segunda-feira, março 24, 2008

O Estojo (3)

A cerimónia foi marcada para um final de manhã de Maio, que calhou quente e caótico. Encostado a uma parede, mesmo por baixo de uma saída de ar condicionado, Joaquim reflectia sobre a possibilidade de todos os casais solteiros de Lisboa e arredores terem escolhido aquele dia para contrair matrimónio. Era tanta a confusão de noivos e convidados, que pareciam estar ali todos reunidos para um grande casamento em conjunto.
Um homem com um grande bigode e uma proeminente barriga, de casaco de camurça castanho pendurado no braço e a abanar-se com a ponta da gravata, veio encostar-se à parede, perto dele. A sua camisa azul clara era agora azul escura, das manchas de suor. O homem olhou para cima e abanou a cabeça com pesar: dali não viria alivio para os seus padecimentos, o ar condicionado ou estava desligado ou cansado demais para fazer alguma diferença num dia como aquele.


– Os padres estão lixados – disse ele a Joaquim. – Já ninguém casa pela igreja. É bem-feita, quero é que eles se lixem – não obteve resposta.

Por entre a confusão de fatos escuros, vestidos de folhos com motivos florais e crianças transformadas em adultos miniatura, que corriam em todas as direcções, Joaquim, de sorriso e pescoço esticados, espreitava um carro parado à porta da Conservatória.
O ruído era quase ensurdecedor. Havia quem chamasse pelos padrinhos, havia quem procurasse crianças extraviadas, havia quem chorasse e miúdos que gritavam a plenos pulmões, só pelo prazer de gritar.


– Grande ajuntamento, hein? Isto parece aquela coisa dos casamentos de Santo António, não parece? – perguntou o homem, dando-lhe um toque com o cotovelo.
– Não, não parece – Joaquim sorria, mas tinha cara de poucos amigos. – Esses são na igreja – e foi ter com o sogro, que tinha vindo também espreitar o carro.
– Que chatice, isto… – o olhar do noivo tinha já petrificado por completo.
– Quando é que vamos ter a sala livre? Ainda falta muito para o casamento acabar? – o sogro estava visivelmente zangado.
– Atrasou… sabe como são estas coisas…
– O que eu sei é que a Deolinda deve estar a assar como um leitão, dentro do carro. Devíamos ter chegado atrasados, como manda a lei.

Joaquim ia corrigi-lo, dizendo que ela estaria a assar como uma leitoa, mas um súbito nó nas tripas interrompeu-lhe a frase: nunca mais se tinha lembrado dos avós.

(continua)



boomp3.com


18 comentários:

Campainha disse...

Fantástico! Li os 3 episódios da história e vou seguramente voltar para ler o resto!
Obrigada pela visita. Volta sempre.

Campainha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

leitoa? :P

lélé disse...

Esqueceu-se do anel, esqueceu-se dos avós (leitões?!)... Supostamente o casamento é um acontecimento alegre, mas esse, de alegre parece ter pouco! Talvez depois do "sim" corra "alegrete"?

Lyra disse...

Voltarei, certamente, para ler "O Estojo (4)", porque não quero, de todo, perder pitada1
Até breve e obrigada pela simpática visita ao meu...caos
:O)

Azul disse...

Olá Rui. POis, olhe que isto dos nós, já estou como você diz, não é fácil não senhor. Contudo, quer-me cá parecer que o seu jeito p'a coisa é muito melhor que o meu, que para escrever com graça nao me ajeito nada bem. Gostei muito desta sua série dos estojos, com tudo o que eles lá têm dentro.Fez-me rir com gosto. Obrigada.

Grata pela sua visita ao meu blog marginal - o amarelo. O humor não parece ser o meu talento. Resta-me tentar mais não é?

Um beijo para si. Até breve. Azul.

Titá disse...

Saber escrever é uma arte, mas saber escrever com humor, provocar risos e gargalhadas a quem o lê, é um dom.

Parabéns.

Gosto de o ler...divirto-me

Beijo

Azul disse...

Olá again. POis, escrever o que me apetece é o que eu faço. Obrigada pela sua simpatia.
Olhe, já agora visite o blog que lhe deixo aqui. É de um amigo, quan quanto a escrever com graça, tem mais jeito do que eu. Vai ver que vai gostar. Apareça por lá.

www.boodega.blogspot.com

Um abraço. Até breve. Azul.

vieira calado disse...

E se fosse agora...
Com o que tem que pagar ao fisco, mais o que cobra o padre...
Livra!
Um abraço

Devaneante disse...

Vou ficar em suspenso à espera do próximo estojo...

Não há dúvida, isto de escrever às "postas" é uma grande maldade para quem lê... ;-)

Alberto Oliveira disse...

... estava eu a começar a vestir-me informalmente quando ouvi esta música maluca! Pensei cá para comigo "querem ver que me esqueci de qualquer coisa?". Claro que sim. Que tinha sido convidado para o casamento do Jaquim (meu amigo de sempre, que fez a tropa comigo no Regimento de Autotanques Blindados no Quartel do Magoito e ambos praticantes de hóquei sem patins no Juventude de Relvas) e -quem sabe! talvez para me aguçar o apetite e sabendo dos meus gostos culinários, prometeu que no copo de água haveria... vinho e leitões da Bairrada! E eu ainda aqui e com a barba por desfazer... esquecido do caraças!! Mas como já sou conhecido pelos atrasos... lá vou eu. Ah! e ouvir mais um pedaço dessa música que me fez lembrar o casório...

Leonor disse...

escrever (e bem) por capítulos tem destas coisas... deixa-nos curiosos com o desfecho deste matrimónio e obriga-nos a voltar (em breve, espero) para saber notícias do casal...

bom resto de semana

Anjo De Cor disse...

Rui, tens uma chuva de prémios para ti no meu blog, bem merecidos ;)
Continuo com pouco tempo... tenho que voltar para deixar de leer na diagonal.
Bjs
SS

Leonor disse...

Eu nem sempre comento, mas queria dizer-te que gosto tanto de te ler ... beijinhos...

Eyes wide open disse...

lol

e que não se esqueçam de guardar todas as facturinhas...


*

un dress disse...

dureza e dureza

suores a congelar:


matrimonial

conservadorial


o que não haverá de impedir

o esquecimento dos

avós...




...

segurademim disse...

... talvez os velhotes tenham trocado de casório

Gi disse...

Ah, deste lembro-me bem, que coisa! Não comentei?

até ao nº 4

isto assim de enfiada é giro