quinta-feira, maio 29, 2008

A Solução

(o texto que se segue, começou por ser um comentário ao post de dia 27 de Maio, do Eyes Wide Open)

Apetecia tanto a Carmelinda ir dar mais uma aula de Química, como lhe apetecia partir uma perna em três lados e estar seis meses sem se mexer. Encostada ao umbral da porta das traseiras da sala de professores, atirou a beata para longe e exalou o produto da combustão do SG Gigante. O terceiro período estava próximo do fim e ainda chovia com frequência. Isso aborrecia-a verdadeiramente. Isso e ter de ir dar mais uma aula de Química.
Pegou numa pilha de livros e folhas soltas, na mala e olhou-se no reflexo que o vidro da porta de um móvel lhe ofereceu. Estava a precisar de ir ao cabeleireiro. E de uma massagem facial. E de arranjar paciência e tempo para se maquilhar, por pouco que fosse – um nadinha, só mesmo para realçar... qualquer coisa. E estava a precisar de deixar de fumar. E de dormir mais. E de comer melhor, que ninguém se alimenta apenas de iogurtes e queijo fresco e sopas de pacote. E estava também a precisar de férias. Muitas férias. Férias longe dali. Onde houvesse muito sol. Onde ninguém a conhecesse. Onde lhe fossem levar bebidas exóticas e fruta e marisco à espreguiçadeira, onde ela, estendida à beira de um mar azul-turquesa, se curaria de todos os seus padecimentos.

– Estás bem?

Quando focou de novo o olhar no vidro, surpreendeu-se a sorrir, com cara de quem estava feliz. E ela não estava feliz.

– Carmelinda… – uma colega olhava-a com cara de caso.

Atirou-lhe beijos e acenou como que a dizer que não era nada e já estava atrasada. Saiu para a chuva. Não quis saber. Foi a passo. Talvez servisse para lhe aclarar as ideias ou, não pedindo tanto, que a despertasse o suficiente para que os alunos não percebessem o seu desanimo e falta de pachorra.
Entrou na sala de aula, atirou os papéis para cima da secretária e sentou-se. Ainda tinha cinco minutos para queimar. Tomou duas notas mentais: nunca chegar à sala antes dos alunos; nunca ter minutos só para si – não mais que aqueles que já tem em casa.
Levantou-se. Com um pequeno pau de giz azul, desenhou uma flor no quadro. Um malmequer. Bateu com a ponta do giz dentro de uma pétala, “mal me quer”, depois noutra pétala, “bem me quer”, “mal me quer”, “bem me quer”… Não precisou chegar ao fim para saber o veredicto. Pegou na mala. Precisava de um cigarro. Sujou a mala de giz e disse uma asneira, bem alto. Reparou que a saia, originalmente preta, estava agora coberta por uma fina camada de pó branco. Ia repetir a asneira, mas interrompeu a palavra a meio. Com os braços afastados para não sujar mais nada, sem saber o que fazer às mãos, andou de um lado para o outro, passos pequenos e desajeitados. Só parou quando deu um pontapé na parte lateral da secretária. Aleijou o pé e a dor acalmou-a.
Sacudiu as mãos e tirou um cigarro. Fumou na janela, encostada ao vidro. Continuava a cair uma chuva fina, irritante. E o verão quase a chegar. Atirou a beata para longe, quando ouviu os alunos à porta. Voltou à secretária e uma aluna chamou-lhe a atenção para a saia suja. Encolheu os ombros e apagou a flor, lentamente, deixando que o ruído se dissipasse por si. Não tinha pressa.


– Quem é que me sabe dizer como se chamam as substâncias que não se dissolvem em água? – gostava de começar as suas aulas assim, não revelando algo mas, ao invés, suscitando uma dúvida; partir da ignorância e, através da discussão, do pensamento lógico, do raciocínio, chegar a uma resposta – ou a uma hipótese de solução, que em ciência há ainda muita coisa a carecer de definitividade. Aquele dia estava longe de ser o seu, mas fez um esforço.
Tinha-se tornado professora por vocação. Desde sempre que o queria ser. Nos primeiros anos, o que mais tinha era paciência para os miúdos. Divertia-se com as aulas, com a sua preparação e nunca se cansava, tal era o gosto com que ensinava. Mas há já vários anos que não era assim. Algures no tempo, tinha-se cansado. Primeiro da escola, depois de tudo o resto. Parecia-lhe que a única coisa que conseguia sentir, era fastio.


