quinta-feira, março 30, 2006

O Olhar de Arminda (IX)

Oudezijds Voorburgwal é, talvez, a principal artéria do famigerado bairro da luz vermelha em Amesterdão. No único tempo disponível da minha viagem de trabalho à cidade - um final de tarde e noite em três dias ali passados -, acabei, sem saber bem como, por lá ir ter.
Foi apenas há pouco tempo atrás, no início de Março mas, ao escrever este texto, parece-me que tudo se passou há alguns anos, tal a intensidade dos sentimentos vividos.

Sou historiador de arte e vim participar numa conferência integrada na comemoração dos 400 anos do nascimento de Rembrandt, que se comemoram ao longo de todo o ano de 2006.
Vim a pé desde a Universidade de Amesterdão e dei por mim em pleno Red Light District, que é tal e qual aquilo que sempre tinha ouvido dizer: raparigas de todos os tamanhos, cores e feitios, em trajes mínimos, atrás de janelas ou portas envidraçadas, convidam com um sorriso o/a cliente a entrar.
A iluminação é vermelha, claro, e, em muitos casos, a cama fica logo ali, basta correr a cortina.
Tentei não olhar ostensivamente, o que é deveras uma preocupação sui generis num local daqueles, em que se está rodeado de de sex-shops, casas que oferecem sexo ao vivo e coffee-shops, onde se podem fumar drogas leves.
Ali, ser voyeur é ser menino de coro.

O nome do café e alguma fome, fizeram-me entrar. A decoração do Art & Language Café remete para um ambiente algo esotérico e misterioso. Várias pinturas representando figuras femininas aladas, dominam as paredes. Alguns trabalhos de autores pré-rafaelitas e várias estantes com livros e revistas completavam a decoração do local. A luz era apenas a suficiente para permitir a leitura e, no ar, uma nuvem de fumo pairava por cima das nossas cabeças, libertando um aroma adocicado. Frank Zappa fazia as honras musicais, o que não deixava de ser um contraste com o ambiente do sítio.
Um quadro em particular, chamou-me a atenção: era uma rapariga, alada, vestida com uma espécie de túnica branca, sentada numa janela que mais parecia uma moldura. Parecia olhar para mim.
Enquanto o contemplava, uma mulher ergueu-se subitamente, ocultando-me o quadro. E ali ficou, à minha frente. Tinha o olhar preso em algo. Olhei em redor mas nada de estranho parecia estar a acontecer: uma empregada circulava pelas mesas e um velhote, curvado sobre si, recebia uma caixa junto ao balcão.
Não fosse o longo cabelo castanho, aquela seria uma típica mulher holandesa: alta, olhos azuis – ou seriam verdes? -, bem vestida, notava-se que, apesar de alguma idade, tinha cuidado consigo. Com certeza, faria inveja a muitas raparigas com metade da sua idade.

O velhote, segurando a caixa com ambas as mãos, percorreu toda a extensão do balcão e preparava-se para sair quando a mulher, colocando-se à sua frente, o abordou.

- Hebben voordien ontmoet wij?

O homem não olhou sequer para ela, tentou afastá-la com o braço e sair. Em tempos tinha tido uma estatura imponente, era notório mas, agora, idoso, o seu corpo seco e dobrado revelava-se fraco. Grunhiu algo que não se percebeu, em tom intimidatório, mas ela não se deixou impressionar e continuou a barrar-lhe o caminho. Por esta altura, todos os clientes do café observavam a cena.
Perante a insistência dela, questionando-o em holandês, o homem acabou por berrar-lhe: - Deixa-me passar!

Na altura não o percebi, aliás demorei algum tempo a tomar consciência disso, achei apenas ser uma grande coincidência estar num café em Amesterdão a assistir a uma discussão em que uma pessoa era portuguesa mas, na verdade, no momento em que aquela frase foi proferida e eu me interessei verdadeiramente pelo que se estava a passar, a minha vida mudou.
De alguma maneira, tudo o que viria a acontecer depois – e o que ainda está por suceder – veio a colocar-me bem no centro da vida de três pessoas que, conhecendo-se entre si, desconhecem a maneira como as suas vidas estão ligadas.
Sei de cada um e de todos, mais do que eles sabem dos outros e de si próprios. Sabendo eu isto, não sei o que faça.

A resposta do velhote perturbou-a, fê-la parar, por momentos, pareceu uma estátua, o olhar toldou-se, tornou-se frio, sem vida; a expressão fechou-se. Percebeu-se que já não tinha dúvidas.
Aproveitando esse momento de distracção dela, o homem saiu.

- És tu, não és? u ruïneerde mijn leven! – Gritou ela, já na rua.

