terça-feira, outubro 18, 2005

La Folie

Vejo-a frequentemente. Ali está, de novo. Parece estar a olhar para mim, mas não. Não me vê.
Está irritada. Está sempre. Os braços não param. Sempre em constantes movimentos frenéticos. São movimentos de aviso, intimidatórios, afirmativos, como que para não deixar dúvidas quanto à justiça das suas queixas.
Acompanha os movimentos constantes com palavras duras, quase gritadas, imperceptíveis. São palavras de indignação mas, ao mesmo tempo, parecem de súplica, como que a pedir que a deixem em paz.

Tem já muita idade, aparenta, pelo menos, uns 80 anos. Pelo rosto percebe-se que não teve uma vida fácil.
Apesar da baixa estatura e de uma magreza quase esquelética, não aparenta fraqueza. O vigor com que protesta indica o contrário, que sempre foi uma mulher forte, que nunca virou a cara à luta, que enfrentou as dificuldades sem hesitar.
Mas algo falhou. Agora parece enfrentar-se a si própria. Algures, no seu percurso, algo correu mal. Se assim não fosse não estava ali, sozinha.
Parece que a vida lhe ganhou. Não que ela tenha perdido, nada disso, apenas que a vida lhe ganhou.

Está louca. Apesar de todos os seus gritos, de todos os seus gestos, ela protesta sozinha, ninguém a ouve, ninguém lhe liga. Pelo menos ninguém do mundo dos sãos, porque na sua cabeça algo está muito presente, algo a que ela dirige a sua ira.
E já deve ser assim há muito tempo uma vez que eu nunca vi ninguém interessar-se por ela, nem mesmo os miúdos para a gozarem. Devem estar todos tão habituados que nem dão pela sua presença, preferiram esquecê-la. Ou então pressentem qualquer coisa nela e têm-lhe um estranho respeito. Talvez vejam também essa sua força.

Sim, ela não está sozinha, o seu mundo é habitado. No entanto, julgo que ela preferiria que o não fosse, que não houvesse ninguém.
É que com os habitantes do seu mundo ela está sempre em conflito. Nunca a vi falar, está sempre a protestar, a esbracejar, a dar murros no ar, a gritar.
Pergunto-me, se ela pudesse escolher, optaria pela loucura na companhia de tão desagradáveis presenças, ou por uma solidão consciente?
O que será pior, viver com a consciência da solidão, de não termos ninguém, ou viver sem ter a consciência de nada do que nos rodeia?

O que escolheria eu?


Et si parfois l'on fait des confessions
A qui les raconter - meme le bon dieu nous a laisse tomber

(Stanglers)

12 comentários:

Anónimo disse...

Confesso que a opção de "viver sem ter consciencia de nada que nos rodeia" me parece por vezes tentadora. Muitas vezes nao estamos "sós" e sentimo-nos realmente SÓS!

beijocas,
ss

Anónimo disse...

Se pudesse escolher, escolhia não escolher ou então partir antes de sofrer.

Um abraço

Anónimo disse...

Eu preferiria a consciência.

Pois essa, dá-me a possbilidade de tentar ser uma melhor pessoa, de crescer e adquirir sabedoria, mesmo que, para tal, tenha, eventualmente, de sofrer.

Duvido que houvesse felicidade se não soubessemos o que era o sofrimento. Um contra-peso...
Muitas vezes há um preço a pagar pela consciência. E eu estou disposta a pagar esse preço, sempre que seja necessário.

Pois, ao estado de consciência não está só inerente o sofrimento, mas tambem a possibilidade de usufruir das coisas boas da vida. E dessas, não abdico.

Pois a consciência dá-nos uma arma fundamental: a possibilidade da mudança.

E esse é um direito que todos deviam ter...o de poder mudar, para se ser feliz.

Infelizes os que vivem fechados e limitados pela não-consciência e, desta forma não dispõem de meios para mudar.

Alheamento?...nunca.
Loucura?....às vezes...sem dúvida.
Mas uma loucura consciente.
Ou não...desde que depois me seja permitido voltar a um estado de consciência e assim, crescer enquanto pessoa.

E já ando em looping

Que coisa Rui...só fazes perguntas complicadas...

E ainda bem...

________________________

Maria Liberdade disse...

"Oui, c' est la folie!"

Acho que tudo depende da consciência e da solidão.

Conheço uma história feliz de um louco, o que me dá a noção que às vezes não é fácil recuperar da loucura. E voltando a recuperar, voltar a conviver com aquilo que nos levou à loucura, sem aí voltarmos a cair.

Depois há ainda tudo o que fizemos enquanto estavámos loucos, que conscientes não conseguimos (nem nos deixam) esquecer..

Anónimo disse...

Obrigado pela tua visita, ajudaste-me muito. Vou-me informar sobre esses sitio. Parece-me agradável.
bejokas

Mipo disse...

se perdemos consciência para a solidão, perdemos para tudo o resto; continuamos a existir, mas vivemos menos.

Apesar disso, ainda bem que não posso escolher. Não tenho dúvidas de que haveria momentos em que não resistiria à tentação.

Vanessa disse...

Pior que a própria solidão...não me parece que fizesse diferença qualquer que fosse a opção.

Optaria por não escolher (subscrevendo o comentário do X). Ou partia antes, ou simplesmente, deixava fluir...

Jinhitos
VF

Marta disse...

pergunta dificil...talvez "viver sem ter a consciência do que nos rodeia"...até pq ja vivo assim...no md dos sonhos e dos contos de fadas. :)
bjs****

Anónimo disse...

Olá. Primeiro k td agradeço a visita e espero k se repita.
Qt ao k escreveste no meu comentário, o amor ficou com eles ñ partiu tmb com o avião. Manteve-se... Ou talvez ñ...
O teu post...
Sim, ela não está sozinha, o seu mundo é habitado.
A solidão é criada por nós...
Um sorriso =D e uns bjinhos

Raquel Vasconcelos disse...

É difícil de escolher... Por vezes os simplórios desta vida não se chateiam tanto... desses tenho muitas vezes inveja...
E os loucos já não sofrem... mas a longa caminhada para lá chegar é tenebrosa.

Mil vezes a solidão consciente... ou a insanidade vegetal.


Bom texto!

Margarida Atheling disse...

Sinceramente... não sei! Gostava de nunca ter que me ver obrigada a encarar a escolher.

Tão triste...

Sukie disse...

Não gosto nada da solidão. Ás vezes sabe bem, mas sempre é uma tortura...