quinta-feira, março 09, 2006

Um Momento de Raiva

Arnaldo Faneca era um conformado. Sempre o fora.
De tão apagado, tornava-se quase transparente. Nunca era assunto de conversa entre os seus conhecidos - que amigos não tinha. Fosse ele um dia, por hipótese, o tema de conversa e ninguém seria capaz de dizer que se caracterizava por ser um rebelde, por protestar, por se manifestar. Não, Arnaldo era até conhecido pelo oposto: solitário, não levantava ondas, não questionava nada, nunca se zangava.
Basicamente, não se dava por ele.

Quer dizer, dar até dava, mas por outras razões. Sendo funcionário publico e estando a conjuntura pouco favorável à classe, Arnaldo sobressaía quando era o único a não aderir às greves.
Bem vistas as coisas, nestas ocasiões, ele até era tema de conversa entre os colegas. Sacana e cabrão eram os termos mais simpáticos com que o mimoseavam.
O que ninguém imaginava, é que, pasme-se, Arnaldo não aderia às greves por inconformismo! Achava que se todos faziam, ele devia ser do contra e não aderir. Não gostava de seguir a carneirada mole, como chamava aos que não pensavam por si. É que ele, Arnaldo Faneca - detestava o nome -, ao contrário dos seus colegas, considerava-se uma pessoa esclarecida, informada e com sentido crítico. Só não o demonstrava, paciência.

Aos poucos, foi-se cansando da sua imagem e da troça dos colegas nas suas costas. Revoltou-se.
Era verão, inicio de tarde, um calor abrasador – no seu diário, irá escrever, dias depois, que sentiu “o miolo fritar”.
Tinha aproveitado a hora de almoço para ir à loja da TMN da Avenida da República, para que lhe desbloqueassem o telemóvel (como não o usava por não ter a quem ligar, tinha-se esquecido do PIN).
Tirou a senha 85; no mostrador, que indica o número em que vai o atendimento, piscava o 71; ar condicionado avariado, respirava-se com dificuldade. Meia hora depois, apenas duas pessoas tinham sido atendidas. Começou a sufocar.
Os miúdos que faziam o atendimento pareciam mais preocupados em estar na galhofa uns com os outros do que em despachar as pessoas.
Quando um cliente saiu e o rapaz que o atendeu se pôs ao telefone em vez de chamar a pessoa seguinte, saltou a tampa ao Arnaldo. Atirou com o telemóvel ao mostrador – errando o alvo, mas estilhaçando o Nokia em mil pedaços, tendo um deles ido cravar-se no sobrolho da cliente 80. – e chamou filho da puta, individualmente e de dedo apontado à cara, a cada um dos empregados da loja.
Depois, virando-se para os estupefactos clientes – agora encostados a um canto, com medo dele -, berrou: Foda-se, cansei… querem inconformismo? Pois é isso que vão ter a partir de agora! Aqui o Arnaldo Fan… (engoliu em seco) vai passar a por a boca no trombone e a chamar os bois pelos nomes…

Ia dizer mais qualquer coisa, mas sentiu uma dor muito forte nos rins que o forçou a dobrar-se para a frente. Atrás dele, o segurança da loja, franzino e de aspecto juvenil, com uma barba mal semeada e por fazer (contrariando, assim, o regulamento interno da Prosegur), tinha-lhe dado um soco ao fundo das costas que o paralisou – um truque aprendido nas Galinheiras e que já o tinha safo de alguns apertos.
Salta de trás do balcão o empregado que se tinha posto ao telefone há pouco, e espeta uma tal biqueirada no flanco do Arnaldo, que lhe colapsa duas costelas contra a pleura. Chama lá nomes agora, pá…

Mas o Arnaldo já não consegue dizer nada, arfa cheio de dores, procurando desesperadamente levar oxigénio até aos pulmões.
Pobre diabo, até uma velhota que tinha entrado na loja no preciso momento em que ele se tinha posto aos berros, e que não sabe o que se passa, lhe baixa o sarrafo umas quantas vezes na cabeça. Seu animal, vir para aqui assaltar as pessoas… toma… toma… desgraçado…

Todo partido, na ambulância a caminho de Santa Maria, ia o Arnaldo a pensar que isto de ser subversivo fazia mal à saúde.

30 comentários:

Susie disse...

Passei aqui via (alicemoraqui). E gostei muito. Dificil é parar de ler.

Susie

Anónimo disse...

Passei para te deixar 1 Beijinho e saberes que mesmo no deixando na maioria das xs comentário, estou por aqui... sempre a leer os teus excelentes textos :-) Jaqui

Anónimo disse...

Ora pois muito bem...sei como é isso! Não do jeito que descreveste mas quase...recentemente algo semelhante me aconteceu e deu uma reviravolta no meu emprego e na minha vida amorosa...explodi pk me fartei de ser paciente, de esperar e ver as coisas a bem resolvidas. É do pior! É algo que tenho que aprender que é aos poucos combater um certo inconformismo e dizer aquilo que sinto que está mal. Beijos

Anónimo disse...

looooooool... Wayne's Wooorlddd ;)

LD

Vanda disse...

Ah Faneca !!!!! :))

Amanha volto...nao me desiludas!!

Cá para mim esse gajo tem uma vida dupla e escaldante :)

Beijo não subversivo !

Anónimo disse...

É que nem duvides, faz mesmo mal à saúde :)

CS disse...

Ó Faneca, és um coninhas!