Eu saí também, a curiosidade tinha tomado conta de mim.
Aquela pergunta em português, naquele tom de voz, fez o velho parar e voltar-se.

- Klootzak! Ik zou je moeten vermoorden! Eu sei que és tu! – Falava com sotaque.
- Sou eu, que conversa é essa?
- Já não me reconheces, passou-se assim tanto tempo? Para mim foi ontem!

O velho semicerrou os olhos e mirou-a de alto a baixo, com desprezo. Quando os seus olhos encontraram os dela, o desprezo passou a medo; estremeceu e engoliu em seco. Deu um passo atrás.

- Deixa-me, não sei quem és. – Gritou-lhe ele, voltando-lhe as costas.
- Hond! Tu sabes quem sou. Não vás…
- Larga-me, larga-me.
- Ik zal je! Ik zal je!

Ela tentava agredi-lo; chorava, a maquilhagem sujava-lhe o rosto. Foi então que decidi intervir, tentando separá-los.
Estou convencido que nem deram pela minha presença, que não chegaram a tomar consciência de que alguém os tentava afastar.
Foi uma sirene da Policia que acabou por pôr fim à situação. Num assomo de força, o velhote conseguiu libertar-se dela e afastar-se o mais depressa que pôde. Ela tentou segui-lo mas eu impedi-a. Ficou nos meus braços a soluçar, as forças tinham-na abandonado.

* * *

O que aconteceu de seguida vou contar o mais resumidamente possível: a Policia identificou-nos, deu-nos um sermão sobre regras de comportamento e deixou-nos ir. Voltámos ao café, onde Roxanne – assim se apresentou -, me contou a história da vida dela.
Fê-lo num único fôlego, como se sufocasse se o não fizesse depressa. Nunca ouvi tanta urgência, tanta necessidade na voz de alguém. Nunca levantou a cabeça, nunca tirou os olhos do tampo da mesa, não sabia nada de mim mas, naquelas horas em que conversámos, eu fui o seu confessor; comigo tentou expiar os seus pecados; em mim procurou absolvição.
Eu limitei-me a ouvi-la, outra coisa não podia – nem sabia – fazer. E isso bastou.

Contou-me como, após três dias escondida em várias quintas, um casal de idosos lhe deu refugio. Que Albertino, com outros homens, andaram a perguntar por ela. Que voltar à sua aldeia não era solução, visto ser descoberta com toda a certeza.
Ficou a viver nove meses com o casal. Ali, na quinta deles, foi como regressar à sua vida na aldeia, a uma vida calma, sem sobressaltos, ao trabalho no campo, ao contacto com os animais. E foi precisamente isso que, à medida que o tempo passava, a fez partir.
Os sonhos continuava a tê-los, as fotografias das revistas continuavam gravadas na sua memória. Tinha saído de casa em busca de um sonho e só tinha conseguido encontrar um pesadelo, mas agora era mais forte, sabia mais; era altura de voltar a tentar.
Com algum dinheiro emprestado pelo casal – que devolveu com juros assim que lhe foi possível, fez questão de me dizer -, partiu para Andorra. É que, enquanto fazia companhia aos homens na Bodeguita, manteve sempre os ouvidos abertos às conversas sobre negócios. Em Andorra, alguém como ela, ia dar-se bem… na prostituição.
Perante o meu espanto, explicou-me que tinha aprendido a não se enganar a si própria, que sabia de outra maneira nunca iria conseguir o que queria, mas que, vendendo o corpo, teria algumas chances.
Depressa se tornou atracção na maior casa de alterne do principado, mas que, meses depois, reconheceu vários dos clientes da antiga casa o que a obrigou a partir. Passou por Bordéus, Paris e, em meados dos anos oitenta, rumou a Amesterdão - era o que estava na moda, na altura – onde ainda vive. Fez muito dinheiro, é hoje, em vésperas de completar 50 anos, uma mulher rica.

Nunca mais voltou a Portugal. Continuou sempre a escrever à mãe e ainda hoje o faz - para evitar percalços, pediu durante alguns anos a clientes seus estrangeiros, que lhe colocassem os envelopes no correio dos países deles.
Que tinha saudades da aldeia e da sua mãe mas que, na verdade, nem sabia se a mãe ainda era viva, uma vez que nunca tinha dado a sua morada.

No avião de regresso a Lisboa, no dia seguinte, tornou-se claro para mim que havia algo que eu podia fazer.

27 comentários:

Rui disse...