– Hidrofóbicas – a palavra pareceu ter sido proferida a medo, numa voz desprovida de timbre e calor. Era apenas som e nada mais. Henrique era, de longe, o melhor aluno, mas também o mais apagado – no inicio do ano lectivo, ela tinha-se interrogado sobre se ambas as coisas estariam relacionadas, mas depois, desinteressou-se.
– Por sua vez, as substâncias que se dissolvem, são… Henrique…
– Hidrofílicas.
– Pois são. Hoje vamos falar delas e vamos ver uns casos práticos – sentou-se no tampo da mesa e começou a dar aos pés. – Mas antes, queria que me dessem exemplos de substâncias hidrofílicas.
– O cloreto de só…
– Sem ser o Henrique – interrompeu ela. Ninguém sabia. – Quando a vossa mãe está a fazer sopa, por exemplo, e coloca sal na água, o que é que acontece ao sal?
– A minha mãe não sabe fazer sopa – ouviu-se. Todos se riram.
– O sal desaparece – respondeu uma rapariga com um aparelho azul nos dentes.
– E que outro nome tem o sal?... Alguém?... Cloreto de sódio…

Explicou conceitos como solução, solvente, solvatação, falou sobre as forças de atracção a nível molecular e sobre reacções ácido-base. Tudo em termos e numa velocidade, que não permitiu aos alunos apreender nada. Tinha consciência disso, mas não quis saber. Voltaria à matéria numa outra altura, num outro dia.
Dispôs na mesa vários recipientes e um jarro com água.


– Vamos fazer algumas experiências com soluções aquosas – alguns alunos levantaram-se. – Depois de apontarem as regras simples que permitem determinar a solubilidade em água, que vou escrever no quadro, calma.
Perante o olhar curioso da maioria dos alunos, misturou algo na água e agitou ligeiramente. Escreveu depois, apressadamente, várias frases e símbolos químicos no quadro.
Enquanto a turma se demorava a tentar decifrar a sua letra, dirigiu-se à janela. Lá fora, as sombras tinham-se alongado um pouco mais. Reconheceu na agitação das folhas das árvores o vento frio que tinha chegado no ano passado e teimava em não se ir embora. Sentiu que estava à sua espera.
Deu um passo atrás e voltou a encontrar-se no reflexo do vidro. Os olhos pareciam não estarem lá, de tão afundados na cara macilenta e pálida.


– Sôtora, aquilo ali é sulfeto ou sulfato?
– Sulfato. E, já agora, podes explicar aos teus colegas o que é um sulfato.
– Assim, não vale… – queixou-se a aluna.

A resposta não interessava e não a escutou. No vidro, tinha aparecido a espreguiçadeira e o mar azul-turquesa de há pouco. Sorriu brevemente, até ter reparardo que a espreguiçadeira estava vazia. Procurou por si naquela paisagem idílica, mas o que viu foi o rosto de Henrique, reflectido por cima do seu ombro.


– Está bem?
– Eu? – demorou a perceber a pergunta. Olhou de novo para o vidro. – Estou óptima. Nunca estive melhor… Vá, senta-te. – Sacudiu as mãos e depois a saia, sujando-a ainda mais. – Que horas são?
– Não são as que deviam ser – todos riram.

Voltou a olhar para o vidro. Concluiu que a pessoa da espreguiçadeira não poderia ser ela. Quem quer que fosse, já tinha curado as suas mazelas e partido.


– E agora, sôtora, o que fazemos a seguir?

Boa pergunta. Fazer o quê, a seguir?


