrás, deveria ser gravada a frase “Meine Traueme Mit Dir Traueme”.
Sem querer abusar demais da boa vontade do mestre, Frau Abendroth pedia alguma urgência. Dinheiro não seria problema.

Mr. Adrien Philippe saiu-se maravilhosamente. Utilizando os melhores materiais e os melhores artífices, produziu uma peça verdadeiramente magnífica. Um relógio único.
Sim, sou vaidoso. Mas tenho razões para isso, no meu tempo fui do melhor que a relojoaria Suiça produziu e, ainda hoje, continuo a ser admirado com reverência por conhecedores e olhado com espanto por leigos.

Com 19 anos feitos há pouco tempo e casada à menos de um ano, Lea Abendroth viu-se no início de 1917 na eminência de se separar do marido. Promovido a Capitão do exército imperial alemão antes dos 21 anos, Herr Maximilian Schenk Ludendorff partiria em breve. A Alemanha estava em guerra.
As boas relações quer da sua família, quer da do marido junto da corte tinham, até então, adiado a partida de Maximilian, mas a situação pouco favorável vivida pelas tropas alemãs na frente de batalha e o recente apelo do Kaiser para a união da pátria, tinham tornado inevitável a sua convocação dentro de pouco tempo.
Sabendo do gosto de Max, como o tratava carinhosamente mas apenas em privado, por relógios, Frau Abendroth tinha decidido há já algum tempo oferecer-lhe um modelo exclusivo pelo seu aniversário em Novembro. Quando a família foi avisada que Maximilian seria convocado em Março, não perdeu mais tempo, queria ter o relógio em sua posse quando o marido fosse chamado a cumprir o seu dever pela pátria.
A 3 de Março chegou o telegrama, partiria de Munique dia 28 próximo, iria ser colocado na Flandres.

É impossível esquecer uma cena daquelas. Pouco passava das 7h00, uma leve neblina levantava-se empurrada pelos primeiros raios de sol. A Marienplatz estava apinhada, uma multidão convergia à Hauptbahnof, a estação central de Munique.
Centenas de pessoas despediam-se dos seus filhos, netos, maridos, pais, tios… Os soldados partiriam às 8h00 para Berlim, primeira etapa do trajecto que os levaria até à frente de batalha.
A pátria esperava o melhor deles. Sentia-se orgulho nas suas expressões. Alguns conseguiam disfarçar menos bem o medo que sentiam.
Apesar de tanta gente concentrada num mesmo local, o ambiente era estranhamente calmo. A Lea, tinha-lhe parecido o ambiente de um funeral quando chegou. Estremeceu mas afastou imediatamente todos os pensamentos negativos do seu espírito.
Apenas ela tinha insistido em se vir despedir à estação. Maximilian tinha preferido despedir-se de todos em casa, algo sobre não querer parecer “muito humano” aos olhos dos homens que ia comandar. Lea tinha-o repreendido e impôs a sua presença.

- Max…
- Amor.
- Queria que aceitasse esta lembrança.
- Lea… mas… é magnifico… estou sem palavras. A assinatura, Adrien Philippe… não sei…
- Diga só que gostou.
- Lea, adorei, é lindo. O símbolo…
Meine Traueme Mit Dir Traueme…
- Lembra-se?
- Como poderia não lembrar. O seu poema… estou deveras tocado.
- No interior… coloquei uma foto minha, do dia do nosso casamento. Assim vai poder ver-me sempre. Tem também uma bússola, para que saiba encontrar o caminho de casa, até mim; tem um mostrador indicando o nascer e o por do sol, a esperança no dia que começa e a fé para o dia seguinte. As outras características poder-lhe-ão ser úteis na batalha, mas prefiro não pensar nisso.

Herr Ludendorff estava visivelmente emocionado. Ali ficaram os dois, de mão dada, em silêncio.
O comboio apitou com um silvo estridente e prolongado. O vapor libertado encheu a estação, dando-lhe um ar lúgubre e um pouco irreal. Maximilian beijou Lea nos lábios.


- Amo-o muito.
- Eu também a amo muito.
- Boa sorte.
- Voltaremos a ver-nos.

18 comentários:

Anónimo disse...

Agora és um relogio e vais para a guerra com um gajo.:)
venha mais, venha mais.

Um abraço

Anónimo disse...