Hebben voordien ontmoet wij? = não nos conhecemos?

u ruïneerde mijn leven! = arruinaste-me a vida

Klootzak! Ik zou je moeten vermoorden! = sacana devia matar-te

Hond = cão

Ik zal je! = vou-te dar

Atenção: trata-se de traduções com sentido aproximado, espero que estejam correctas.

Sofia disse...

:)))))

És o meu escritor predilecto! Cada vez mais. Surpreendes-me a cada post. Sempre positivamente. Continua, estou a adorar!

bjs

Anónimo disse...

Ohh homem... as voltas que tu dás! ;)
Ok, confesso... com esta surpreendeste-me!
(já devia de estar habituada :))))

Beijo

Inês

Isa disse...

tás a brincar comigo??? diz-me, diz-me que isto é uma história, que tens uma imaginação fora do normal. demais, demais. surpresa, surpresa. ADOREI! bjs

Mipo disse...

li os 9 olhares de enfiada! Muito bom! Fico à espera do 10.º!

Salseira disse...

Boa! Gosto imenso de ler os teus textos! Todos os dias, várias vezes por dia, cá venho eu ver se há mais algum episódio! :)

Dani disse...

Cheira-me que estou quase, quase a perceber, o que disses-te que mais tarde ía perceber! ;)

butterfly disse...

Vim deixar um beijinho e ler mais uma das tuas fantásticas histórias...agora aguardo...
Beijinhos!!

Martini_Lady disse...

Bem, tou sem palavras... os teus textos tão cada vez melhores.

E obrigada eu... palavras sábias são sempre boas de se "ouvir".

Bjnhs

919 disse...

Arminda versus Roxanne... só uma sairá viva, ou conseguirão ambas conviver em paz?

Anónimo disse...

Que vida triste... e nunca mais ver a mãe... para quê ficar rica, para levar uma vida destas?! Teria sido mais feliz se não se tivesse encantado pelas revistas estranjeiras.

th disse...

Ontem não consegui comentar, mandei-te um mail, não sei se recebeste.
Depois de ler tão incrível história, resolvi colocar-te um desafio...lol
Vai à Sebenta e logo verás, th

Anónimo disse...

Rui gostei muito, excelente!
Conheces-te esta mulher numa das tuas viagens a Amesterdão? ou ... é uma simples personagem ...
Bom fim de semana e + uma vez, gostei muito só tive pena que esta mulher mulher tivesse uma visão tão deturpada da felicidade, mas somos todos diferentes e cada um escolhe o seu caminho.
Beijinhos grandes da Jaqui.

Margarida Atheling disse...

Cheguei a pensar que ela tomaria outro rumo. Ingénua, eu!
Mas ainda é tempo. Nem é por moralismos, é porque a Roxane não é a Arlinda!

Bom fim-de-semana!

isabel disse...

Tenho tanta vergonha, estou atrasada em imensos capítulos, só li até ao três.
Hoje vou por a leitura em ordem, estou a fervilhar de curiosidade!

Beijinhos

e muitos parabéns pela excelente escrita

Sara MM disse...

não ando com psic para grandes leituras... ou leituras grandes... :o)
um dia ainda venho ler a Arminda do principio ao fim :o)
Por agora perdi-me............ sorry!

Isa e Luis disse...

Olá:)como sempre ficam as duvidas no ar:))mas agora eu sei "que nem tudo o que escrevo eu sou"
Gostei muito! formidavél a tua imaginação.

Bom fim de semana

beijinho

Isa

GNM disse...

Uaaaau...
Impressionante e credivel a tua
narração!

Passa um excelente FDS...

peter pan disse...

Muito bonito!!! gosto da forma como escreves...utilizas uma linguagem simples, correcta, cuidada. Revelas imaginação mas acima de tudo afectos... histórias lindas, cada uma mais do que a outra. è bom saber que se pode ler aqui "com qualidade"...

segurademim disse...

... surpreendente!!!! (não sei quem é o cão)
Rica e infeliz... será que se pode fazer algo?
beijo ;)

alyia disse...

Mais um texto bem escrito como já é hábito

Anónimo disse...

E dura e dura e dura =P
Sorrisos com beijos neste inicio de semana

lena disse...

consegues prender-me e viajar na tua excelente forma como escreves e nos narras cada situação.

muito bem escrito Rui,

surpreendes-me pela positiva

beijinhos muitos para ti


lena

isabel disse...

Estou atrasada na leitura querido Rui!

Andei por aí e agora voltei, fui dar um passeio em cima dum caracol!

Beijinhos

rafaela disse...

Muito bom, agora só nos resta saber o que podes fazer, o que pode o narrador fazer =)

CS disse...

Além de escritor (magnífico), tradutor?
Já te perguntei: quando publicas?

919 disse...

quero mais...