– Vamos à procura da resposta! O primeiro passo já o demos, que foi colocar a questão – falava depressa, com ânimo, virada para a janela. – Agora, temos de optar, por muito que nos custe. Temos que nos convencer que não conseguimos ter tudo, não é? – toda a turma olhava para a rua, à procura de algo ou de alguém; uns encolhiam os ombros, outros esticavam o pescoço. – Temos que ser lógicos, raciocinar. Encontrar uma hipótese a que nos agarremos com unhas e dentes, a algo que nos impeça de ir ao fundo – fez-se silêncio. Depois, disse: – Acho que sim…
– A sôtora passou-se…
– Meninos, meninos, está quase na hora da saída e ainda não fizemos nada – bateu as palmas e uma pequena nuvem branca ergueu-se no ar. – Vamos lá falar das soluções aquosas – de volta à secretária, por entre os papéis e recipientes, procurou a mistura que tinha feito. – Esta agora! Onde é que está a solução?
– Mesmo debaixo do seu nariz – respondeu a turma em coro.

boomp3.com

24 comentários:

Anónimo disse...

algo que nos impeça de ir ao fundo

mas onde é que está essa solução?

Azul disse...

Olá Rui. Por deficiência da minha net, que não me permitiu há horas atrás comentar devidamente o texto anterior, começo por ele. Pensava que o ritmo do texto que se joga no jogo que relata, me energizou muito e, é claro, me transportou para um lugar escondido (que não tinha visto ainda!) de esperança num resultado semelhante para a nossa selecção nacional. Não ando nada animada com eles, sabe? Mas, dá-me a impressão que é geral! lol

Quanto a este pedaço de prosa, devo dizer-lhe que o apreciei uma vez mais, enquanto pedaço de escrita escorreita e bem colocada que consegue ter. Para onde ele me transporta? para lugares, pelos vistos comuns: de um certo esmorecimento de forças, onde se pede ao menos, que faça sol, porque jé está em época há muito!!

Bela homenagem leio aqui aos professores, tal maltratadozinhos que são neste país á beira mar plantado!

Um abraço. até breve. Azul.

JPD disse...

Olá Rui

Há uma brincadeira que se faz que é a de, imagina tu de férias com mais três amigos. No Algarve, por exemplo.

Nos grupos, sem diminuir seja quem for, há sempre quem seja o mais ingénuo. Para se defender, o grupo estabele rotinas e rotatividade de tarefas. Cozinhar o jantar, por exemplo.

Quando isso acontece, no primeiro dia -- nessa altura o voluntariado é mais acentuado e quase não ha espírito crítico -- pede-se ao mais inocente que não deixe de lavar o sal antes de o colocar na panela. «Mas lavar bem. Ninguem quer cá porcaria!...» -- e ele, sem se interrogar, lava!

O texto está muito bom.

A ponderação entre obrigação e evasão está óptima!

Um abração

lélé disse...

Às vezes é mesmo assim! A solução está logo ali, ao nosso alcance, mas insistimos em procurá-la no paraíso perdido!...
A história está, como sempre, muito bem contada e recheada de emoções. Muito boa de ler.

Maria Liberdade disse...

Não acredito nas soluções mesmo ali... se ali estivessem já teriamos dado por elas.

Coisa diferente é soluções a que antes não olhariamos e a que passámos a dar importância por outras soluções falharem. Segundas escolhas não soluções, são aceitar que não se pode ter melhor e seguir nossa vida.

Carla disse...

fabuloso como consegues criar situações que nos levam até à estrada dos nossos sentimentos
beijos e bom fim de semana

dona tela disse...

Sinceramente, acha que o meu blog é pimba?

Muitos cumprimentos.

~pi disse...

solvatação

/solva salva salga

apagar as flores.

soprar-se velas tempo

flores de giz



saia

// que saia

arder

arde

ar de

que



~

~pi disse...

ah... e nada:

hidrofóbica hidrofíbica:

nado :)

Leonor disse...

as soluções são sempre soluções. debaixo do nosso nariz ou no canto mais remoto do planeta, ou mesmo fora dele

scaramouche disse...

:)

gostei.

scaramouche.

Lyra disse...

Espaços que se cruzam,
palavras que se encaixam,
sorrisos imaginários que se entrelaçam,
confidências que se armazenam.
Assim nascem as amizades virtuais...