Taxista, relogio, adolescente com problemas..... todos os dias me surpreendes! Será que alguem vai pensar que foste mesmo um relogio na "outra" vida????? hehehehehhe
Falando serio, eles vao ficar juntos ne? O titulo diz isso ne? Pleaseeeeeeeee :(

ehehhehehe, mulheres tas tu a pensar!

beijos da ss

ps. pra quando a segunda parte?

Anónimo disse...

Será que a Lea sozinha e abandonada pelo marido na guerra se enrola com o relojoeiro?

Será que o Max é vitima de um estilhaço de uma granada que se foi cirurgicamente alojar-se na glande?

Será que a Lea conhece a filha do relojoeiro e viram amigas e mais tarde muito mais que amigas?

Será que a max fica sem carola ( a glande )?

tenho um infinito numero de questões no ar, estas são algumas delas :)

Rui disse...

É divertido saber das dúvidas que surgem. Conto no domingo publicar a segunda parte, algumas questões serão respondidas. Um coisa posso adiantar: a glande fica de fora (pode ser que um dia volte a esse tema).

Anónimo disse...

E eu que adoro relógios :)

Muito, muito bom.
Nota-se que houve por detrás um grande trabalho de pesquisa.
A reconstituição histórica está muito boa.

Beijinhos

_________________________


(E deixem lá a glande do senhor em paz...tadinho)

Anónimo disse...

Eu acho que na verdade o Rui é um relógio, na mala de uma gaja de saltos altos, que encontrou uma antiga paixão que é um rapaz de 18 anos que não chegou a ir para a guerra por ter problemas na glande.... Será isto??

Talvez não..

ehehehhehehehehheeh

Olha Rui, adorei!!!
Beijokas da Desasada.

Anónimo disse...

Agora estava aqui a pensar...
Será que ele vai fazer como o Christopher Walken, no filme "Pulp Fiction" e esconder o relógio no rabo, para depois poder entregá-lo ao filho?
eheehehehehehehehehehehe

______________________________

Rui disse...

Nem um dente d'alho...

Anónimo disse...

Um texto magnifico...uma história que nos enlaça e nos prende até ao final...aguardemos. Beijinho :)

Maria Liberdade disse...

Aos sonhos que ficam gravados em objectos que nos acompanham sempre...E aos sonhos que continuamos a sonhar juntos.

Alberto Oliveira disse...

Faço votos que o Maximilian não tente enganar o revisor do combóio com um bilhete de eléctrico e que a Lea retoque o baton nos lábios...

...para estar bem maquilhada para a segunda metade do filme. Por mim, aproveito o intervalo para ir beber um café e...

...dar-te os parabéns pelo blog.

Anónimo disse...

Está deveras bonito. Espero plo resto pois fikei curiosa.
Sorrisos e beijinhos

Anónimo disse...

Sim... tinha de ser uma história de tão bom gosto qto se pode ser com um Patek Philippe... a legacy of genius :)
Gostei da mudança... de génio ;)

LD

Sara MM disse...

(não acredito em nada :oP mas...) Xiça penico! Que linda estória!
Ou é mesmo história?!?!

BJS

Sara MM disse...

Beeeeeeeeeem... os comentários por aí acima tão (quase) ainda melhores... tá tudo doido óquê??

Sara MM disse...

pois... à sexta feira vale tudo!!?!

desculpas.... desculpas... :o)

Bom fds!

segurademim disse...

Gostei ! muito bem escrito, rico... criando ambientes diversos, espaços (familiares e de interrelação), pessoas, sentimentos, praças, objectos, locais, despedidas, emoções... a estação gelou-me!

Inevitável a comparação com dois filmes, com ofertas, nas despedidas. O primeiro com o Jude Law e a Nicole Kidman o outro europeu do tempo da primeira grande guerra - "um longo noivado", de ambos recordo os percursos dos objectos ofertados...

Domingo, já tenho lugar reservado para assistir ao final da "história" do relógio que lea ofereceu a max!!! - entretanto e porque não un flute du champagne, s'il vous plais :)

Anónimo disse...

EHEHEH
Opa... adorei a 1ª parte!!
Com os comentários, então... chorei a rir!! ;)
Este Francisco... (tb me deixou algumas questões pendentes ;))depois dizes que eu é que sou depravada, lol :P (chega-lhe Francisco!!;))
Sim, pois... dentinho de alho???
(ai... cala-te boca!!!! lolixxxx!!)

Beijoo
Inês