(Isto é só para ver se ele se anima e amanhã há mais molho...)

Rui, já te disse que curto muito a tua escrita? Ainda não, pois não?

virilão disse...

O faneca é "fura"?!?!?
Devia ter levado mais...ó Rui queres que eu dê um toque aos gajos dos super dragões, para aviarem o gajo?

Vanda disse...

...E alguma vez eu permitiria que a terrivel e ameaçadora -por tão precoce- senilidade me roubasse algum desses momentos ?? :)

Rui, estão cá todos guardados...
E sinto que são eles que me movem quando todo o mundo espera que eu pare...quando todos à minha volta esperam a derrocada final...

Não. Não os perco dentro de mim, nem por nada :)

Beijo de noite feliz!

Anónimo disse...

Então e a menina ( cliente 80 ) que levou um pedaço no sobrolho, era gira? tem foto?

Dani disse...

Subversivo? Subversivo era o Faneca ter saltado para cima do balcão e dançar o can-can, já que os empregados parecia estar ali apenas para se divertir! :)

Susie disse...

Rui, a exposição ainda não tem digressão marcada. Mas, devia. Se quiseres ter um "cheirinho" do que vais perder: www.loucomotiva.com

Vale mesmo a pena!

isabel disse...

Muito bom, muito bom :), o sr. arnaldo faneca!!!
Gostei imenso do final não estava á espera dele, consegues sempre surprender-me e fazer-me ter uma emoção forte, neste caso ri-me e fiquei bem disposta.

Bom fim de semana
Beijinhos

Anónimo disse...

K retrato tão lindo =P
Bom fim de semana com sorrisos q.b
Beijitos

Sofia disse...

Coitado do Arnaldo!

bjs

919 disse...

O sol, quando nasce, é pra todos e quando frita miolos, também não os frita só a uns!...

Martini_Lady disse...

Bem, é ponto assente... ganhaste mais uma leitora.
Já agora aproveito para te informar que lancei-te um desafio no meu blog. Espero que o aceites.
Bom fds
:-***

nqdn disse...

Há mais coisas que fazem mas à saúde...
Um abraço.
http://singular.blogs.sapo.pt/
http://calinadas.blog.pt/
http://racionalidades.blogspot.com/

Alberto Oliveira disse...

Arnaldo é um pouco o retrato de muito boa gente que vai engolindo, engolindo e chega um dia explode. Nunca se deve chegar a este ponto, como a tua história demonstra; pode-se morrer mais cedo, do que a esperança de vida anuncia...

th disse...

Eu revi-me um pouco neste Arnaldo, tambám eu sou às vezes "estoica" a aguentar certas situações...e depois rebento por onde menos se espara, mas estou a melhorar, já consigo ter um blog onde refilo (o Ras-te-parta) e já desabafo de imediato quando necessário. Quanto à minha opinião...referes-te à cerimónia ou aos filmes? um dia destes eu falo dos filmes que já vi: Munique, Capote, Memórias de uma gueixa, Transamérica, O fiel jardineiro...ainda me faltam 3 ou 4. Mas não é que eu não gosto nada de fazer críticas! e nem sei lá muito bem fazê-las. Depois se verá. Um abraço Rui, gosto muito das tuas histórias, e me parecem estar alguma coisa na linha das minhas...lol
th

segurademim disse...

Também gosto de fanecas fritas com arroz de tomate! toma, toma, deram-lhe o arroz?? bem feito! para não ser burro! o refilanço tem as suas regras!...

bom fim-de-semana ;)

Anónimo disse...

"A amizade é como um navio no horizonte.
Nós o vemos, cortando contra o céu,
e em seguida ele avança, desaparece de vista,
mas isto não significa que não continuará.
Essa amizade é linear.
Ela se move em todas as direções,
nos ensinando sobre nós mesmos
e sobre cada um de nós.
É por isso que no transcurso de fortes amizades,
estaremos presentes um para o outro ,
mesmo que, nem sempre,
estejamos visíveis."

CS disse...

O Arnaldo Faneca tem de conhecer uma Gerturdes Garopa urgentemente!

hala_kazam disse...

vim aqui devido ao nome do teu blog...apena tinha conhecimento dos maleficios do tabaco... :)
foi uma agradavel supresa

*beijos*

Vanda disse...

Todos nós sabemos as longas filas de espera nas urgências de um qualquer hospital português...mas....Rui?...três dias numa ambulância? ;)

Despache-se, menino :)

Susie disse...

É um prazer, te-lo nas minhas paredes. Obrigada.

Margarida Atheling disse...

Coitado!!!
É perseguido pela fatalidade.
Faça o que fizer...

Anónimo disse...

Olha que bem!!..
E eu que não sabia que esses dias que tenho às vezes… (que nem sei o que lhes hei-de chamar) eram os dias da “faneca”!!
Quiçá do “fanico”?… ;)
(qual deles mais abixanado, lol)

Olha… gostei!
Acho que só faltou mesmo o tal do can-can, para eu também ter, quase, quase… uma emoção forte! ;)

Beijo
Inês

P.S.- Venha de lá o arroz de feijão… que eu, por acaso, até dispenso as fanecas!! : P

Vanda disse...

OH Rui :) e eu a pensar no Faneca ;)

Sara MM disse...

pelo menos deixou de ser trasparente, e teve mesmo de ser um SP* bem sólido por uns minutos da sua vida :o)

* saco de porrada

BJs