Obrigada pela tua!

Adoro ler tudo o que escreves!

Beijinhos e até breve.

;O)

Maria Laura disse...

Pois é, Rui, passamos a vida à procura da solução e ela está debaixo do nosso nariz.
Óptimo texto, retrato de uma vida descolorida à procura da cor.

Alberto Oliveira disse...

... baixou os olhos. De facto, no meio de muita papelada e materiais diversos, lá estava ela: a Solução. Reconheceu-a porque se anunciava em caracteres bem diferentes dos outros dispersos pela secretária e a negrito. Se estivera sempre ali, não o poderia afirmar de fonte segura, porque há Soluções que são danadas por andar a cirandar de aula em aula, de corredor em corredor, de cantina em ginásio ou manuscrita a marcador na palma da mão de um aluno. De qualquer modo, esta Solução, não era aquela que conhecia da maioria dos manuais escolares -não sabendo por isso, se era a que mais convinha à turma em coro. Era uma Solução diversa de todas as que até ali (re)conhecera, e que teria de aprender a conviver com ela se pretendia partilhá-la com os seus alunos.
Ergueu novamente os olhos para a turma em coro "Meninos, meninos, esta nova Solução pode dar um óptimo desafio! quem quer ficar na baliza? e a trinco? há alguém para ponta-de-lança?"
Nunca uma Solução, levou tanto pontapé e cabeçada...

segurademim disse...

isto quando o fastio ataca ...
não há solução que nos valha! nem férias, nem paraísos...

é mudar de vida, antes que a vida nos mude!! não é fácil... mas é possível

tem que ser

[ já não gosta de dar aulas? vá para a industria hoteleira!!
a espreguiçadeira está sempre no horizonte
e depois... há para aí tanta gente com talento à espera de uma vaga!! ]

un dress disse...

e maquilhar-se sim:

re al çar

um a um

o compósito interno:

na pele mais visível dos

sul fatos @





beijO

Hoje sem amanhã disse...

Olá
gostei mesmo muito :)

bjs

tb disse...

De facto a solução pode passar por ler-te :)))
Como sempre, bom viajar pelas tuas palavras.
Beijo

Eyes wide open disse...

:-)


essa tua imaginação...



*

dona tela disse...

Haja alegria por aqui também.

Olinda disse...

Eu também digo, em coro, quero mais. :-)

Cristina Costa disse...

Olá.

Tropecei agora mesmo no seu Blog e tenho estado a lê-lo com calma, q n tenho pressa nenhuma.
Gostei mto, entre outros, do texto da miuda q queria q o avô continuasse a fazer anos (acredito q as crianças percebem MTO mais do q julgamos, têm é formas diferentes de espelhar o q tb nós sentimos), mas li este aqui da professora e desiludi-me. O final é mais oco q a personagem, esperava mais da escrita em si, do corpo dela, deu a sensação de estarmos a comer um corneto e no final do cone n está lá o chocolate.
Reparei num pormenor de ouro.
A musica.
Mto bem escolhida !!! Tenho de descobrir quem a canta.
"I ran, Iiiiii rannn" (- A professora bem queria coitada, mas ficar a mastigar frustrações em vez de se lançar ao abismo do desconhecido é mto mais confortável)
Mas gostei do seu cantinho virtual, tomei a liberdade de colocar o link no meu Blog, espero q não se incomode.

Cumprimentos

Vanda disse...

:) ou de não nos deixarmos dissolver pelas águas da vida :)


Adoro as tuas histórias, Rui! :) ainda bem que ainda tens muitas paginas em branco! :-D são promessas de muitas e novas histórias! :)

Gi disse...

falar de pó branco e "debaixo do seu nariz" confesso que me deixou confusa. Pensei que para além do SG gigante (bom gosto na escolha :) ) tivesse mais algum vício.

Brincadeira à parte...

Solução só não existe para a morte, procura-se em tanto lado e ela sempre tão perto. Mais do que "debaixo do nariz" eu diria que dentro de nós. Ela está lá, não a sabemos é procurar ...

Um beijinho, adorei a forma como deste cor a esta vida que me parece tão cinzenta